O francês Jean-Pierre Jeunet sempre foi um cineasta muito
superestimado. Em seus país natal, dirigiu alguns filmes que lhe deram
credibilidade cult entre a crítica e o público. Sua fórmula narrativa é simples
e por vezes até eficiente – truques estéticos simpáticos, um certo requinte
visual, ambientação esquisitinha e o tom agridoce dos roteiros lhe deram uma
certa aura autoral. Na coprodução franco-norte-americana “Uma viagem
extraordinária” (2013) boa parte desses artifícios foram limados e reduzidos,
bem provavelmente por exigência de executivos ávidos por uma acessibilidade
comercial que tornasse o filme mais viável comercialmente. Assim, o que se tem
é um trabalho derivativo e sem graça, provavelmente a pior coisa que Jeunet
lançou. É claro que em alguns momentos até dá para sentir alguns elementos
típicos do estilo do cineasta, principalmente na caracterização de algumas
situações e personagens, naquela síntese entre fofurice e esquisitice. Mas isso
acaba sendo muito pouco para salvar a coisa toda do lugar comum enfadonho que
predomina na narrativa. Clichês temáticos e formais são remexidos sem qualquer
inspiração ou vigor, resultando em um produto destinado ao esquecimento rápido.
Talvez fosse melhor Jeunet retornar a filmar em definitivo na França, pois em
terras estrangeiras se revelou um medíocre tarefeiro dos grandes estúdios.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, dezembro 31, 2015
quarta-feira, dezembro 30, 2015
Quando papai saiu em viagem de negócios, de Emir Kusturica ***1∕2
Talvez o aspecto mais fascinante no modus operandi do
diretor sérvio Emir Kusturica é a forma com que ele adequa gêneros e clichês
cinematográficos dentro de sua linguagem artística particular. Essa
característica fica bastante evidente em “Quando papai saiu em viagem de
negócios” (1985), uma de suas produções mais estimadas. Num primeiro momento, o
espectador pode até achar que está vendo algo convencional, numa trama que
mistura referências históricas, memorialismo infantil e comentário político.
Aos poucos, entretanto, Kusturica vai envenenando os lugares comuns com uma
encenação vibrante, em que a tensão dramática e a ironia sardônica convivem de
maneira fluida e natural. O academicismo formal em que esse tipo de obra
costuma se basear está lá, principalmente pela vinculação com determinados
fatos históricos importantes da Iugoslávia, mas o fato do protagonista ser uma
criança faz com que a abordagem estética do filme traga algo de mágico e mesmo
delirante na sua atmosfera. Essa oposição de linguagens (naturalista e
estilizada) não é gratuita de acordo com o contexto sócio-político em que se
desenvolve o roteiro – os absurdos do autoritarismo e da burocracia do governo
iugoslavo dos anos 40 por vezes beiram o surreal. Mantendo essa pegada autoral,
Kusturica elaborou ainda melhor esses preceitos formais e temáticos naquela que
é a sua grande obra-prima, “Underground” (1985).
terça-feira, dezembro 29, 2015
As férias do pequeno Nicolau, de Laurent Tirard *1∕2
Em “O pequeno Nicolau” (2010), o diretor francês Laurent
Tirard tinha encontrado um equilíbrio interessante entre um certo tom ingênuo
tipicamente infantil e um grau de ironia exato, fazendo com que o filme pudesse
ser apreciado tanto pelo público infanto-juvenil quanto pelo adulto. Já nessa
sequência “As férias do pequeno Nicolau” (2014) essa química não consegue se
concretizar – a direção é burocrática, a trama é banal e não consegue gerar
tensão e interesse para o espectador, a narrativa é trôpega e engessada. No
geral, tudo parece estar tão no piloto automático que a única sensação genuína
que pode induzir é o sono. Nem crianças e nem adultos pouco exigentes
provavelmente irão apreciar um conjunto criativo tão preguiçoso e sem vida.
segunda-feira, dezembro 28, 2015
Homens, mulheres e filhos, de Jason Reitman *1∕2
Dá para perceber na filmografia do diretor norte-americano
Jason Reitman um certo padrão temático constante, em que ele se pretende como
uma espécie de cronista moderno dos dilemas existenciais da sociedade ocidental
contemporânea. Seus filmes versam sobre relações humanas frustradas (“Amor sem
escalas”), gravidez na adolescência (“Juno”), imaturidade emocional (“Jovens
adultos”). Ocorre, entretanto, que tais obras acabam não justificando a
pretensão do cineasta, pois se formatam dentro de equações narrativas
convencionais e pouco imaginativas, além de visões emocionais superficiais e
por vezes beirando o moralismo fácil. Tal tratamento artístico volta a se
manifestar de forma expressiva em “Homens, mulheres e filhos” (2014), obra em
que Reitman se propõe realizar um inventário de registro misto entre o intimista
e o social sobre as relações familiares em tempos de internet. Por mais que as
questões levantadas pelo roteiro sejam relevantes, falta profundidade para a
visão de mundo expressa pelo filme. Reitman se contenta em abusar de truques
narrativos e clichês melodramáticos baratos, não sabendo aprofundar seus
questionamentos com alguma sagacidade ou contundência. As situações
apresentadas pelo roteiro são esquemáticas, além da caracterização dos
personagens caírem em caricaturas patéticas (o personagem de Jennifer Garner,
em especial, beira o ridículo).
quinta-feira, dezembro 24, 2015
Califórnia, de Marina Person **
Por um lado, é de se admirar a persistência da diretora
Marina Person em fazer de “Califórnia” (2015) uma obra de forte cunho autoral.
Dá para sentir em cada fotograma do filme elementos que parecem aludir ao
próprio imaginário pessoal da cineasta – trilha sonora repleta de pérolas do
rock e pop dos anos 70 e 80, conflitos e dilemas típicos das comédias
adolescentes de John Hughes, referências e citações da cultura pop. E as
ambições artísticas de Person para sua produção também são louváveis, ao
procurar oferecer a partir de uma trama de caráter intimista e memorialista uma
perspectiva sócio-política-cultural do Brasil da primeira metade da década de
80, retratando o ambiente dos anos finais da ditadura militar. De certa forma,
é como se a história do despertar da adolescente Estella (Clara Gallo) para os
dramas e complexidades da vida adulta tivessem uma relação de simbolismo com um
país que estava tentando sair das trevas do obscurantismo intelectual e
comportamental. O problema de “Califórnia” é que todas essas boas ideias e
intenções não conseguem se traduzir em uma narrativa envolvente. Na comparação
com outras obras recentes que tiveram a juventude como temática, falta o
lirismo brutal de “O cheiro da gente” (2014), a sensibilidade à flor-da-pele de
“Depois de maio” (2012) e mesmo a graciosidade natural de “Hoje eu quero voltar
sozinho” (2014). A encenação em “Califórnia” é engessada, por vezes beirando o
amador, com as caracterizações dos personagens caindo por vários momentos em
caricaturas constrangedoras, além do roteiro apelar para simplificações banais
e sem graça. Por mais que se tenha simpatia com as mencionadas referências
culturais que permeiam a trama, a impressão é que tais elementos não conseguem
entrar em sintonia com o universo das situações e personagens. Assim, fica
evidente, por exemplo, que o trabalho de direção de arte é por demais
artificioso e sem vida. O que salva “Califórnia” do desastre completo é que
existem algumas poucas sequências em que dá para vislumbrar o que poderia ter
sido o filme se Person tivesse acertado mão na direção – as cenas no quarto de
JM (Caio Horowicz) são pulsantes, dinâmicas e ousadas em seus movimentos,
edição e diálogos, é quase como se fosse um outro filme dentro de “Califórnia”.
Horowicz, aliás, destaca-se de forma disparada no elenco, pois tem uma presença
cênica forte. No mais, ainda que “Califórnia” seja uma obra frustrante em sua
execução, seus poucos e expressivos momentos positivos mostram que Person ainda
é um nome a se prestar atenção.
quarta-feira, dezembro 23, 2015
O clã, de Pablo Trapero **1∕2
A filmografia do cineasta argentino Pablo Trapero sempre foi
marcada por uma pegada autoral própria, em que o diretor procurava criar uma
atmosfera marcada por um realismo áspero. Seu formalismo não é caracterizado
por grandes voos de virtuosismo, com Trapero preferindo manter uma estética
austera para mostrar sintonia com roteiros de forte caráter humanista. Assim
foi em obras memoráveis como “A família rodante” (2003), “Nascido e criado”
(2006), “Leonera” (2008) e “Abutres” (2010). Ainda que venha sendo
expressivamente festejado por crítica e público, com direito inclusive a ser o
representante da Argentina para uma possível indicação ao Oscar de filme
estrangeiro, “O clã” (2015), o trabalho mais recente de Trapero, foge bastante
do estilo habitual do cineasta. Ao invés daquela mencionada sobriedade de
concepção, Trapero envereda por uma narrativa bem mais convencional,
ajustando-se a um amálgama de cinebiografia e policial que serve para embalar
uma premissa e subtexto de trama bastante interessantes – a dos fatos reais de
que a ditadura argentina que se estendeu entre parte dos anos 70 e 80 acabou
oferecendo treinamento e mesmo salvo conduto para que organizações criminosas
praticassem os seus delitos sob o disfarce de defesa dos valores cívicos e morais
(prática essa que também ocorreu no Brasil). Até que por vezes essa gestão de
clichês soa divertida e envolvente, mas a impressão geral é a de que Trapero
resolveu se tornar um Scorsese platino, fazendo com que “O clã” pareça uma
espécie de “Os bons companheiros” mal ajambrado, com direito inclusive a inúmeros
planos-sequência sem muito sentido e trilha sonora rock and roll anglo-saxã.
Ainda que competente em alguns quesitos técnicos e contando com uma ótima
atuação de Guillermo Francella no papel do protagonista Arquimedes Puccio,
falta uma fluência narrativa e uma abordagem temática menos superficial para
que a produção se mostre capaz de ser algo efetivamente memorável, o que acaba
sendo frustrante devido à mencionada questão sócio-política que permeia a trama
e que acaba sendo tangenciada de maneira amena, ficando longe, por exemplo, da
contundência e profundidade do brasileiro “Orestes” (2015) que traz assuntos
semelhantes em seu respectivo roteiro.
terça-feira, dezembro 22, 2015
Quando meus pais não estão em casa, de Anthony Chen ***
A proposta artística da produção de Singapura “Quando meus
pais não estão em casa” (2013) faz lembrar bastante a do filme brasileiro “Que
horas ela volta?” (2015): usando a estrutura narrativa tradicional do gênero
melodrama, a obra do diretor Anthony Chen pretende fazer uma espécie de
dissecação das relações humanas dentro de uma sociedade marcada preconceitos e
desigualdades sociais profundos. No trabalho em questão, não dá para dizer que
há grandes transcendências estéticas e mesmo em termos existenciais – os dilemas
da trama são aqueles básicos, com uma narrativa que avança de forma linear e
sem sobressaltos. O grande mérito do filme de Chen é a sobriedade de sua
abordagem emocional, não caindo em soluções sentimentais fáceis e
manipuladoras, valorizando uma atmosfera plena de silêncios reveladores e a expressividade
de gestos e olhares. Dessa forma, aliada também a uma discreta propensão para a
ironia, sua crítica a uma sociedade de consumo que se mostra cada vez mais insensível
e absurda em seus valores morais e contradições se caracteriza pela
contundência e universalidade.
segunda-feira, dezembro 21, 2015
Mia madre, de Nanni Moretti ****
Os filmes do diretor italiano sempre são marcados por um
traço autoral intransferível, trazendo uma espécie de sínteses das obsessões
pessoais e artísticas do cineasta. Dentro dessa concepção se misturam elementos
diversos como política, reminiscências pessoais, ensaios culturais, intimismo,
comentário social e metalinguagem, mas sempre passando por um rigoroso filtro
formal e temático que dá uma coerência existencial admirável para sua
filmografia, independente do gênero no qual Moretti se aventure. Isso tudo fica
bastante evidente em seu trabalho mais recente, “Mia madre” (2015), em que ele
volta ao gênero do melodrama, onde ele já tinha se dado muito bem em “O quarto
do filho” (2001). Na produção em questão, o diretor retoma seus temas que lhe
são mais caros sem que com isso passe a impressão de acomodação. Pelo contrário
– Moretti parece aprofundar seu particular estilo dentro de uma equação
narrativa cada vez mais desconcertante. É como se tivesse mais de um filme
dentro de “Mia madre”. Há aquele plano que mostra o cotidiano de filmagens de
uma obra de caráter social por parte da cineasta Margherita (Margherita Buy),
mostrando os dilemas artísticos da diretora. Por outro lado, tem uma trama
intimista que envolve o tocante drama pessoal da protagonista junto ao irmão Giovanni
(Moretti) que passam por todo o calvário de acompanhar os últimos dias da mãe
moribunda. Além disso, a própria situação dessa matriarca carrega um forte
caráter simbólico no sentido de representar a queda de um humanismo considerado
ultrapassado perante uma ordem capitalista cada vez mais obtusa. E há também as
sequências que mostram as confusões e constrangimentos causados por um
decadente e arrogante ator norte-americano (John Turturro) no set das referidas
filmagens e pelas ruas de Roma, em que as trapalhadas desse personagem parecem
remeter a um humor melancólico tipicamente italiano na linha das produções de
Toto e Mario Monicelli. Moretti junta todas essas narrativas paralelas e lhes
dá uma unidade intrínseca extraordinária, compondo um painel humanista que
navega de forma extraordinária entre a comicidade, o sentimental e a feroz
crítica sócio-política e econômica, tendo por resultado final um filme que
tanto pode ser considerado atemporal pela sua grandeza artística como a síntese
emblemática de uma época conturbada.
sexta-feira, dezembro 18, 2015
Star Wars: O despertar da força, de J.J. Abrams **
Se examinarmos a forma com que os filmes que compõem as duas
primeiras trilogias da franquia “Star Wars” se relacionam, dá para no mínimo
concordar com uma coisa: a de que cada um desses episódios mostrava uma evolução
na caracterização das situações e personagens mais emblemáticas da saga,
principalmente se formos considerar a ordem cronológica dos fatos apresentados
nas tramas. E por mais que George Lucas se aproveitasse de elementos
tradicionais de outras histórias (e mesmo lendas) para criar a mitologia da série,
ele fez isso com muito senso de narrativa cinematográfica, num sentido que
conseguiu criar uma ambientação muito particular, personagens cativantes e uma
encenação empolgante. Ou seja, estabeleceu um cânone artístico que se tornou
referência para fãs e também para uma grande legião de imitadores.
É certo que o parágrafo acima não traz novidade alguma no
que se sabe sobre “Star Wars”. Para esse escriba, entretanto, ele é necessário
para tentar contextualizar o que faz esse “Star Wars: O despertar da força” (2015)
ser tão frustrante. Ao invés de dar um prosseguimento natural para as trilogias
anteriores, no sentido de mostrar o amadurecimento dos antigos personagens e a
inserção de figuras novas com caracterização psicológica (e mesmo visual) própria,
o diretor J.J. Abrams adotou um caminho artístico preguiçoso e sem inspiração
ao fazer uma espécie de reciclagem picareta de “Uma nova esperança”. A
estrutura de trama e a relação entre os personagens são praticamente os mesmos
do filme de 1977, com variações mínimas. É claro que os defensores mais xiitas
vão dizer que seria uma homenagem ou algo que o valha, mas convenhamos que
repetir na cara dura ideias velhas e já melhor trabalhadas acaba sendo muito
pouco diante da expectativa que se criou nos últimos tempos por esse novo capítulo
da saga. Além disso, Abrams não consegue dar liga na sua encenação para que
pelo menos essa “refilmagem” parecesse minimamente vigorosa. Batalhas aéreas e
terrestres são burocráticas na conjugação coreografia e efeitos especiais, não
conseguindo extrair alguma efetiva tensão ou emoção para o espectador. Não há
nem mesmo uma desenvoltura na forma com que os personagens se colocam em cena –
a impressão constante é a de se estar vendo uma convenção de fãs da série
fazendo cosplay nos cenários clássicos da saga. E é meio melancólico ver
Harrison Ford, Carrie Fisher e Mark Hammill com presenças de cena tão artríticas.
Na real, isso até acaba sendo sintomático do que efetivamente representa “O
despertar da força”.
Talvez todo o fenômeno de devoção e marketing que assolou o
planeta em função de retomada de uma nova trilogia de “Star Wars”, diante do
resultado final de “O despertar da força”, acaba sendo também simbólico do que é
a relação atual entre religião e comércio que domina o mundo. Fãs/fiéis
defendem de forma indiscriminada seus ídolos/deuses enquanto produtores/pastores
contam sorridente a bilheteria/o dízimo arrecadados...
quarta-feira, dezembro 16, 2015
O massacre da serra elétrica 2, de Tobe Hooper ****
Hoje em dia quando se fala em continuações ou reboots da
franquia “O massacre da serra elétrica” logo se pensa em produções rasteiras e
assépticas destinadas mais a levantar um troco fácil para os seus produtores do
que acrescentar algo de relevante para a série. Sem querer parecer nostálgico,
mas houve uma época em que isso foi diferente e dessa forma mais um capítulo da
saga do maníaco Leatherface era algo realmente digno de nota para os
apreciadores do cinema fantástico. Nesse sentido, “O massacre da serra elétrica
2” (1986) é um exemplar enfático dessa concepção. O diretor Tobe Hooper já
tinha criado uma verdadeira escola dentro do gênero horror com o primeiro filme
lançado em 1974, em que combinava com muita criatividade violência gráfica
explicita, formalismo cru e atmosfera de sordidez e negativismo. Ao retomar a
história e personagens na continuação em questão, mudou sua orientação
artística de forma radical, mas preservando a coerência existencial da obra. Nesse
sentido, é um trabalho que se mostra em perfeita sintonia com o espírito do
melhor que foi feito no âmbito das produções de terror nos anos 80,
principalmente naquela síntese contundente de suspense, horror e humor (vide
obras como “Um lobisomem americano em Londres”, “Evil Dead” e “O soro do mal”).
Há um viés em “O massacre da serra elétrica” que o diferencia bastante desses
outros filmes – por trás de um roteiro repleto de delirantes situações
sangrentas, há um ácido e sutil subtexto político no retrato caricatural que
faz de típicas figuras que habitam o imaginário norte-americano, indo da típica
fúria puritana de um policial alucinado em busca de vingança (Denis Hooper,
evidentemente cheirado em cena) até nojentos e engraçados rednecks psicopatas
(com direito inclusive a um escroto veterano do Vietnã), ou seja, um retrato
nada gentil do sul republicano e reacionário dos Estados Unidos. Junto a uma
intrínseca junção de dinâmica narrativa bem azeitada, encenação alucinada e
ambientação fuleira, acaba se tendo uma legítima pérola cinematográfica
marginal que só melhora com o passar dos anos.
terça-feira, dezembro 15, 2015
Tudo que aprendemos juntos, de Sérgio Machado **
O diretor baiano Sérgio Machado tinha demonstrado vigor
narrativo em “Cidade Baixa” (2005) e “Quincas Berro D’Água” (2010), obras que
traziam uma mistura interessante de brasilidades, erotismo e questões sociais,
numa abordagem típica da sua geração de cineastas nordestinos que despontaram
nos últimos anos (com destaque óbvio para o pessoal de Pernambuco). Diante
desse histórico expressivo, ver a produção mais recente de Machado, “Tudo que
aprendemos juntos” (2014), acaba causando forte decepção. Em algumas sequências,
o diretor até preserva um certo frescor na encenação, mas acaba sendo muito
pouco dentro de um quadro geral que remete a uma enésima versão requentada do
clássico “Ao mestre com carinho” (1967). Clichês formais e temáticos são
maltratados de forma impiedosa e rasteira. Mesmo que o roteiro tangencie
dilemas prementes da sociedade brasileira contemporânea, o filtro estético e
textual do filme é tão quadrado e burocrático que faz com que essa pretensão
visão crítica se mostre superficial e reducionista.
segunda-feira, dezembro 14, 2015
No coração do mar, de Ron Howard **1/2
O diretor norte-americano tem uma filmografia marcadas por
alguns altos e vários baixos. Depois do empolgante “Rush – No limite da emoção”
(2013), era até natural que se houvesse uma expectativa positiva para o seu
próximo filme. “No coração do mar” (2015), entretanto, mostra que o cineasta
voltou ao habitual padrão de produções meia-boca. É claro que não se trata de
um desastre completo como “Anjos e demônios” (2009), mas também está muito
longe de fazer jus à promissora premissa de sua trama – mostrar os fatos reais
que inspiraram Herman Melville a escrever a obra-prima literária “Moby Dick”.
Howard é um diretor que sempre teve uma forte tendência para assepsia formal e
temática na concepção de seus filmes, e isso acaba sendo justamente o principal
equívoco artístico nesse seu trabalho mais recente. A caracterização visual da
obra dentro do conjunto fotografia, direção de arte e efeitos especiais é
exemplar desse traço característico do estilo de Howard filmar: tudo é tão
artificial e limpo que os cenários de uma cidadezinha litorânea e de um
baleeiro em pleno ano 1820 mais parecem de um insípido conto-de-fadas do que
uma vigorosa reconstituição imagética fiel e realista. Mais grave do que isso é
a forma com que as caças aos cetáceos e as batalhas entre a monstruosa baleia
branca e o barco liderado por Owen Chase (Chris Hemsworth) são retratadas –
ainda que mostrem razoável competência em sua coreografia, tais sequências são
elaboradas dentro de padrões gráficos feitos essencialmente para não chocar as
plateias, fazendo com que prepondere uma absurda falta de violência e sangue,
itens fundamentais para que se ressaltasse o impacto sensorial da brutalidade
do conflito entre o homem e a natureza. A verdade é que o viés adotado por
Howard é muito mais o do conto moralista edificante, vide diálogos repletos de
boas lições morais e os óbvios temas musicais melosos que pontuam a trilha
sonora. Dessa forma, o resultado final é até um filme que por vezes diverte,
mas que dificilmente consegue se concretizar como uma experiência
cinematográfica memorável em nosso imaginário.
quinta-feira, dezembro 10, 2015
O fim e os meios, de Murilo Salles ***
Enquanto “Ausência” (2014) é uma obra que se apresenta como
uma lúcida tese sociológica e falha como cinema, com “O fim e os meios” (2014)
dá para dizer que as coisas se operam de forma contrária. O roteiro do filme de
Murilo Salles se pretende como uma espécie de raio x sobre as estruturas de
poder no cenário político brasileiro contemporâneo, em que mesmo aspectos da
intimidade dos personagens refletem as relações de dominação econômica e
desajustes sociais no Brasil. Os desdobramentos da trama, entretanto, não
conseguem sustentar tais pretensões temáticas, resvalando por vezes em
simplificações e banalidades que não conseguem sintetizar de forma satisfatória
alguns conflitos complexos que são retratados no roteiro. Nesse sentido, não há
a agudeza existencial que deixava o espectador inquieto em “Nome próprio”
(2007), excelente produção anterior dirigida por Salles. Por outro lado, a
encenação concebida pelo cineasta em “O fim e os meios” é tão intensa e fluida
que mesmo as inconsistências da trama não impedem que a narrativa seja
envolvente em sua condução. Salles tem a manha para criar algumas perturbadoras
atmosferas de tensão dramática, sabendo valorizar também as expressões e
gestuais de seus autores com bastante sensibilidade. Por mais que o filme tenha
uma tendência para o caricatural, o misto de sexo, poder e picaretagem que
envolve os personagens vinculam o filme a um pastiche eficiente no gênero
policial permeado por uma atmosfera de sordidez perturbadora.
quarta-feira, dezembro 09, 2015
Ausência, de Chico Teixeira **1/2
'
A comparação entre “Ausência” (2014) e “Casa de Alice”
(2007), filme anterior de Chico Teixeira, mostra que o diretor tem uma certa
coerência artística. As duas produções têm tratamentos formais e temáticas
semelhante – roteiro e narrativa obedecem a uma lógica rigorosa em seus
desdobramentos, revelando uma visão de mundo aguçada na percepção das mazelas
existenciais da sociedade brasileira contemporânea. No filme mais recente, a
progressão de fatos da trama obedece a uma equação que beira a matemática, em
que a sucessão de situações deprimentes faz com que o protagonista Serginho
(Matheus Fagundes) entre numa espiral de desilusões. Teixeira faz transparecer
em sua obra um severo modus operandi em que cada cena traz uma carga
explicativa, e por vezes até simbólica, na construção de uma tese sobre
abandono emocional na menoridade. É de se convir que nesse sentido “Ausência”
seria uma expressiva peça sociológica a embasar teorias comportamentais. Todo
esse acuro filosófica/intelectual, entretanto, não consegue se traduzir num
resultado cinematográfico satisfatório. Falta uma vivacidade, uma
transcendência artística, dentro desse estilo opaco de Teixeira filmar. O
espectador até consegue entender os dilemas e dificuldades de Serginho, mas
também não consegue sentir alguma real empatia pelo personagem e mesmo por
aqueles que o cercam. Por mais que os diversos tipos de relacionamentos nos
quais Serginho se envolve servem para construir a base para a evolução das
ideias do filme, nenhuma dessas interações é esmiuçada de uma maneira mais profunda,
ficando num desenvolvimento muito superficial. Se a história se concentrasse
mais na ambiguidade do relacionamento entre Serginho e o “Professor” (Irandhir
Santos), por exemplo, teria um impacto muito maior. No mais, até dá para entender
que essa aridez estética e emocional de “Ausência” tenha uma função de evitar
que a obra caia no sentimentalismo fácil ao abordar a questão da adolescência à
beira-do-abismo, mas obras com temática semelhante como “Os incompreendidos” (1959)
e “Pixote” (1981) já mostraram que se pode ter uma abordagem artística mais
grandiosa e memorável sem perder a contundência de seu discurso.
terça-feira, dezembro 08, 2015
American Ultra - Armados e alucinados, de Nima Nourizadeh **
Existem filmes cujas premissas iniciais que deram origem aos
seus respectivos roteiros são bem mais interessantes que os seus consequentes
resultados finais. “American Ultra – Armados e alucinados” (2015) é um
expressivo exemplar de tal constatação. Ainda que a profusão de produções sobre
superespiões treinados a um limite sobre-humano seja grande (vide as franquias “007”
e “Bourne”, além de derivados), a ideia de um agente com amnésia (Jesse Eisenberg) que passa os
dias chapado de maconha e desenhando uns quadrinhos doidões e que acaba se
tornando alvo de eliminação por uma agência governamental acaba despertando uma
certa curiosidade para o espectador apreciador de uma boa aventura escapista. O
problema é que a abordagem do diretor Nima Nourizadeh acaba não fazendo jus às
expectativas promissoras. O ideal para um filme como esse é que a estrutura
narrativa se vinculasse a uma síntese entre a comicidade ácida e a ação
enlouquecida. No caso em questão, predomina uma dramaticidade excessiva,
fazendo parecer uma obra que se leva mais a sério do que deveria. A encenação
raramente encontra um tom adequado entre a comédia e a aventura, com os dilemas
da trama mais parecendo uma variação derivativa da linha “Bourne”. E se restava
ao elemento ação a chance de salvar “American Ultra” da decepção total, daí as
coisas naufragam de vez – o formalismo concebido por Nima Nourizadeh é
burocrático e sem inspiração. Estão lá as explosões, tiros, lutas e violência,
mas tudo num conjunto incapaz de criar empatia ou alguma cena memorável. Ou
seja, tudo bem distante da vigorosa releitura de clichês narrativos que
Nourizadeh tinha estabelecido em “Projeto X” (2012), seu trabalho anterior.
segunda-feira, dezembro 07, 2015
Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Pop Cinema, de Cem Kaya ***
Num primeiro momento, o documentário “Remake, Remix,
Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Por Cinema” (2014) parece se resumir
a uma boa coletânea de infames cenas de produções turcas dos anos 60 e 70 marcadas
pela tosquice, cara-de-pau, ingenuidade e humor involuntário. Nesse sentido,
talvez o principal mérito da obra é o seu trabalho de edição: por vezes, a ágil
sucessão de hilárias sequências repletas de “defeitos visuais”, diálogos constrangedores,
encenação amadorística e generosas doses de violência e escatologia levam o
espectador a gargalhadas convulsivas. Um olhar mais atento, entretanto, pode
identificar no filme dirigido por Cem Kaya um retrato crítico e por vezes até
profundo sobre a cultura turca no período focado, época essa marcada por uma
conjuntura bem específica e difícil de reproduzir nesses tempos atuais
dominados pela internet e outros avanços tecnológicos. Naqueles tempos, a falta
de grana constante para produções nacionais, um regime jurídico diferenciado de
direitos autorais (ou, na verdade, a ausência de tal regime) e um cenário
artístico afetado pela falta de informação e pelo obscurantismo religioso levam
a uma profusão de filmes de baixo orçamento e nível formal risível de todos os
gêneros (ficção científica, aventura, fantasia, terror, comédia, melodrama). No
meio de uma temática marcada pelo grotesco e pela galhofa, Kaya tem algumas
belas sacadas narrativas, principalmente por estabelecer conexões de tal filmografia
com elementos típicos de vertentes cultuadas por cinéfilos como o exploitation
e o trash, além de mostrar a relação da decadência comercial dessas produções
com mudanças importantes na Turquia, como a consolidação de um capitalismo mais
“profissional” e o avanço do fundamentalismo religioso. Assim, mais do que um
mero exercício de nostalgia cinematográfica, “Remake, Remix, Rip-Off” acaba
sendo uma interessante obra a dissecar de forma sutil os meandros das
transformações políticas e sociais da Turquia, mas que também faz um memorável
e contundente retrato da alma fuleira e sincera de um povo.
sexta-feira, dezembro 04, 2015
Pasolini, de Abel Ferrara ****
Quando se fala em cinebiografia nos dias de hoje, a primeira
coisa que vem à cabeça é um filme cuja estrutura narrativa se resume a uma
espécie de resumão linear da vida de seu protagonista, com alguma ênfase em
determinados fatos mais relevantes, mas que no final das contas acaba se
mostrando como uma obra superficial e que pouco consegue mostrar da essência de
seus “homenageados”. Ainda que possam receber algumas indicações a Oscar ou
páginas em cadernos culturais, o destino da maioria de tais produções é o
esquecimento pela sua irrelevância artística e mesmo histórica. Sorte que
existem exceções como esse “Pasolini” (2014) de Abel Ferrara, em que esse
último retrata a últimas 24 horas de vida do genial diretor italiano. Só que
nesse curto espaço de tempo focado, Ferrara consegue fazer um contundente inventário
emocional e artístico do seu protagonista. O último dia de Pier Paolo Pasolini
(Willem Dafoe) é marcado pelos tradicionais dilemas, conflitos e contradições
que sempre marcaram sua trajetória como pensador, poeta e cineasta – seu conflito
com os moralismos e mesquinharias do status quo econômico e social da sociedade
ocidental, suas preocupações em dar vazão às suas obsessões estéticas e temáticas,
o seu gosto por envolvimentos sexuais sórdidos. Mas ao mesmo que Ferrara
concebe uma abordagem realista nessa visão fatalista dos momentos derradeiros
de Pasolini, ele também envereda por um vórtice sensorial dentro da mente do
artista, fazendo com que o espectador possa ter um vislumbre das lembranças
difusas, anotações pessoais e mesmo projetos abortados pela sua precoce morte.
Nesse último quesito, Ferrara emula com sensibilidade o próprio estilo de
Pasolini na encenação que faz de um roteiro nunca filmado desse último, fazendo
lembrar aquele realismo mágico picaresco e enlouquecido que o italiano criou
para a sua “Trilogia da vida”. De certa forma, somente um eterno desajustado
como Ferrara poderia ter a manha de nos oferecer um significado bastante
aproximado do papel decisivo que Pasolini teve na cultura mundial.
quarta-feira, dezembro 02, 2015
A visita, de M. Night Shyamalan ***
O que mais incomodava em “Depois da terra” (2013), o
penúltimo longa-metragem do diretor M. Night Shyamalan, era o fato de
transparecer uma forte despersonalização por parte do cineasta. Independente de
se gostar ou não de Shyamalan, é inegável que em boa parte de sua filmografia
dá para sentir um certo traço autoral, a delineação de um estilo particular, o
que não ficava evidente na referida obra. Em “A visita” (2015), seu trabalho
mais recente, Shyamalan retoma sua veia própria de realizador diferenciado,
também retornando ao horror, gênero no qual se destacou em “O sexto sentido”
(1999) e “O fim dos tempos” (2008). Nessa nova incursão ao terror
cinematográfico, ele surpreende por enveredar por uma concepção narrativa
bastante manjada no cenário das produções de horror contemporâneas – a da
câmara subjetiva, onde quem registra a ação são os personagens. Diferente do
tom previsível e pueril da franquia “Atividade paranormal”, “A visita”
demonstra criatividade na utilização desse recurso estético. Na trama, a dupla
adolescente de protagonistas está realizando um documentário intimista sobre a
relação de sua mãe e os avós, fazendo com que mostrem domínio técnico em termos
de encenação e edição. Por vezes, inclusive, chegam a discutir sobre conceitos
importantes no gênero documental. A partir de tal arcabouço formal e temático,
e tendo como principal cenário uma rústica fazenda isolada no meio de interior
norte-americano, Shyamalan consegue extrair uma atmosfera de horror gótico,
fazendo com que o filme tenha algumas memoráveis sequencias bastante tensas e
assustadoras na sua combinação de temores atávicos, escatologia e violência.
Pena que o roteiro insira alguns momentos de melodrama familiar excessivo, o
que diminui de forma considerável o impacto e concisão da obra. Ainda assim, “A
visita” está bem acima da média do que tem sido feito no gênero nos últimos
anos e serve também para mostrar que Shyamalan está longe de ser considerado
carta fora do baralho.
terça-feira, dezembro 01, 2015
A ilha do milharal, de George Ovashvili ***
Apesar do exotismo de sua procedência, a produção da Geórgia
“A ilha do milharal” (2014) não chega a ser um bicho de sete cabeças em termos
formais e temáticos. É claro que para aqueles acostumados com os padrões
frenéticos e escapistas de boa parte do que se produz na Hollywood atual a
narrativa lenta e detalhista elaborada pelo diretor George Ovashvili pode para
esquisita e enfadonha. A trama do filme é simples e sem grandes variações em
seu desenvolvimentos e mesmo nas suas viradas, mas guarda em suas entrelinhas
alguns simbolismos que são trabalhados de forma eficiente e até mesmo por vezes
encantadora. Dentro da concepção artística desse trabalho Ovashvili, a
exposição do passar do tempo é essencial na construção dramática. O
passo-a-passo do levantamento de uma plantação de milho em uma pequena ilha
temporária de um rio interiorano, assim como a amostragem do cotidiano de sua
manutenção, é essencial para se dimensionar a carga dos conflitos e dilemas delineados
pelo roteiro. A valorização dos silêncios e ênfase nas expressões e gestuais
dos personagens também são essenciais para a atmosfera de melancolia e mesmo para
a sensação de tragédia iminente e inevitável que pairam de forma constante
sobre “A ilha do milharal”. O rigor dessa abordagem estética e emocional
encontra um complemento acertado na encenação, principalmente por uma direção
de fotografia que consegue captar com uma grandiosidade contida as nuances
visuais dos belos cenários naturais do filme. Se em grande parte da narrativa
predomina essa discrição nas escolhas artísticas de Ovashvili, as sequenciais
finais da tempestade que inunda a ilha e destrói grande parte da plantação de
milho representam uma catarse sensorial impactante capaz de fixar no imaginário
do espectador por um bom tempo.
segunda-feira, novembro 30, 2015
Mistress America, de Noah Baumbach ***
Se em “Frances Ha” (2012) o diretor Noah Baumbach fazia uma
espécie de releitura contemporânea de alguns dos maneirismos habituais da
Nouvelle Vague, em “Mistress America” (2015), sua nova colaboração com atriz e
roteirista Greta Gerwig, ele faz a revitalização moderninha daquelas comédias norte-americanas
amalucadas dos anos 30 e 40. Usando como personagens estudantes esnobes de literatura,
pseudointelectuais e figuras boêmias da noite nova-iorquina, Baumbach faz uma
espécie de inventário emocional de uma geração de jovens de classe média dentro
de uma estrutura narrativa que parece uma reciclagem do clássico “Levada da
breca” (1938) de Howard Hawks. Pode parecer esquisito por vezes, até porque o
cineasta deixa impresso boa parte do seu habitual estilo típico de cinema
independente contemporâneo: narrativa seca que por vezes emula um estilo
documental, roteiro de caráter naturalista, trilha sonora pop rock de acento
indie (no caso, com excelentes temas compostos pela dupla Dean & Britta,
além de antológicas canções de OMD e Suicide). Num primeiro momento, essa
mistura de referências diversas pode parecer indigesta, mas com o desenrolar da
trama o filme fica mais fluente e orgânico no seu misto de pretensão cool e
comicidade. Da metade para o fim, por sinal, fica bem engraçado, com a
protagonista Brooke (Gerwig), em suas tiradas bem humoradas e no seu porte
desengonçado, fazendo lembrar até mesmo algumas personagens memoráveis interpretadas
por Katherine Hepburn.
sexta-feira, novembro 27, 2015
As mil e uma noites: Volume 1 - O inquieto, de Miguel Gomes ****
Tempos conturbados como o que vivemos na atualidade podem
nos angustiar, perturbar, deprimir ou provocar algumas outras reações
negativas. Por outro lado, um cenário de crise econômica, social e cultural
também é capaz de despertar algo de muito positivo – a criatividade artística
necessária para contestar, criticar e ironizar um status quo opressor e
hipócrita. E esse é justamente o caso do extraordinário “As mil e uma noites:
Volume 1 – O inquieto” (2015), produção cinematográfica portuguesa em que o
diretor Miguel Gomes destila de forma contundente o seu descontentamento com o
governo e a sociedade de seu país. Desde o início, de forma mesma expressa, o
cineasta deixa clara a sua motivação na realização da obra em questão,
colocando que a conjuntura econômica de austeridade fiscal e cortes de
benefícios sociais torna para ele impossível fazer um filme sem que tal assunto
entre dentro de sua temática. O trabalho de Gomes, entretanto, não reduz a
estética a mero veículo para um discurso panfletário. O próprio formalismo do
filme tem um viés político ao se recusar a fazer concessões de fácil digestão para
o público. Gomes combina com notável fluidez documentário, ficção e
metalinguagem, fazendo com que a encenação naturalista se entrelace de forma
estranhamente harmônica com elementos de cinema fantástico e mesmo aspectos de
desconstrução narrativa. Dessa maneira, o Portugal atual de políticas
econômicas ditadas por tecnocratas e de desemprego estrutural convive com um
país de cotidiano arcadista repleto de realismo mágico. A inventiva concepção
artística de Gomes remete a outra antológica versão desse mesmo clássico
literário, aquela perpetrada por Pasolini em 1974, filme que adaptava o
clássico texto oriental para uma linguagem de herança neorrealista. Ainda que
de estilos diversos, as obras de Gomes e Pasolini se irmanam na capacidade de refletir
seus respectivos tempos históricos em narrativas repletas de imaginação e
ironia.
quinta-feira, novembro 26, 2015
Os Maias - Cenas da vida romântica, de João Botelho ***1/2
Para o diretor português João Botelho, não bastava
simplesmente adaptar o original literário de “Os Maias – Cenas da vida
romântica” (2014) para dentro de uma linguagem cinematográfica. Para o
cineasta, primordial era preservar a essência temática da obra e valorizar a
prosa lapidada ao extremo do escritor Eça de Queiroz. Para isso, Botelho
recusou a simples encenação naturalista e apostou numa estilização formal
acentuada. A produção se baseia em truques estéticos simples e na empostação
dos diálogos. É como se a preocupação não fosse que aquilo que se vê em tela
fosse crível ou acessível para o espectador moderno, interessando mais criar
uma determinada atmosfera que se preocupasse em colocar o espectador dentro de
um vórtice sensorial. Nesse sentido, a Lisboa que se revela na obra é quase
difusa, beirando o onírico – parece uma capital portuguesa do século XIX que
habita o imaginário de um possível leitor apaixonado de Eça. O texto que brota
da tela através da narração e dos diálogos vem num tom solene, por vezes
declamado. Ao invés do anacronismo tedioso, tal recurso provoca um estranho
encantamento pela força e encadeamento dessas palavras e diálogos que denotam
uma ampla gama de sentimentos e sensações. A trama de “Os Maias” pode sugerir
em sua superfície uma tragédia novelesca, mas nas suas entrelinhas traz um fino
senso de humor a satirizar as hipocrisias e mesquinharias da sociedade
portuguesa da época. É grande mérito de João Botelho saber preservar essas
geniais nuances da escrita de Eça, traduzindo esse clima de decadência sedutora
em várias sequencias antológicas, o que fica evidente principalmente nas cenas
em que a ácida metralhadora verbal de João da Ega (Pedro Inês) se manifesta e
na lassidão perturbadora da última sequência de sexo entro Carlos da Maia (Graciano
Dias) e Maria Eduarda (Maria Flor).
quarta-feira, novembro 25, 2015
Aliança do crime, de Scott Cooper **
Tinha tudo para ser um puta filme: o mesmo diretor dos
excelentes “Coração louco” (2009) e “Tudo por justiça” (2013), a impressionante
história real que inspirou a obra-prima “Os infiltrados” (2006) e um elenco
repleto de ótimos atores. O resultado final de “Aliança do crime” (2015),
entretanto, fica bem aquém dessas altas expectativas. Por vezes, até dá para
sentir algumas fagulhas criativas que dão uma ideia do que o filme poderia ser,
principalmente em algumas sequencias de ação e violência que mostram que Scott Cooper
tem um talento natural para esse tipo de cenas. O que falta para a produção é
uma narrativa equilibrada e dinâmica que consiga conciliar esses bons momentos
de forma mais satisfatória. No geral, prevalece uma abordagem burocrática e
despersonalizada que faz com que o filme raramente consiga despertar alguma
tensão efetiva ou empatia pelas situações e personagens. O roteiro é
tremendamente superficial e derivativo, além das caracterizações dramáticas do
elenco serem afetadas e caricaturais. Falta uma densidade estética e temática
melhor trabalhada – do jeito que ficou, parece que se está vendo um episódio qualquer
daqueles programas televisivos banais sobre crimes em que a encenação parece um
mero pretexto para o conteúdo jornalístico apelativo, o que acaba sendo muito
pouco para um cineasta como Cooper.
terça-feira, novembro 24, 2015
Cativas - Presas pelo coração, de Joana Nin **1/2
É interessante observar como “Cativas – Presas pelo coração”
(2013) é uma obra que consegue ser tão emblemática tanto das qualidades quanto
dos vícios que marcam a contemporânea filmografia do documentário brasileiro. A
temática do filme em questão é bem determinada: o cotidiano das mulheres que
são namoradas e esposas de homens que se encontram cumprindo penas em
estabelecimentos prisionais. A abordagem concebida pela diretora Joana Nin
valoriza bastante o viés do dramático ao retratar as dificuldades e amarguras
que uma situação dessas pode trazer para a vida de suas protagonistas, mas por
vezes se permite um leve acento bem humorado. De certa forma, é um trabalho que
se mostra em conexões com outros exemplares recentes do gênero que buscam uma
espécie de síntese da natureza entre o sentimental, o melodramático e o brega,
a tentar buscar a essência da alma brasileira do cidadão típico dessa nova classe
C. Dentro de tal perspectiva, a cineasta abusa dos longos depoimentos em que
suas entrevistadas narram suas respectivas trajetórias de envolvimento com
amores “bandidos”. Em algumas dessas entrevistas, há nuances expressivas a
explicitar a natureza insondável de algumas escolhas pessoais. Em boa parte dos
outros depoimentos, entretanto, há uma certa atmosfera de enfado na repetição
excessiva de histórias e lamentações muito semelhantes entre si. Ainda assim,
em seu contexto geral, “Cativas” até consegue ter um saldo positivo
principalmente pelas sequências em que Nin consegue transcender a formatação
convencional. Nesse sentido, destaque absoluto para a sequência da visita
íntima, que culmina numa suarenta e ousada cena de sexo real filmada de forma
consentida. Antológica também são as tomadas finais, em que uma jovem mulher
percorre os labirínticos corredores de uma penitenciária até chegar ao pátio de
visitas e encontrar o seu amado, tudo isso ao som de uma pérola romântica de
Márcio Greyck.
segunda-feira, novembro 23, 2015
Olmo e a gaivota, de Petra Costa e Lea Glob ***
Se em “Elena” (2012) a diretora Petra Costa realizou um
documentário marcado por um subjetivismo que fazia com que a obra beirasse a
ficção, em “Olmo e a gaivota” (2014), codirigido com a dinamarquesa Lea Glob,
ela novamente se embrenha em uma fronteira nebulosa entre o real e o
imaginário. Essa produção mais recente apresenta uma estrutura narrativa
intrincada, em que as situações e os personagens podem ser considerados “verdadeiros”,
só que se desenvolvem de forma encenada, com direito, inclusive, a intervenções
diretas das realizadoras interagindo com seus atores. Esse hibrido de cinema
verdade, ficção, metalinguagem e teatro (os “personagens” são em sua maioria
profissionais do meio) apresenta um sensorialismo desconcertante, pois os
recursos estéticos não estão ali apenas para experimentos de linguagem,
mostrando também um sintonia notável com a própria temática do filme. A obra se
propõe a uma espécie de desnudamento sentimental da protagonista Olivia
Corsini, uma atriz que se descobre grávida justamente quando estava em vias de
estrear em uma ambiciosa montagem de “A gaivota”, de Anton Tchecov, acaba tendo
de abandonar a peça e entra em uma crise existencial ao ter de ficar recolhida
em casa durante o período de gestação. Através dessa história intimista, as
diretora propõem um olhar ao mesmo tempo cru e sensível da condição feminina
perante ao machismo e ao materialismo típicos da sociedade ocidental
contemporânea. E não se trata de mera chorumela sentimentalista – ainda que não
tenha a contundência formal e o clima de loucura e onirismo constantes de “Elena”,
“Olmo e a gaivota” é contundente e sem concessões no seu discurso estilístico e
de conteúdo.
sexta-feira, novembro 20, 2015
Head - Os Monkees estão soltos, de Bob Rafelson ****
Poucos filmes conseguiram captar de forma tão plena as
contradições e dilemas do anos 60 quanto “Head – Os Monkees estão soltos”
(1968). Em seu longa-metragem de estreia, o diretor norte-americano Bob
Rafelson realizou uma obra conturbada e fervilhante de criatividade alucinada,
fazendo tanto um inventário de suas obsessões artísticas quanto um comentário
ácido sobre uma época de transição e mudanças em todos os sentidos (cultura,
comportamento, política e afins). A narrativa parece obedecer a um fluxo
aleatório de referências, pensamentos e imagens. Num primeiro momento, tudo
pode parecer gratuito ou puramente experimental, como se fosse apenas uma
grande brincadeira chapada de Rafelson e dos Monkees. Aos poucos, entretanto,
essa profusão de elementos e ideias vão adquirindo um sentido singular,
configurando uma perspectiva estética e temática de caráter crítico e irônico.
Os Monkees entrando num vórtice de cenas diversas que remetem aos gêneros
cinematográficos mais clássicos, a presença constante de figuras icônicas da
cultura pop (Victor Mature, a Coca Cola), a colagem de sequencias documentais,
as trucagens que remetem a um estilo psicodélico – tudo isso se combina numa
narrativa que se estrutura como um pesadelo sem fim e que ainda soa
tremendamente ousada nos dias de hoje no seu questionamento sobre a relação
entre arte e comércio. A trilha sonora, composta por melodiosas e lisérgicas
canções da banda protagonista, é o complemento exato a sublinhar essa obra marcada
pela esquisitice formal e por uma lucidez desconcertante.
quinta-feira, novembro 19, 2015
007 contra spectre, de Sam Mendes **1/2
A franquia “007” acabou tomando um outro direcionamento a
partir do momento em que Daniel Craig assumiu o papel de James Bond. A violência
ficou mais explícita, as histórias assumiram uma atmosfera soturna e Bond se
tornou um personagem brutal e um tanto sorumbático. Para muitos, esse novo
direcionamento representava uma traição àquele perfil de produções escapistas e
divertidas, além da caracterização do protagonista que primava por um misto de
charme e canalhice, tipo esse consagrado por Sean Connery, Roger Moore e Pierce
Brosnan. Deixando esses purismos de lado, é fato que essa fase recente teve ótimos
momentos dignos de entrar em qualquer antologia do melhor que já foi feito com
o personagem criado por Ian Fleming. A ação alucinada de “Cassino Royale” (2006)
e a elegância formal de “Skyfall” (2012) mostraram que a série ainda podia
render produções cativantes. Em “007 contra Spectre” (2015), a fórmula atual,
entretanto, já demonstra evidentes sinais de cansaço. É claro que estão
presentes algumas boas sacadas estéticas (o plano-sequência inicial é
memorável), além das trucagens apresentarem um nível gráfico expressivo. O
problema dessa nova aventura de 007 é uma narrativa esquemática em excesso e
pouco criativa. O roteiro faz suceder fatos de forma mecânica e pouco
convincente, não gerando interesse ou empatia, o que se estende para uma
caracterização pouco inspirada dos personagens (Blofeld, por exemplo, é
mostrado como um vilão qualquer, e não como o antagonista mais relevante da
extensa galeria de adversário de Bond). E mesma a pretensa seriedade temática
da era Craig acaba soando ridícula diante da forma simplória com que a trama
pretende se conectar com as histórias dos produções anteriores. Tiroteios,
pancadarias e explosões se acumulam e se mostram banais e incapazes de gerar
alguma efetiva tensão para o filme. Há boatos que dizem que Craig está pensando
em sair da pele do agente secreto mais famoso do cinema. Diante de sua eterna
cara de tédio em “Spectre” e da frouxidão da obra em questão, talvez tais suposições
não sejam tão fantasiosas.
terça-feira, novembro 17, 2015
O futuro, de Mirada July **1/2
Mais do que cineasta, a norte-americana Miranda July é essencialmente
uma artista multimídia. Nesse sentido, suas produções cinematográficas mais
parecem um laboratório de suas ideias e obsessões artísticas do que
propriamente filmes perfeitamente acabados. Coerente com tal proposta, “O
futuro” (2011) pode frustrar aqueles que esperam um formalismo rebuscado ou
equilibrado. Quem estiver com a mente mais aberta para a proposta estética de
July, entretanto, pode até se sentir envolvido em algumas cenas com a narrativa
trôpega e que por vezes extrapola para o fabular. Não se trata de uma obra de
fácil digestão – as situações e dilemas do roteiro são expostos num tom
oscilante e fragmentado, com os eventos da tramas e mesmo a caracterização
psicológica dos personagens se desenvolvendo pelas vias do aleatório e do onírico.
Por vezes, predomina uma certa ambiência de distanciamento emocional. Em outras
passagens, a combinação entre intimismo cortante e elementos de ficção
científica acaba criando uma atmosfera estranha e perturbadora. Mesmo que o
resultado final de “O futuro” seja irregular, as ousadias e excentricidades de
July acabam criando algumas cenas capazes de se fixar sutilmente em nosso
imaginário.
segunda-feira, novembro 16, 2015
A floresta que se move, de Vinícius Coimbra *
O diretor Vinicius Coimbra trabalhou em algumas novelas e
outras produções televisivas da Globo nesses últimos anos. Esse seu histórico
na TV fica evidente na própria concepção artística de “A floresta que se move”
(2015), seu filme mais recente. A intenção da obra era adaptar “Macbeth”, a
clássica peça teatral de Willian Shakespeare, para o contexto contemporâneo
brasileiro, fazendo com que a bastante conhecida trama envolvendo poder,
traição, culpa e morte se enquadrasse dentro de um cenário envolvendo valores
pequeno burgueses e a rotina de picaretagens econômicas de grandes bancos. Se
as ambições de Coimbra até parecem interessantes, o resultado final,
entretanto, deixa muito a desejar. O filme naufraga de forma constrangedora em
todos os seus aspectos: o roteiro é destituído do menor traço de sutileza, a
encenação é truncada e beira o amador na caracterização de cenas e personagens,
o elenco abusa da canastrice dramática, o formalismo é asséptico e
despersonalizado evocando um reclame alongado ou mesmo um insípido capítulo de
uma novela qualquer. Se a intenção do espectador era ver uma versão
cinematográfica para um texto original de Shakespeare, é melhor procurar algum
trabalho dirigido por Kenneth Branagh. Mas se por outro o desejo da plateia é
assistir a alguma tranqueira, dá para encarar esse “A floresta que se move”.
Afinal, sua ruindade é tão escancarada que chega até a ser divertida.
quinta-feira, novembro 12, 2015
Hacker, de Michael Mann ***1/2
Desde a sua estréia nos cinemas, a trajetória de Hacker (2015) não tem sido das mais festejadas.
Grande fracasso comercial nos Estados Unidos, amplamente malhado pela crítica “especializada”,
lançado direto em DVD no Brasil. Diante de tais fatos, num primeiro momento,
poderia-se afirmar que o filme mais recente do diretor norte-americano Michael
Mann é um dos grandes fiascos do ano. Por mais que Mann seja cultuado por um
número expressivo de admiradores, não dá para dizer que essa recepção negativa
seja uma novidade para ele. Ele não é aquele típico cineasta “respeitável” que
com frequência recebe prêmios em festivais, indicações ao Oscar, várias
resenhas elogiosas de jornais e revistas. Pelo contrário – alguns de seus
melhores filmes tiveram uma recepção inicial fria por parte de críticos e foram
sucessos moderados de bilheteria. Essa recepção tem algumas explicações. Mann
começou a trabalhar na televisão (mídia considerada menos “nobre”), nunca
esteve ligado a uma turma ou movimento cinematográficos específicos (como, por
exemplo, Scorsese com o pessoal da “Nova Hollywood” ou Jim Jarmusch na ponta de
lança do cinema independente norte-americano) e se vinculou aos gêneros
policial e aventura. Para muitos, ele sempre foi visto no máximo como um
competente “tarefeiro” dos grandes estúdios. Dentro dessa lógica, sua biografia
tem semelhanças com as de outros hoje incensados diretores como John Ford,
Howard Hawks e Alfred Hitchcock: a de autores que dentro de uma estrutura
convencional de grandes produções comerciais conseguiam expressar uma visão
particular e bastante criativa da arte cinematográfica. Filme a filme, Mann construiu
uma sólida filmografia que com o passar do tempo passou por reavaliações e se
tornou peça chave na compreensão da evolução da linguagem estética do cinema
contemporâneo. Em obras-primas como Fogo
contra fogo (1995), Colateral (2004)
e Miami Vice (2005) se expandiram de forma extraordinária
os elementos artísticos mais caros do cinema de Michael Mann: a dinâmica precisa
de narrativa, a montagem elegante e moderna que tanto se vale do classicismo
quanto de influências inesperadas da estética “video-clipeira” dos anos 80
(fonte de onde William Friedkin também bebeu no seminal Viver e morrer em Los Angeles), a fotografia de notável textura
imagética (poucos diretores conseguiram aproveitar de forma tão criativa a
plasticidade da filmagem em câmera digital quanto Mann), o uso criativo de
canções e temas incidentais na trilha sonora para a construção da tensão
dramática, a caracterização sóbria de personagens, o virtuosismo insuperável no
registro de cenas de pancadaria e tiroteio. Nesse último quesito, aliás, Mann
representa uma verdadeira escola dentro do cinema de ação: enquanto Sam
Peckinpah é o mestre da violência em câmera lenta e John Woo se sobressai pelo
barroquismo exagerado na concepção da ação cinematográfica, Mann se notabilizou
por um realismo conciso e impactante.
Ainda que não esteja no nível artístico do melhor da
filmografia de Michael Mann, Hacker é uma obra que está em sintonia com aquilo
que faz dele um dos mais importantes cineastas em atividade. Na realidade, é
muito mais coerente com o estilo autoral de Mann do que Inimigos públicos (2009), obra essa que se mostrava como uma certa
descaracterização do marca estilística de Mann em nome de um academicismo
típico do gênero “filme de época” (afinal, tratava-se da recriação dos últimos
meses de vida do célebre gangster John Dillinger). Nessa produção mais recente,
Mann volta a se concentrar numa temática contemporânea, com uma trama
envolvendo jogos de espionagem e terrorismo tecnológico. Aliás, o roteiro de
Hacker é o seu ponto fraco, perdendo-se por vezes em alguns clichês baratos que
trancam a narrativa. Em um primeiro momento, Mann parece até preocupado em
provar ser “moderno” para as plateias jovens, perdendo tempo com algumas
trucagens genéricas (as tomadas “internas” em redes de computadores são chatas
e desnecessárias). Aos poucos e de forma sutil, entretanto, a narrativa vai se
assentando e a sensibilidade e técnica refinadas de Mann afloram com mais
intensidade. Ainda que o filme trabalhe dentro dos preceitos esperados de um
tradicional “thriller” de ação, pode-se perceber uma série de nuances que o
diferencia do que se faz na maioria dos casos dentro do gênero. A
caracterização taciturna e de poucas palavras do protagonista Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth) é
exemplar dessa abordagem, fazendo lembrar o antológico personagem principal interpretado
por Alain Delon no clássico francês O
samurai (1967). Aliás, o filme de Jean-Pierre Melville é uma boa referência
para entender a encenação proposta por Mann – ao invés da narrativa de ritmo
frenético, prevalecem cenas marcadas por uma tensão discreta que desembocam em
econômicas e vigorosas sequencias de ação. A metade final de Hacker é onde a
narrativa entra em definitivo ponto de bala, com Mann extraindo uma fina
síntese de suspense cool e violência gráfica, com absoluto destaque para toda a
climática sequência de Nicholas enfrentando seus antagonistas a base de
porrada, tiros, facadas e sagacidade numa procissão religiosa em Jacarta. Tais
momentos, junto à sequência da ópera em Missão
Impossível: Nação secreta e a todo Mad
Max: A estrada da fúria, representam um dos grandes destaques do cinema de
ação de 2015.
quarta-feira, novembro 11, 2015
Dheepan - O refúgio, de Jacques Audiard ***1/2
O diretor francês Jacques Audiard teve uma
interessante sacada narrativa em “Dheepan – O refúgio” (2015) ao formatar o
filme dentro de uma estrutura clássica do gênero faroeste. É só observar os
pontos chaves da trama. A migração do Sri Lanka para a França do ex-guerrilheiro
Dheepan (Antonythasan Jesuthasan),
da jovem Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e da pequena Illayaal (Claudine
Vinasithamby), estranhos entre si e que fingem ser uma família, fugindo de um
cotidiano de guerra constante e privações em busca de estabilidade econômica e
social traz clara relação com os pioneiros que séculos atrás desbravaram o
selvagem oeste norte-americano em busca de uma vida melhor; a rotina conturbada
da “família” em um condomínio popular francês dominado por traficantes remete
ao dia-a-dia daqueles que conviviam com pistoleiros e assaltantes de bancos e diligências
no velho oeste; o dilema existencial de Dheepan entre a recusa a assumir sua antiga
condição de homem violento e homicida e a necessidade de preservar sua
integridade física e daqueles que o cercam é o mesmo de anti-heróis antológicos
como o William Munny da obra-prima “Os imperdoáveis” (1992). Por fim, a
memorável e brutal sequência em que o protagonista invade sozinho um prédio
repleto de marginais para resgatar Yalini é o correspondente das habituais
cenas finais de duelos entre mocinhos e bandidos. Também é mérito de Audiard
conseguir enquadrar de maneira orgânica e convincente essa espécie de faroeste
contemporâneo dentro de uma perspectiva típica de um drama que varia de forma
notável entre o social e o intimista. Nesse sentido, o caráter humanista de “Dheepan”
é bastante acentuado na sua profunda e sensível caracterização psicológica de
personagens e situações, qualidade essa que Audiard já tinha mostrado domínio
em obras contundentes como “De tanto bater meu coração parou” (2005) e “O
profeta” (2009) – essa última, por sinal, uma singular recriação do gênero “policial/gangster”.
terça-feira, novembro 10, 2015
Straight Outta Compton - A história do N.W.A., de F. Gary Gray ***
O fato de Dr. Dre e Ice Cube, membros originais do N.W.A.,
serem produtores da cinebiografia do lendário grupo de rap, “Straight Outta
Comtpon – A história do N.W.A.” (2015), acaba não passando o incólume. Por
vários momentos, a produção parece ter um caráter institucional ou de marketing
pessoal dos artistas focados. Os quinze minutos finais do filme são bem
emblemáticos dessa tendência de propaganda autocelebratória. E é justamente aí
que reside as sequências mais fracas da obra dirigida por F. Gary Gray, ficando
visível um artificialismo incômodo na narrativa. Por outro lado, existem outros
motivos que fazem com que se entenda porque “Straight Outta Compton” tenha
gerado tanta empatia com uma expressiva parcela do público. Para começar, as
cenas envolvendo ensaios, gravações em estúdio e shows são empolgantes na forma
com que conjugam a música impactante do N.W.A. com uma encenação precisa e
icônica. É de se destacar ainda que Gray é um diretor competente para cenas de
ação, o que fica evidente na tensa sequência de abertura do filme, além dos
momentos que retratam o cotidiano dos personagens principais com repressão
policial e envolvimento com criminalidade. E falando nessa questão da
brutalidade da polícia, aí reside também um dos grandes méritos da produção,
que transparece uma raiva sincera e contundente por parte da população negra
nos Estados Unidos diante de uma conjuntura de sistemático desrespeito com
direitos humanos por parte de órgãos de segurança do Estado e preconceitos raciais
diversos a gerar situações humilhantes e vexatórias. O roteiro não abre
concessões e nem soluções conciliatórias e paternalistas em sua visão de mundo:
todos os personagens brancos são vistos como racistas e exploradores, enquanto
que o teor desbocado e revoltado das letras do N.W.A. é a consequência natural
e justa contra a hipocrisia e preconceito social da sociedade norte-americana.
Discordando ou não de tal ótica, é inegável que ela é ousada e desafiadora
perante um status quo tão alienado e conformista.
segunda-feira, novembro 09, 2015
Minha irmã, de Ursula Meyer ***
Diferente do seu filme anterior, “Home” (2008), obra que por
vezes enveredava por uma abordagem que beirava o delirante, em “Minha irmã”
(2012) a diretora Ursula Meyer optou por uma vertente cinematográfica bem
definida, o realismo social. Dentro desse gênero, a cineasta pouco ousa em
termos formais e temáticos – estão lá todos os preceitos inerentes a tal estilo
(a narrativa seca, a encenação naturalista, a discreta trilha sonora que
sublinha sutilmente algumas cenas, a temática a combinar o olhar intimista e
uma trama a expor as mazelas econômicas e comportamentais da sociedade
ocidental capitalista). Se por um lado a produção em questão não traz nada de
novo em sua estética, por outro é inegável que Meyer enlaça os referidos
elementos do gênero com convicção e coerência. A caracterização de situações e
personagens é marcada pela crueza e pela complexidade psicológica, dispensando
sentimentalismos fáceis e soluções escapistas. Por várias vezes a dupla de
protagonistas Louise (Léa Seydoux) e Simon (Kacey Klein) é irritante em suas
atitudes imaturas e conturbadas, mas é justamente por isso que ambos parecem
críveis e perturbadores. A dureza existencial e artística com que Meyer conduz
a narrativa não afasta o forte pendor humanista de “Minha irmã”. Pelo
contrário: apenas ainda mais enfatiza o impacto emocional do filme. A contundente
conclusão do filme sintetiza com perfeição essa visão de mundo, ao juntar de
forma precisa o formalismo sem concessões de Meyer com um olhar amoroso sobre a
relação entre dois personagens principais.
sexta-feira, novembro 06, 2015
Obra, de Gregório Graziasi **
No histórico pessoal do diretor Gregório Graziasi, consta
que por um tempo ele foi estudante de arquitetura. Em seu primeiro
longa-metragem, “Obra” (2013), tal referência não passa despercebida. O
protagonista da trama, João Carlos (Irandhir Santos), é um arquiteto, enquanto
o cerne da concepção formal do filme se baseia na direção de fotografia que
valoriza bastante os cenários urbanos de prédios e asfaltos da cidade de São
Paulo. Os enquadramentos compõem um ambientação ambígua, que oscila entre o
requinte plástico de formas e texturas e o sufocamento do concreto duro e frio
típico da capital paulista. A intenção de Graziasi é clara – estabelecer um
paralelo entre essa arquitetura caótica, mista de beleza melancólica e feiura
opressiva, com o estado de angústia existencial do personagem principal. A
trama, formatada dentro de uma estrutura narrativa ligada ao gênero suspense,
ao poucos se expande para uma conotação mais simbólica, a retratar
principalmente a desigualdade social e o conflito de classes típicos da
sociedade brasileira contemporânea. Se as intenções artísticas de Graziasi são
ambiciosas e ousadas, por outro lado a execução de suas concepções deixa
bastante a desejar. É inegável que a produção apresenta um esmero estético, mas
isso não consegue se vincular a uma narrativa envolvente. A encenação é
engessada, sem frescor ou naturalidade, e mesmo as pretensas metáforas do
roteiro se efetivam de forma primária e artificial. A falta de traquejo
narrativo em “Obra” compromete até mesmo as atuações do elenco, onde mesmo a
intepretação de um ator diferenciado como Irandhir Santos se mostra afetada e
pouco convincente.
quinta-feira, novembro 05, 2015
Sicario, de Denis Villeneuve ***
O canadense Denis Villeneuve é um cineasta que mostra geralmente
em seus filmes boa mão para cenas de ação e para construir narrativas fluentes.
O que incomoda em filmes como “Incêndios” (2010) e “Os suspeitos” (2013),
entretanto, é o tom solene da ambientação e a queda para os clichês mais
baratos do suspense e do melodrama, fazendo com que por vezes se tenha a
impressão de se estar assistindo a um grande novelão. Em sua produção mais
recente, “Sicario” (2015), não dá para dizer que ele tenha se livrado de forma
plena de tais vícios, mas ainda assim entrega um trabalho bem mais satisfatório
e memorável. Para que isso tenha acontecido, contou com dois grandes trunfos: a
exuberante fotografia de Roger Deakins (indispensável assistir “Sicario” numa
sala de cinema para fruir das nuances sensacionais de enquadramentos e
iluminação) e a sinistra trilha sonora composta pelo islandês Jóhann Jóhansson.
Além disso, a encenação concebida por Villeneuve se mostra ainda mais elaborada
e dinâmica que o habitual. Por mais que o roteiro seja previsível em seu
desenvolvimento, o requinte formal do filme consegue extrair momentos de tensão
bem convincentes. O que impede “Sicario” de atingir um nível artístico mais
transcendente é o fato de Villeneuve continuar se levando mais a sério do que
merece. Com alguma constância, surgem sequencias que assumem um caráter
messiânico a anunciar a corrupção e prepotência de agências de segurança do
governo como se estivessem expressando uma grande novidade, o que acaba soando
um pouco ridículo diante de uma caracterização superficial e óbvia de situações
e personagens – ainda que esses últimos sejam rasos na sua construção
psicológica, há de se ressaltar as ótimas e carismáticas atuações de Josh
Brolin e Benicio Del Toro. No mais, falta para “Sicário” o estofo criativo e as
atmosferas de perturbadora sordidez de “Selvagens” (2012), filme que também
retratava os violentos grupos mexicanos de tráfico de drogas, e mesmo aquele
vigor casca grossa de “Miami Vice” (2006) para que entre no rol dos policiais
contemporâneos antológicos. Mas do jeito que ficou, ainda é um prato cheio para
os curtidores do gênero.
quarta-feira, novembro 04, 2015
45 anos, de Andrew Haigh ***
Há uma impressão de letargia que pontua boa parte da duração
de “45 anos” (2015). A direção de Andrew Haigh é bastante austera na sua
concepção narrativa – assim como não há grandes arroubos criativos em termos
estéticos, também é perceptível que o cineasta não se deixa levar por truques
sentimentais para facilitar a vida do espectador. Mesmo a trama é marcada por
uma conotação modorrenta, em que os fatos da história contada se sucedem de
forma lenta e com variações sutis. Os motes principais do roteiro se
desenvolvem em alguns poucos dias da semana em que ocorrerá a festa de 45 anos
de casado casal protagonista Geoff e Kate Mercer (Tom Courtenay e Charlotte
Rampling em atuações precisas), obedecendo a uma lógica de repetições de atos
do cotidiano e de um certo imobilismo existencial por parte dos personagens
principais que por vezes pode levar a uma sensação de tédio sonolento para quem
assiste ao filme. O que pode parecer um formalismo irritante aos poucos vai
revelando uma coerência sensorial notável. Por trás da atmosfera taciturna e da
interação entre os indivíduos baseados em olhares e gestos expressivos e
diálogos superficiais há uma espécie de discreta revolução intimista a dissecar
a ilusão de felicidade pequeno burguesa. As irônicas e ácidas sequências finais
de “45 anos” reafirmam o seu caráter levemente subversivo, tanto no discurso
hipócrita e no passos de dança debochados de Geoff quanto na expressão de
amargura e frustração de Kate.
terça-feira, novembro 03, 2015
Ponte dos espiões, de Steven Spielberg **1/2
Toda a sequência inicial de “Ponte dos espiões” (2015), obra
mais recente de Steven Spielberg, que envolve a perseguição e captura do espião
soviético Rudolf Abel (Mark Rylance), parece uma antítese do que se verá no restante
do filme: é tensa, seca, praticamente não recorre a trilha sonora, valorizando
o bem executado jogo de montagem precisa, virtuosos movimentos de câmera e
enquadramentos expressivos, fazendo lembrar, inclusive, “Munique” (2005), uma
das melhores produções dirigidas pelo próprio Spielberg. Não que na maior parte
da duração de “Ponte dos espiões” não dê para perceber o preciosismo técnico
habitual do cineasta. Muito pelo contrário. O formalismo do filme é responsável
pelo que há de melhor nele, em sua capacidade de seduzir a plateia pela sua
plasticidade e mesmo por uma narrativa acessível. O problema, entretanto, é que
tirando os aludidos primeiros momentos, raramente essa estética consegue fazer
a produção transcender. Spielberg se deixar levar por alguns clichês narrativos
preguiçosos, fazendo com que poucas vezes se consiga sentir uma atmosfera de
tensão mais palpável. A caracterização dos personagens trafega entre o caricato
e o superficial (até o tal espião soviético mais parece um velhinho simpático e
injustiçado do que um espião perigoso), a ambientação e direção de arte são
marcadas por uma assepsia visual e o complexo jogo de interesses políticos que
marca a trama acaba se reduzindo a maniqueísmos e edificantes lições de vida. É
claro que boa parte desses maneirismos temáticos e formais é inerente no estilo
de Spielberg, mas a diferença é que em outros trabalhos mais consistentes eles
conseguiam se adequar de forma mais convincente e orgânica. Do jeitos que
ficaram em “Ponte dos espiões”, tais maneirismos apenas dão a impressão de um
artista acima da média que se acomodou em concepções artísticas mofadas.
quinta-feira, outubro 29, 2015
Numa escola de Havana, de Ernesto Daranas **1/2
No atual contexto sócio-político tanto nacional quanto
internacional, a produção cubana “Numa escola de Havana” (2014) ganha uma
perspectiva humanista diferenciada a partir da visão de mundo que o diretor
Ernesto Daranas deixa clara na trama do filme. Dentro de uma conjuntura em que
setores conservadores da sociedade civil, políticos oportunistas e religiosos
fundamentalistas clamam pela redução da maioridade penal e o aumento no rigor
de aplicação de penas para jovens infratores, a obra de Daranas expõe um olhar
tolerante e complexo sobre a infância e a adolescência inserida num cotidiano
de pobreza e privações diversas. O roteiro não expõe soluções fáceis para o
destino do jovem protagonista Chala (Armando Valdes Freire) e nem caracteriza o
personagem através de estereótipos e idealizações – Chala por diversos momentos
é francamente desagradável e teimoso em seu comportamento. Essa dureza na concepção
do personagem e de algumas situações é necessária justamente para realçar a
importância de uma abordagem mais humana e racional na condução da questões
envolvendo menores em condição de vulnerabilidade social e econômica. Nesse
sentido, a figura da veterana professora Carmela (Alina Rodrigues) ganha uma
conotação simbólica nas suas atitudes de enfrentamento contra a insensibilidade
e o caráter obtuso da burocracia educacional. Mas se nesse âmbito temático “Numa
escola de Havana” se revela contundente, em termos formais não vai muito além
dentro da estrutura clássica de melodrama. A encenação concebida por Daranas é
apenas correta, chegando por vezes à beira do enfadonho. A narrativa evoca algo
do clássico “Os incompreendidos” (1959), obra emblemática a retratar uma
juventude conturbada e rebelde. É óbvio, entretanto, que Daranas está longe de
ter a classe e inventividade estéticas de um Truffaut.
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