quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Bird, de Clint Eastwood ****


A cinebiografia do saxofonista de jazz Charlie Parker, um dos grandes expoentes do bebop, é um filme realizado com paixão e conhecimento de causa. Clint Eastwood sempre foi admirador do músico e isso se reflete em cada fotograma. É admirável ainda que apesar de todo o carinho do diretor pelo seu protagonista, isso não impede que a vida de Bird (apelido de Parker) seja exposta de forma franca e sincera. Ao mesmo tempo em que podemos ver todos os motivos que levaram o personagem título a ser considerado um dos mais geniais músicos norte-americano do século passado, também constatamos muito da instabilidade e confusão da sua vida pessoal. Essa abordagem crua colabora ainda mais para o sucesso artístico de "Bird", tendo em vista que torna Parker um personagem ainda mais humano e carismático.

Eastwood foi ambicioso em "Bird": além de contar parte da trajetória de Parker, realiza também um belo panorama da cena jazz dos anos 40 e 50. Para isso, contou com um trabalho minucioso de reconstituição de época. A recriação dos ambientes enfumaçados dos clubes e boates onde Parker e outros músicos tocavam é impressionante. Os números musicais também são de tirar o chapéu: os solos originais de Parker foram inseridos dentro de um novo acompanhamento e o resultado é arrebatador, com um som que sai cristalino e que parece que foi gravado ontem. De se destacar ainda o fato de que Eastwood pegou todo o seu vasto conhecimento sobre os meandros do jazz, expondo com clareza e sensibilidade, e sem cair no didatismo estéril, muito das questões que norteavam o gênero na época: a falta de reconhecimento nos EUA e o auto-exílio dos músicos em Paris, o conflito entre o cool jazz acessível para as platéias brancas e a fúria criativa e improvisadora do bebop, a vida desregrada e auto-destrutiva de alguns de seus expoentes. Dentro desse último aspecto, é interessante observar como o roteiro de "Bird" evita o caminho fácil das simplificações e moralismos óbvios ao relacionar o conturbado comportamento de Parker com a sua música inovadora e imprevisível, como se esses dois lados da vida do músico tivessem uma relação de dependência recíproca. Isso fica evidente na seqüência em que a mulher de Parker, Chan (Diane Venora), fica na dúvida em permitir ou não a aplicação de uma terapia que poderia aplacar o processo de auto-destruição do saxofonista, mas que certamente embotaria muito da sua criatividade e sensibilidade.

Eastwood também foi extremamente feliz na escolha e direção do seu elenco. Forest Whitaker encarna com perfeição o papel título. Muito além da simples mimetização de maneirismos, o que realmente chama atenção na sua interpretação é a composição de um personagem que não cai no unidimensionalismo: o seu Charlie Parker pode ser uma cara infeliz e preste a desabar, mas ao mesmo tempo consegue ser irônico, sedutor e com um senso musical genial, e que da mesma forma que em alguns momentos consegue ser atraente também consegue causar o mais patético repúdio. Diane Venora também está magnífica, sendo que ela dá para Chan Parker uma personalidade que alterna com impressionante naturalidade uma série de diferentes situações e sensações: da admiração e cumplicidade, passando pela frustração e chegando a resignação, Venora dá uma dimensão humana para Chan tão forte quanto à do protagonista do filme.

É interessante observar também que "Bird" traz muito da visão pessoal do próprio Clint Eastwood sobre a música americana do século passado. O diretor não esconde suas preferências musicais: deixa bem claro o seu amor pelo jazz e desprezo pelo rock and roll. Isso pode até soar conservador, mas acaba ganhando a simpatia pela sinceridade, rendendo um dos momentos mais irônicos do filme, que é na dolorosa seqüência final que retrata a última noite da vida de Charlie Parker: o músico, bêbado e já muito doente, perambula pelas ruas de Nova Iorque visitando amigos ou velhos clubes já fechados quando acaba encontrando um velho conhecido saxofonista que está tocando rock em um auditório absolutamente lotado. Perplexo com a cena, Parker rouba o saxofone do "roqueiro" e sai correndo com o instrumento e tocando o mesmo. Após, entrega o sax e diz que o pegou apenas para ver se ele tocava mais de uma nota...

Mais do que simplesmente uma mera cinebiografia, Estwood conseguiu evidenciar em "Bird", através de sons e imagens, muito da essência do jazz através da figura de Charlie Parker, fazendo do seu filme uma das melhores traduções cinematográficas desse gênero musical, junto com o sensacional "Por Volta da Meia Noite", de Bertrand Tavernier.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Tartarugas Podem Voar, de Bahman Ghobadi ***1/2



Quem acompanha o cinema mundial com uma certa regularidade geralmente sabe o que aguardar de um filme iraniano: universo infantil mesclando-se com temática social, elenco composto basicamente por atores amadores, fotografia e montagem que remetem ao neo-realismo italiano. Mesmo caindo um pouco nessa previsibilidade, "Tartarugas Podem Voar", de Bahman Ghobadi (o mesmo diretor do bom "Tempo de Embebedar Cavalos"), é uma obra de luz própria e que apresenta particularidades dentro da linha de produções iranianas.

Logo no seu começo, "Tartarugas Podem Voar" já apresenta uma de suas melhores qualidades: um protagonista fortemente carismático. "Satélite" (Soram Ebrahim) é um garoto órfão responsável por colocar a vila de refugiados curdos iraquianos onde vive em contato com o mundo. Como o período da trama se passa justamente durante esse último conflito entre EUA e Iraque, seu papel na comunidade é mais do que fundamental. Além disso, é líder das crianças que se dedicam a caçar minas para vender nas cidades próximas. A forma com que Ghobadi apresenta o personagem é muito interessante: "Satélite" é a figura de lucidez num mundo que parece estar sempre pronto a desabar. Mesmo não agindo por motivos altruísticos, parece ser o elo que mantém a sua vila ainda ligada a civilização. O jovem ator Soram Ebharim é uma revelação, sendo que ele compõe com sensibilidade um personagem que parece estar sempre a ponto de entrar em colapso.

Talvez a nuance que mais faz com que "Tartarugas Podem Voar" se destaque de outras produções conterrâneas é a forma com que a sua narrativa oscila entre a ironia e a amargura. E quando esse lado melancólico entra em cena, sempre é com uma força devastadora. Isso fica evidente quando surge na trama a estranha "família" composta por um adolescente sem braços especialista em desarmar minas com a boca, uma garota soturna e uma criança cega. Ao mesmo tempo que aos poucos os segredos dos mesmos vão se desnudando, "Satélite" começa a se envolver com os jovens em questão, revelando um lado benevolente e inocente desconhecido até então. O garoto vê em Henkov (Hirsh Feyssal), a garota de eterno semblante taciturno, uma chance de finalmente ter uma família e uma vida normal. A visão cruel dos fatos mostrados em "Tartarugas Podem Voar", entretanto, não permite complacência ou redenção para os seus personagens. À medida que conhecemos os motivos que levam Henkov a ser tão dura percebemos também que não espaço para soluções fáceis no filme.

Ghobadi conduz o seu filme também com um estilo bem interessante. Predomina em boa parte da produção uma forma de filmar com tons fortemente documentais. Em alguns momentos, contudo, o cineasta insere em sua narrativa alguns toques oníricos, principalmente nas seqüências em que são focalizados as lembranças e os pesadelos de Henkov. Esse contraste entre sonho e realidade tem um efeito perturbador, sendo um dos ponto altos de "Tartarugas Podem Voar". O cineasta consegue também obter outro punhado de seqüências antológicas nas tomadas aquáticas no lago em que os personagens costumam se banhar, com tais cenas indo do poético ao sinistro.

Mesmo não tendo a precisão formal de obras como "Filhos do Paraíso" e "Onde Fica a Casa do Meu Amigo", títulos que representam o ápice do cinema iraniano, as "Tartarugas Podem Voar" é uma obra expressiva e que merece ser vista. E Bahman Ghobadi mostra que é um nome a se prestar atenção.

Filmes da Semana (Cotações de 0 a 4 estrelas)


Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson ****
A Via Láctea, de Lina Charmie *1/2
Elisabeth – A Era de Ouro, de Shekar Khapur ***
Os Indomáveis, de James Mangold ***1/2
O Orfanato, de Juan Antonio Bayona **1/2
Mutum, de Sandra Kogut **
Infidelidade?, de Miguel Oscar Menassa 0 (zero estrela)
A Petal, de Jang Seon-Woo ***1/2
Moacir – Arte Bruta, de Walter Carvalho ***1/2
Quem Disse Que é Fácil, de Juan Taratuto *
Savage Grace, de Tom Kalin **1/2
Delírios, de Tom DiCillo ***

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A Fogueira das Vaidades, de Brian De Palma ***


Comentar adaptações cinematográficas de obras literárias geralmente é uma tarefa complicada. Por mais que digamos que as mesmas devam ser vistas como filmes independentes das obras originais nas quais foram baseadas, acabamos sempre fazendo comparações, ainda mais se tivemos a oportunidade de ler anteriormente os livros em questão. Digo tudo isso porque é exatamente o que sinto ao escrever sobre "A Fogueira das Vaidades", versão para o cinema dirigida por Brian De Palma para o romance escrito por Tom Wolfe.

Lembro-me que na época do seu lançamento, em 1990, havia uma grande expectativa em relação ao filme. O livro de Wolfe faz uma brilhante e corrosiva sátira à questão racial nos EUA ao retratar a queda social de Sherman McCoy, um endinheirado agente financeiro que vê o seu mundo ruir quando acidentalmente atropela um jovem negro que aparentemente tentava assaltá-lo. O escritor não pouca sarcasmo ao mostrar brancos e negros dispostos a tudo para tirarem vantagem do calvário de McCoy, indo de um decadente e alcóoltra jornalista sensacionalista, passando por um jovem promotor judeu oportunista e chegando a um maquiavélico reverendo negro. Aliado a esse ótimo material, podia-se considerar ainda o fato de que Wolfe já tinha um livro adaptado anteriormente para os cinemas que acabou resultando em uma obra-prima, no caso, "Os Eleitos", dirigido por Philip Kaufman. E para concluir, De Palma havia demonstrado brilhantismo nessa área de transposição para as telas de obras literárias ao dirigir o clássico filme de terror "Carrie, A Estranha" (na minha opinião, muito melhor que o próprio livro original de Stephen King). O fato é que tantas expectativas acabaram sendo frustradas, e "A Fogueira das Vaidades" foi tremendamente mal recebido por público e crítica.

A verdade, entretanto, é que assistindo "A Fogueira das Vaidades" pode-se perceber que o filme, apesar de não ser exatamente um clássico, está muito longe de poder ser considerado um fiasco. Para começar, tendo um virtuose como De Palma atrás das câmeras, é difícil termos algo menos que interessante. Só a seqüência de abertura já vale uma conferida no filme: abusando do recurso de plano seqüência, o cineasta acompanha todo o trajeto do jornalista Peter Fallow (Bruce Willis) do estacionamento até o salão de festas de um luxuoso edifício onde o repórter vai ganhar um prêmio Pullitzer. O que torna ainda mais sensacional tal seqüência é fato de Fallow estar bêbado (a cena dele enfiando a mão em um salmão servido na bandeja é antológica), sendo que os movimentos de câmera são tão vertiginosos que parecem refletir justamente a sensação de ebriedade do personagem. Momentos como esse aparecem ao natural durante boa parte do filme, com De Palma criando climas de verdadeiro pesadelo para Sherman McCoy (Tom Hanks, em um estilo de interpretação que já evocava o estilo catatônico de Forrest Gump).

O que impede que "A Fogueira das Vaidades" seja uma obra cinematográfica que entre no nível de espetacular é que todo o seu rigoroso cuidado na edição e fotografia acabou não bastando para torná-lo uma experiência plenamente satisfatória. "A Fogueira das Vaidades" é um filme que dependia muito de um roteiro bem estruturado, elemento esse que acabou não tendo. Muito das nuances fundamentais para a compreensão do espírito do livro de Tom Wolfe perderam-se em simplificações excessivas da adaptação. Personagens e situações se tornaram bem mais rasos e menos interessantes. Isso pode ser constatado, por exemplo, no frustraste e moralista final, em que o Juiz Leonard White (Morgan Freeman no seu eterno papel do bom negro que aconselha seus amigos brancos) dá um discurso edificante em pleno tribunal, descaracterizando totalmente a intenção original de Wolfe para a conclusão de sua obra, que era mais cínica e pessimista (e, conseqüentemente, bem mais interessante). É claro que com tudo isso não estou dizendo que os melhores filmes são aqueles que têm os melhores roteiros (até porque se fosse assim seria melhor ler livros do que assistir filmes). Apenas considero que existem filmes que pedem, além do cuidado visual, um roteiro elaborado com maior precisão, o que é o caso de "A Fogueira das Vaidades". Philip Kaufman, ao dirigir o anteriormente mencionado "Os Eleitos", teve a preocupação em escrever um roteiro que fosse o mais fiel possível às intenções de Wolfe, o que acabou resultando em uma adaptação que foi melhor sucedida que o filme de De Palma.

Mas mesmo com todos esses problemas, "A Fogueira das Vaidades" é um programa obrigatório para quem curte Brian De Palma e bom cinema, pois em termos de linguagem cinematográfica é bem mais ousado e melhor realizado que os Crashs da vida. E mesmo não estando no melhor de sua obra, De Palma não desistiu de continuar fazer filmes baseados em obras literárias, o que acabou revelando ser uma decisão sábia. Afinal, em 1993 ele acabou realizando aquela que é a sua grande obra-prima, "O Pagamento Final", baseado no livro de Edwin Torres.

Assassinatos do Expresso da Meia-Noite, de Aldo Lado ****


Essa produção italiana de 1978 é uma refilmagem da obra de estréia de Wes Craven, “Aniversário Macabro” (1972), mas é muito mais que um mero remake picareta. Ao contrário do charme amador do filme de Craven, o trabalho do diretor Aldo Lado é marcado por um grau de rebuscamento formal típico das produções setentistas do gênero Giallo. O resultado é um filme ainda mais assustador e tenso que a obra original. As seqüências que se passam no trem do título do filme são marcadas por um suspense mórbido e sórdido, com Lado mostrando apuro estético nos moldes do melhor de Dario Argento, explorando com maestria os ambientes soturnos dos vagões. A caracterização dos marginais estupradores e homicidas que molestam jovens garotas em um dos vagões impressiona pela crueza e ausência de maiores justificativas: eles simplesmente são vilões violentos e sádicos e parecem se deliciar com isso (o que em tempos de politicamente correto como os nossos pode chocar os espectadores mais desavisados).

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

No Direction Home, de Martin Scorsese ****


Tentar explicar o fenômeno Bob Dylan através de um documentário é uma tarefa impossível. Ainda mais se o filme em questão retrata apenas a primeira fase da carreira do bardo americano (1961-1966). Martin Scorsese, entretanto, não se intimidou com a dificuldade da empreitada. "No Direction Home", produção televisiva de 2005, é uma bela tentativa de decifrar o significado daquele que é uma das figuras mais fascinantes da história da música.

Scorsese teve em mãos farto material para realizar "No Direction Home", indo de uma quantidade admirável de registros raros de arquivo (fotos, gravações e filmes, incluindo até trechos de "Don't Look Back", clássico documentário dirigido por D.A. Pennebaker) até depoimentos reveladores tanto de Dylan quanto de pessoas próximas a ele. O cineasta combina tudo isso com maestria notável, utilizando-se de um trabalho de edição que dá uma fluidez e coerência impressionantes para a verdadeira overdose de imagens e informações que nos são mostradas. É fascinante também que a forma com que todo esse material é exibido revela a visão particular de Scorsese sobre a trajetória artística e pessoal do seu biografado, sem que seja necessário apelar para uma constante narração em off. Nesse sentido, a linguagem utilizada é tão bem elaborada em termos cinematográficos que chega a ser um crime que "No Direction Home" não tenha sido exibido na tela grande.

A vida de Bob Dylan não representa apenas uma sucessão de acontecimentos pessoais. A biografia do músico é recheada de fatos e significados que se confundem com várias questões pertinentes à história mundial contemporânea. Scorsese teve a sensibilidade para compreender isso, fazendo com que "No Direction Home" não mostre apenas a história de parte da vida de Dylan, mas também que contextualize com brilhantismo o mundo que o cerca. Nesse sentido, é sensacional a forma com que o cineasta aborda as influências musicais que levaram Dylan a forjar seu estilo único, pois é realizado um extensivo e apaixonado inventário do que de melhor a música norte-americana produziu no século passado. Indo do folk mais tradicional, passando por country e blues e chegando até ao rock, temos um panorama amplo desse aspecto tão rico da cultura dos EUA, sendo que Scorsese tem a sacada de mestre de recuperar e valorizar tremendamente a figura de Woody Guthrie, mestre da música folk e ícone da música protesto e que foi a influência decisiva para a primeira fase da carreira de Dylan, quando o mesmo se consagrou como uma espécie de menestrel moderno.

"No Direction Home" revela também como a trajetória de Dylan confunde-se com um dos períodos mais conturbados do século passado que foram os anos 60. A relação dele com essa época é fortemente paradoxal. Nos primeiros anos da sua carreira nos "sixties", Dylan era visto como um herói para o seu público. Músicos, universitários, intelectuais e a juventude em geral o viam como um resgatador da pureza musical dos EUA e porta voz dos grandes ideais sociais e políticos da época. Praticamente todas as causas civis importantes queriam a participação do músico. Essa lua de mel é interrompida quando Dylan, influenciado pelos Beatles, resolve trocar o violão acústico por uma banda de rock para acompanhá-lo. Isso causa um choque considerável para os seus fãs, o que fica evidenciado na seqüência de "No Direction Home" em que aparece o nosso herói tocando "eletrificado" pela primeira vez no tradicionalíssimo festival folk de Newport em 1965, provocando uma verdadeira trovoada de protestos e vaias por parte da platéia. Outro momento ilustrativo do documentário em relação a esse conflito é logo na abertura, em que Dylan, acompanhado pelos magníficos The Hawks (futura The Band), em show em Manchester na Inglaterra é xingado por parte do público com ofensas como "Judas" ou "traidor". Através de fatos como esses, Scorsese nos dá uma visão bem menos mitificada dos anos 60, mostrando que mesmo na ala dita "libertária" da sociedade havia altas doses de conservadorismo e intolerância. Na verdade, era como se o mundo não estivesse preparado para digerir alguém como Bob Dylan. Exemplo disso são as seqüências que mostram o mesmo sendo entrevistado por repórteres. É engraçadíssimo ver a cara de perplexo de Dylan perante a obtusidade de seus entrevistadores ou as suas respostas irônicas para algumas perguntas incrivelmente cretinas.

A maneira como essa relação conflituosa entre o biografado e o universo de fãs e imprensa que gira em torno dele também faz com que "No Direction Home" seja uma reflexão do papel do artista perante o seu público. Dylan é um músico cheio de inquietações em relação a sua arte. A imprevisibilidade e inconstância são inerentes à sua própria criatividade. Na sua lógica, sua obrigação não está em agradar o público, mas sim em expressar a sua visão artística da forma que ele desejar, por mais absurda ou ilógica que ela possa parecer. Se ele estivesse apenas disposto a fazer o que esperam dele, é provável que não teríamos alguns dos seus mais brilhantes discos e que sua carreira não fosse tão fantasticamente perene como é. E se hoje, em tempos de louvação do arrivismo e mediocridade de "Os Dois Filhos de Francisco", tal posicionamento pode ser profundamente transgressivo, imagina nos anos 60...

Como se pode observar, a gama de questões levantadas por "No Direction Home" é considerável e complexa, sendo que Scorsese consegue colocar tudo isso na tela com uma clareza extrema. Isso ocorre porque o cineasta, apesar de admirador confesso de Dylan, não perde a perspectiva humana de seu biografado. Houve um cuidado para não transformar o documentário apenas numa peça de promoção das qualidades de Dylan. Muito pelo contrário. Scorsese expõe o músico como uma pessoa marcada por fortes contradições e capaz de atitudes não muito louváveis. Isso fica evidente principalmente em alguns depoimentos com uma certa dose de amargura de artistas que foram muito próximos a ele como Peter Seeger, Joan Baez e Liam Clancy, em que Dylan é descrito como uma pessoa capaz de atos não muito éticos para promover a sua carreira. O documentário também mostra as dificuldades dele em lidar com as amenidades de uma rotina caseira normal, o que faz com que o mesmo só sinta-se realmente à vontade quando está na estrada (aliás, o próprio título do filme é uma referência a esse fato). Essa visão franca e sem maniqueísmos simplistas torna ainda mais intrigante a figura de Bob Dylan.

Tudo o que descrevi nesse texto é apenas um brevíssimo resumo. As três horas e meia de "No Direction Home" contém ainda mais informações e imagens preciosas, além de vários momentos com ótima música, e que nos fazem aguardar ansiosamente uma continuação desse projeto tão bem sucedido de Martin Scorsese. Afinal, o filme vai somente até 1966, mais precisamente no dia em que Dylan sofreu um acidente de moto que o deixou "de molho" por alguns anos, sendo que posteriormente ele produziu outros discos antológicos, além de uma série de acontecimentos relevantes que ocorreram na sua vida (para aqueles que querem saber mais, recomendo a excelente biografia "Dylan - A Biografia", escrita por Howard Sounes, e lançada no Brasil pela Editora Conrad). Enfim, "No Direction Home" não é só indicado para fãs de Bob Dylan, mas também para aqueles interessados por grandes filmes ou em conhecer um dos músicos mais geniais de todos os tempos.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Across The Universe, de Julie Taymor ***1/2


É claro que o roteiro esquemático (parece uma versão requentada de “Hair”), o encadeamento meio truncado em alguns momentos entre a trama e os números musicais em si e algumas seqüências mais melosas fazem que “Across The Universe” seja um filme que esteja longe da perfeição. A verdade, entretanto, é que isso são apenas meros detalhes, pois o que interessa nessa produção é a tentativa de tradução da música dos Beatles em imagens. E nisso o filme é bem sucedido. O frescor juvenil e a beleza onírica de algumas seqüências estão em perfeita sintonia com o espírito das canções do quarteto de Liverpool, variando, inclusive, de acordo com a própria evolução artística do quarteto, indo daquelas singelas canções de amor do início de carreira do grupo e chegando até as ousadas experiências deles com psicodelia e arranjos mais complexos. Surpreende positivamente também em “Across The Universe” a criatividade no trabalho de elaboração de novos arranjos para os clássicos dos Beatles, além do fato do filme não se concentrar apenas nas músicas mais óbvias e conhecidas da banda. O resultado é uma obra que impressiona tanto os velhos fãs quanto os neófitos, e que faz com que várias cenas fiquem gravadas no inconsciente de cinéfilos e apreciadores de música em geral, principalmente na fantástica seqüência de abertura na praia ou nos números de viagem de lisérgica de “I’m The Walrus” e “Because”.

Vida de Casado, de Mikio Naruse ****


Ao mesmo tempo que o cinema japonês sempre apresentou uma forte tendência para obras épicas, vide os filmes de samurais de Akira Kurosawa, havia um lado nessa cinematografia que totalmente oposta que eram os filmes de temática intimista e familiar. Nesse campo, o mestre insuperável foi Yasujiro Ozu, mas também havia outros cineastas que enveredavam para esse lado e fizeram filmes marcantes. Um deles foi Mikio Naruse, que em 1951 lançou uma pequena pérola cinematografia japonesa chamada “Vida de Casado”, filme esse que abordava com uma lucidez impressionante um casamento que se desintegra ao poucos devido aos comodismos da rotina. O estilo de filmar de Naruse não é nenhum pouco apoteótico, sendo que a força de seu filme está justamente na sutileza e na calma plácida com que a trama vai de desenvolvendo. Não são oferecidas soluções fáceis, com o filme se tornando aos poucos cada vez mais contundente no seu exame da relação entre marido e mulher. No mundo de Naruse, não existe espaço para o amor romântico redentor, e sim para uma visão mais franca das relações humanas.

Filmeas das Últimas Semanas (cotações de 0 a 4 estrelas)


Eu Sou a Lenda, de Francis Lawrence ***1/2
Alien Versus Predador, de Greg e Colin Strause *1/2
O Gângster, de Ridley Scott ****
Noel – O Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen **1/2
Paranoid Park, de Gus Van Sant ****
Cloverfield, de Matt Reeves **
Sombras de Goya, de Milos Forman ***1/2
A Espiã, de Paul Verhoeven ****
Onde Os Fracos Não Têm Vez, de Joel e Ethan Coen ****
Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, de Tim Burton ****
A Lenda do Tesouro Perdido – Livro dos Segredos, de John Turteltaub *1/2
O Grande Chefe, de Lars Von Trier ***1/2
Juno, de Jason Reitman ***
Proibido Proibir, de Jorge Durán **1/2
Filhos de Hiroshima, de Kaneto Shindô ***1/2
Uma Noite na Ópera, de Sam Wood ****
Faca na Água, de Roman Polanski ****
Balada Sangrenta, de Salley Henzell ***
Festival Express, de Bob Smeaton ***1/2
Punk: Atitude, de Don Letts ***
Exército do Extermínio, de George Romero ****
Dark Star, de John Carpenter ***
Dr. Mabuse – O Jogador, de Fritz Lang ****
Vítimas de Uma Alucinação, de Kiyoshi Kurosawa ****