Na maioria das oportunidades, quando um cineasta de forte
traço autoral resolve realizar um filme de teor autobiográfico, o resultado final
costuma ser memorável. Afinal, há um artista de visão criativa e existencial
diferenciada a refletir sobre o próprio passado sob uma perspectiva subjetiva
particular e mais livre das amarras mercadológicas. Dentro de tal concepção,
por exemplo, diretores consagrados como Federico Fellini, Ingmar Bergman, John
Boorman e Woody Allen conceberam trabalhos antológicos como, respectivamente, “Amarcord”
(1973), “Fanny e Alexander” (1982), “Esperança e Glória” (1987) e “A era do
rádio” (1987). Assim, um filme como “Dor e glória” (2019) acaba sendo um tanto
decepcionante. Afinal, trata-se de obra baseada nas lembranças pessoais de seu
diretor, o espanhol Pedro Almodóvar, um dos grandes diretores em atividade. É
claro que não chega a ser ruim – pelo contrário, por vezes é até uma obra bem
envolvente. A impressão constante, entretanto, é que alguns elementos temáticos
e estéticos presentes no longa em questão já foram muito melhor trabalhados em
trabalhos anteriores de Almodóvar. As sequências em aparente flashback são
exemplos claros de uma certa falta de vigor de “Dor e glória” – são corretas,
mas genéricas, quase nem parecendo que são de autoria de alguém de abordagem
artística tão original e característica quanto Almodóvar. É claro que alguns
detalhes fazem o filme valer uma conferida, principalmente pela ótima atuação
de Antonio Banderas e o conjunto fotografia-direção de arte repleto de belos
achados imagéticos. Ainda assim, pode ficar para o espectador aquela sensação
de que no conjunto geral poderia ter sido bem melhor.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, junho 26, 2019
sexta-feira, junho 21, 2019
Suspiria, de Luca Guadagnino ****
No terreno das refilmagens, poucas obras podem ser
consideradas como verdadeiras recriações tais como a recente versão de “Suspiria”
(2018). Se o filme original dirigido por Dario Argento, lançado em 1977, era
uma combinação brilhante de violento terror gráfico e barroquismo beirando o
delirante, aliada a um roteiro que respeitava a tradicional divisão maniqueísta
entre o bem e o mal (nesse último caso, representado na figura das
feiticeiras), na revisão do cineasta Luca Guadagino permanece um formalismo de
forte caráter virtuosístico, mas o horror agora recebe uma forte conotação de
simbologias sócio-políticas. O papel das bruxas ainda é a de antagonistas,
ainda que se contextualizando em aspectos existenciais mais complexos. A trama
é inserida em um conturbado contexto local-histórico – a Alemanha de meados dos
anos 70 tomadas por manifestações estudantis em prol de grupos terroristas. Se
tais organizações eram vistas por alguns como legítimas contestações ao
ordenamento burguês-cristão-patriarcal da sociedade ocidental, as bruxas que
comandam uma academia de dança moderna em Berlin acabam ganhando de maneira
perversamente sutil (e cortante) essa conotação de desafio à ordem vigente. Sem
simplificar essas questões histórico-políticas, o filme faz um inventário
artístico-temático sensível e contundente de fatos decisivos na formação
cultural do século XX – 2ª Guerra Mundial, Guerra Fria, contracultura –
evidenciando para a humanidade um período em que os conflitos armados, a
exploração sócio-econômica e a opressão religiosa-comportamental criaram um
ambiente de paranoia e violência (com reflexos que sentimos até os dias de
hoje). Guadagnino ainda aproveita as possibilidades criativas de boa parte da
história se desenvolver em uma academia de dança expondo na tela sequências
luxuriantes e perturbadoras de balés coreografados com precisão e originalidade
atordoantes. Nesse sentido, a síntese entre dança e horror faz lembrar outra
obra extraordinária lançada recentemente, “Clímax” (2018). É claro que a
particular concepção artística engendrada por Guadagnino provocou repulsa em
boa parte dos apreciadores do longa de Argento e mesmo de fãs de terror convencional,
mas o que realmente frustraria seria tentar adaptar a obra original mimetizando
preguiçosamente maneirismos estéticos e textuais de quarenta anos atrás. Nesse
sentido, a visão autoral de Guadagnino na verdade também serve para atestar a
atemporalidade do filme de Argento mostrando a impossibilidade de apenas tentar
repetir aquilo que já havia sido feito com brilhantismo nos 70.
quarta-feira, junho 12, 2019
Compra-me um revólver, de Julio Hernández Cordón ***1/2
A referência mais óbvia que vem à mente ao se assistir à
produção mexicana “Compra-me um revólver” (2018) é “Mad Max – Além da cúpula do
trovão” (1985). Afinal, o filme dirigido por Julio Hernández Cordón é uma
ficção-científica futurista distópica tendo entre seus principais personagens crianças
órfãs abandonadas sobrevivendo em um ambiente hostil. Ao invés de adotar o tom
espetaculoso/apoteótico do clássico oitentista de George Miller, esse longa-metragem
mais recente se utiliza de uma concepção narrativa-estética mais contida e de
uma encenação sóbria, em que efeitos especiais praticamente inexistem e a
economia de recursos é determinante em termos de direção de arte e fotografia.
E tudo isso que poderia ser visto como um limitador criativo na verdade se
converte em uma grande força artística no filme de Cordón, pois aproxima um
possível futuro tenebroso de um presente não muito diferente, causando para o
espectador um efeito sensorial/existencial perturbador (caos social, exploração
humana, violência desmedida, machismo e abandono infantil não estão distantes
da realidade do México e de vários outros países da América Latina). O limite
entre a sufocante tensão dramática de um thriller de suspense e a reflexão
melancólica do subtexto de forte teor sócio-político é sempre difuso, fazendo
com que a ligação entre esses dois lados da obra seja intrínseca de maneira
contundente. Ainda que a dureza temática e formal predomine na narrativa, “Compra-me
um revólver” sabe se permitir nos momentos certos uma certa dose de poesia,
conforme se pode perceber em sua evocativa sequência de conclusão.
terça-feira, junho 11, 2019
Thriller - Um filme cruel, de Bo Arne Vibenius ****
Na sessão comentada da produção sueca “Thriller – Um filme
cruel” (1973) realizada na última edição do FANTASPOA, a atriz Christina
Lindberg disse que o filme em questão teria sido feito pelo diretor Bo Arne
Vibenius com a intenção principal de ganhar um bom dinheiro, tendo em vista que
o cineasta na época se encontrava na época em séries dificuldades financeiras,
abusando, dessa forma, de alguns dos preceitos básicos do cinema exploitation
da época, principalmente nos quesitos violência gráfica e sexo explícito. Por
mais que a obra seja apelativa no uso constante de tais elementos de choque,
entretanto, seu resultado final acabou extrapolando os meros fins lucrativos
aludidos por Lindberg. Por mais que a brutalidade e pornografia estejam
presentes, elas são incorporadas dentro de uma atmosfera desolada e uma
narrativa sóbria, por vezes quase rarefeita, além de um subtexto repleto de ironia
perversa, o que faz com que o conjunto estético-temático possua aquela bizarra
síntese de repulsa e encantamento dos melhores filmes da linhagem exploitation
setentista. Detalhes cênicos como as estranhas sequências de ação em câmera
lenta e a atuação icônica de Lindberg fazem entender por que Quentin Tarantino
sempre cita “Thriller” como uma das suas grandes inspirações criativas.
segunda-feira, junho 10, 2019
Viagem ao mundo da alucinação, de Roger Corman ***1/2
Ainda que seja um diretor bastante cultuado, Roger Corman
foi antes de mais nada um grande homem de negócio dentro do cinema. Mesmo os
antológicos filmes que realizou adaptando a obra literária de Edgar Allan Poe
são frutos principalmente de um afiado senso de oportunidade mercadológica e de
utilização de recursos de produção. Essa mesma lógica artística-comercial o
levou a realizar alguns longas dentro da temática sexo-drogas-rock and roll quando
essa tríade estava no auge em meados dos anos 1960. “Viagem ao mundo da
alucinação” (1967) talvez seja o exemplar mais emblemático de tal tendência,
tendo também relevante conotação histórica por trazer em seu elenco e equipe
criativa os nomes de profissionais que poucos anos mais tarde estouraram em
Hollywood como Jack Nicholson, Denis Hooper, Peter Fonda e Bruce Dern. Por
outro lado, o filme de Corman transcende a mera curiosidade histórica ou comercial,
tendo um peso artístico considerável. Em meio a maneirismos típicos de um
caráter exploitation há momentos efetivamente antológicos, em que as angústias
e inquietações existenciais do roteiro encontram uma moldura estética-narrativa
mais que adequada. Truques imagéticos baratos, encenação vigorosa e uma trilha
sonora que sintetiza rock psicodélico e easy listening de maneira notável
formam um todo sensorial entre o atordoante e o encantador. Nessa levada, Corman
articula com sensibilidade e ironia a sua particular visão sobre o universo
lisérgico sessentista.
quinta-feira, junho 06, 2019
Mutant Blast, de Fernando Alle ***
Uma produção portuguesa de baixo orçamento envolvendo zumbis
e uma sociedade pós-apocalipse? É claro que uma obra assim só poderia ser
encarada como comédia. E o diretor Fernando Alle tem a plena consciência disso
na realização de “Mutant Blast” (2018), fazendo de suas limitações de recursos
e de uma sagaz criatividade formal/artesanal seus principais trunfos para
realizar um longa divertido tanto em termos de ação quanto de ironia ácida. E o
próprio fato dos atores falarem seus diálogos repleto de clichês do gênero com
um sotaque lusitano dá um charme cômico para tudo isso ainda maior. É claro que
nem sempre o tom debochado/esculachado do filme consegue garantir o equilíbrio
narrativo, mas a série considerável de boas sacadas estéticas e textuais segura
o interesse do espectador – nesse sentido, é de se destacar a atuação bonachona
de Pedro Barão Dias no papel principal e a caracterização física-existencial de
um refinado homem-lagosta!
quarta-feira, junho 05, 2019
Mormaço, de Marina Meliande ***
Não há como não traçar paralelos entre “Mormaço” (2018) e “A
sombra do pai” (2018). Ambas são obras dirigidas por mulheres que enveredam
para o gênero fantástico visando configurar alegorias sócio-políticas do Brasil
contemporâneo. Se no filme de Gabriela Amaral Almeida há a predominância de um
viés intimista, no longa dirigido por Marina Meliande a trama abarca um
espectro maior, focalizando as ações do governo carioca para desalojar várias
famílias de seus lares para executar as obras das Olimpíadas de 2016 e a contrarreação
de populares para evitar tais despejos. Ainda que bem-intencionadas e louváveis,
as sequências de caráter mais realista a focalizar discussões em gabinetes e
tribunais e enfrentamentos físicos entre agentes da segurança e moradores por
vezes têm uma fluência narrativa e mesmo encenação mais truncadas, pouco
fluidas. O filme de Meliande realmente transcendo quando parte para uma concepção
estética-temática que sintetiza teor imagético simbolista e horror metafísico,
principalmente no terço final da narrativa, quando a doença de pele da
protagonista Ana (Marina Provenzzano) se acentua e a personagem entra em um
processo de fusão com o prédio deteriorado onde mora. O subtexto é claro e
perturbador – a dissolução física de Ana corresponde à deterioração moral-ética
da própria capital carioca, em que o antigo e tão decantado Rio de Janeiro
marcado por um imaginário gentil e poético dá lugar a uma metrópole desumana e
implacável contra aqueles sócio-economicamente fragilizados, em um retrato
metafórico que serve também como moldura exata para o Brasil pós-golpe
parlamentar.
terça-feira, junho 04, 2019
Vingadores: Ultimato, de Joe e Anthony Russo ***
Em tempos conturbados e complexos como o que vivemos, um
filme-evento como “Vingadores: Ultimato” (2019) acaba não se tratando de apenas
mais um blockbuster milionário. Por mais que a obra dos diretores Joe e Anthony
Russo tenha mobilizado e emocionado milhões de espectadores, não há como
dissociar suas conquistas das táticas de marketing agressivo/predatório de
produtores e distribuidores. É só pensar, por exemplo, que o fato de ter
abocanhado quase 90% das salas em território brasileiro contribuiu bastante
para sua performance arrecadatória. É claro que quando a Marvel ascendeu como
editora relevante de quadrinhos nos anos 1960 tinha como fim o sucesso
comercial. É fato também, entretanto, que as HQs de Stan Lee e companhia tinham
um caráter de reflexão cultural do mundo naquela época, o que ficou ainda mais evidente
nas sutis tendências no subtexto de caráter libertário e crítica social de
algumas de suas principais revistas na década de 70 (presente, inclusive, nas
tramas cósmicas envolvendo Thanos). Assim, é algo decepcionante que o tom
conformista e previsível de “Vingadores: Ultimato” seja predominante. A gente
pode perceber a coerência temática que se construiu ao longo de anos em que
filmes interagiram dentro desse universo com naturalidade, além de um
competente padrão estético-narrativo na concepção visual e na coreografia da
ação – “Ultimato”, aliás, coroa com eficácia tais atributos. A produção,
contudo, pouco transcende dessa formatação, culpa de um roteiro fortemente
esquemático. Há a pretensão de se apresentar épico, grandioso, mas a duração
excessiva e as quedas seguidas para golpes melodramáticos tornam o filme por
vezes bem anticlimático. Todas essas considerações não querem dizer que temos
uma produção ruim. Pelo contrário – “Vingadores: Ultimato” diverte, até
emociona em algumas passagens, além de não dar aquela impressão “nas coxas” dos
filmes da DC. O que frustra mesmo é a sua incapacidade (ou mesmo falta de
vontade) de sair dos ditames corporativos dos seus donos.
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