Num primeiro momento, “As montanhas se separam” (2015) pode
parecer uma obra em que o diretor chinês Jia Zhang-Ke se volta para uma
linguagem cinematográfica mais acessível e convencional, com o cineasta se
embrenhando em preceitos típicos do gênero melodrama familiar. Tal impressão,
entretanto, é enganadora. Com o desenvolver da narrativa, pode-se perceber uma
sutil e irônica desconstrução de clichês formais e temáticos. A obra é repleta
de truques emocionais e estéticos que por vezes beiram o novelesco. Só que o
tratamento artístico do cineasta na realidade envereda por um misto de
caricatura e simbolismo. Numa trama que envolve um triângulo amoroso e relações
familiares disfuncionais, há um subtexto de forte caráter crítico às mudanças
sociais e existenciais provocadas pelo rápido crescimento econômico da China,
principalmente no que diz respeito ao esfacelamento da identidade cultural de um
povo. A abordagem do filme é tão autoral que no terceiro e final ato da
história irrompe a ambientação de uma sombria ficção científica, sem que isso
soe artificial ou esdruxulo – pelo contrário, pois tal atmosfera futurista
complementa com notável sensibilidade e coerência a proposta de reflexão sobre
uma modernidade desumanizadora. Em sua sequência final, a tomada da
protagonista Tao (Zhan Tao), sozinha e serena em sua cozinha fazendo bolinhos
tradicionais, fecha com atmosfera de atemporalidade uma obra que mistura planos
temporais e gêneros cinematográficos com estranha e encantadora fluência.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, junho 30, 2016
quarta-feira, junho 29, 2016
Uma nova amiga, de François Ozon ***
O cineasta francês François Ozon parece ser uma espécie de
cronista dos costumes da sociedade francesa pequeno burguesa contemporânea.
Seus filmes geralmente versam sobre os desejos, os dilemas e as hipocrisias que
rondam as relações humanas nessa faixa social, mantendo uma abordagem narrativa
que ora envereda pelo melodrama contido, ora pela comédia de sutil ironia. “Uma
nova amiga” (2015) é exemplar típico do estilo de Ozon – ao mostrar a
trajetória de David (Romain Duris), homem que após enviuvar da jovem esposa
passa a se travestir de mulher e acaba tendo um caso com a melhor amiga da
falecida (Anaïs Demoustier), o diretor evita o sensacionalismo apelativo e
estéril, procurando ressaltar mais uma atmosfera perturbadora, misto de atração
e repulsa, além de inserir interessantes nuances psicanalíticas e simbólicas dentro
do roteiro. Não chega a ser exatamente uma obra arrebatadora, mas tem uma
narrativa envolvente e que por vezes surpreende com seus desdobramentos entre o
trágico e o cômico. Além disso, o trabalho de direção de atores revela notável
cuidado, principalmente na excelente composição dramática de Duris, que de
maneira natural e progressiva passa a adotar gestual e expressões femininos sem
cair no caricatural.
terça-feira, junho 28, 2016
As mulheres de Adam, de Gerard Stembridge **1/2
A trama da produção britânica “As mulheres de Adam” (2000)
até evocam um certo caráter libertário e contestador ao mostrar como o
personagem do título (Stuart Townsend) se insere dentro de uma família
pequeno-burguesa ao noivar com a jovem Lucy (Kate Hudson), transando com as
irmãs da moça e ganhando a simpatia ainda da mãe e do irmão, fazendo com que
desejos e comportamentos reprimidos se aflorem. A obra procura dar o enfoque de
várias perspectivas sobre o que está acontecendo em cena, o que dá uma
interessa ótica subjetiva para a história. Assim, há momentos bem divertidos e
por vezes até prevalece uma certa atmosfera amoral na narrativa, fazendo
lembrar o clássico “Teorema” (1968) de Pier-Paolo Pasolini. Mas as soluções
formais e mesmo de roteiro do diretor Gerard Stembridge estão longe daquelas do
genial cineasta italiano e não conseguem levar as ousadias iniciais para um
desenvolvimento mais impactante e memorável. No final, até se tem a impressão
de uma simpática produção, mas que dá uma sensação de frustração por não ter
levado até o fim as suas ambições artísticas e existenciais.
segunda-feira, junho 27, 2016
Trago comigo, de Tata Amaral ***1/2
A diretora Tata Amaral já tinha abordado a temática da
ditadura militar no Brasil com resultados interessantes em “Hoje” (2011). Em “Trago
comigo” (2013), ela volta ao mesmo assunto e com uma visão artística ainda mais
ousada e profunda. O filme incorpora maneirismos de cinema documental, com
direito, inclusive, a depoimentos reais de ex-guerrilheiros que foram
torturados na época. Naquilo que seria encenação ficcional, a direção de
fotografia e mesmo a atmosfera também evocam algo de cinema verdade. Como o
foco principal da trama está na montagem de uma peça que versa sobre as
memórias de um antigo membro de um grupo revolucionário, essa distinção entre o
real e o ficcional apresenta uma fronteira tênue, beirando a metalinguagem. Não
se trata apenas de exercício estilístico por parte de Amaral – tais escolhas
estéticas ampliam ainda mais o impacto existencial da produção, cujo subtexto
do roteiro traz uma reflexão sensível e perturbadora sobre a memória,
principalmente na sutil linha que separa a lembrança e o esquecimento. Nesse
sentido, o discurso do filme traz a constatação desconcertante de que mesmo
para aqueles que combateram na clandestinidade e sofreram na própria pele as
consequências da repressão há uma tendência em que determinados fatos traumáticos
se tornem obscuros e esquecidos. O engenhoso jogo narrativo tramado por Amaral
na conjugação ficção-teatro-documentário, aliado ao ótimo elenco (com destaque
para a intensa atuação de Carlos Alberto Ricchelli), amplifica o poder
sensorial de “Trago comigo” em forçar o espectador a entrar dentro de um
complexo e contundente imaginário intimista-político.
sexta-feira, junho 24, 2016
Independence Day: O ressurgimento, de Roland Emmerich **
É bem recorrente ao se observar críticas e análises em geral
sobre um filme como “Independence Day: O ressurgimento” (2016) aparecer
comentários dizendo que se trata apenas de uma ficção científica escapista cuja
única função é divertir e que dessa forma não daria para exigir muito. Tal
argumentação, entretanto, acaba não se sustentando ao se assistir a obra em
questão. Por mais que seja fantasiosa, trata-se de uma produção que traz uma
linha estética e temática destinada a passar uma visão de mundo muito bem
definida. Pode-se ver ao longo da trama, várias sequências em que discursos
patrióticos e edificantes são proferidos, sempre embalados por temas musicais
ultra sentimentais. Isso sem falar das cenas de ação que ressaltam um híbrido
de macheza e disposição de sacrifício por um bem maior (pode ser a pátria, a
família ou simplesmente o sistema). Nesse sentido, tal concepção de ficção
científica paranoica de invasão alienígena pouco difere do clássico “Vampiros
de almas” (1956), em que o simbolismo evidente é dos ETs se relacionarem aos
comunistas. No filme de Roland Emmerich, talvez essa associação seja mais
difusa, em que o alienígena apenas pode ser aquele que seja diferente do padrão
asséptico ocidental de branco-cristão, ainda que o roteiro evoque algo de
democracia racial e global (claro que desde que comandada por militaristas
norte-americanos). No final das contas, trata-se de uma peça de propaganda de
fascismo light, coisa que há havia sido ironizada de maneira genial em “Tropas
estelares” (1997). Mas ainda que esse novo capítulo de “Independence Days” se
leve tão a sério no seu delírio militarista messiânico, não é isso que torna
definitivamente o filme tão frustrante. Há detalhes imagéticos realmente
atraentes, principalmente no que diz respeito a caracterização visual de naves
e aliens, e mesmos algumas sequências de ação bem divertidas, mas tudo isso
sucumbe mediante a falta de uma efetiva tensão dramática, da caracterização unidimensional
de personagens e da narrativa saneada para não chocar as grandes audiências.
quinta-feira, junho 23, 2016
Doce veneno, de Jean-François Richet ***1/2
Em “Inimigo público nº 1” (2008), o diretor francês
Jean-François Richet havia se mostrado como um expressivo herdeiro da linhagem
clássica do cinema policial francês, além de extrair de Vincent Cassel uma
interpretação antológica na pele do bandido Jacques Mesrine. Richet e Cassel
voltam a colaborar em “Doce veneno” (2014), e o resultado final é novamente
memorável. O cineasta envereda por um gênero completamente diverso do seu
aclamado filme anterior, a comédia de costumes, e recicla os clichês inerentes
a esse tipo de produção com notável originalidade e sutileza. Nas primeiras
cenas, Richet até engana de maneira perversa o espectador – os registros das
paisagens interioranas da Córsega são quase assépticos no seu estilo
convencional, enquanto a encenação entre o quarteto de protagonistas remete a
uma bem-comportada comédia romântica. Aos poucos, entretanto, a abordagem
formal e temática de Richet começa a destilar veneno e sagacidade e no final
das contas consegue se mostrar como um contundente e bem-humorado retrato dos
dilemas e hipocrisias da sociedade francesa contemporânea. O próprio fato da
trama se passar na região da Córsega se mostra como uma escolha artística
repleta de simbolismos – a mesma região que apresenta praias idílicas e
atmosfera hedonista também é tomada por preconceitos raciais e valores reacionários.
A partir disso, as nuances intimistas e cômicas do roteiro ganham um
progressivo caráter irônico e contestatório, em que as angústias
pequeno-burguesas de Antoine (François Cluzet) são engolidas pelos sentimentos
e instintos da natureza à flor-da-pele que o cerca, dos javalis que destroem os
muros de sua propriedade até o desejo avassalador de sua filha adolescente pelo
seu melhor amigo Laurent (Cassel). Dentro dessa crônica sobre tesão e desordem,
Richet transporta para seu estilo de filmar uma tremenda carga sensorial. É só
reparar nas sequências das raves, num misto frenético de música e erotismo; ou
nas tomadas da caçada de javalis, que mostram sentimentos e sensações
fora-de-controle. A conclusão sem concessões para moralismos e convenções de “Doce
veneno” é coerente com o espírito da obra, em que o final em aberto mostra um
caráter desafiador e libertário, além de generoso com seus personagens.
quarta-feira, junho 22, 2016
O tesouro, de Corneliu Porumboiu ***1/2
É irresistível fazer comparações esdruxulas para tentar dar
uma ideia do que representa a produção romena “O tesouro” (2015). Uma delas é
pensar em como seria o clássico de aventura juvenil “Os goonies” (1985) refilmado
com adultos no lugar das crianças e adolescentes e com uma abordagem formal e
temática de caráter naturalista, evocando muito do neorrealismo italiano. Tais
associações podem realmente parecer insólitas, mas o filme dirigido por
Corneliu Porumboiu é uma obra bastante surpreendente em sua concepção
artística. O cerne da trama é a busca de um improvável tesouro na área de um
sítio numa cidade interiorana e rural. Só que a contextualização da história
obedece a critérios bastante vinculados a atual conjuntura econômica-social de
grande parte do mundo ocidental, principalmente no que diz respeito ao
cotidiano cinzento de uma sociedade capitalista marcada pelo desemprego e a
exploração econômica. Nesse panorama, a busca por uma vida melhor a partir da
busca de riquezas improváveis acaba soando como um alento diante de uma
realidade opressiva e desesperançada. A encenação proposta por Porumboiu é
engenhosa e original, não recorrendo aos truques habituais das aventuras
norte-americanas para se concentrar numa interação mais humana entre os
personagens e mesmo numa comicidade discreta que surge naturalmente de acordo
com o absurdo ou ridículo de determinadas situações. A partir de tal
direcionamento, o final feliz engedrado pelo roteiro surge com estranha
fluência e um humanismo redentor. A própria canção que surge nos créditos
finais, um irônico e algo épico rock industrial do grupo Laibach, é ilustrativa
dessa reconstrução radical de um gênero apresentada em “O tesouro”.
terça-feira, junho 21, 2016
Big Jato, de Cláudio Assis ***1/2
Pelo menos em termos temáticos, não há grandes novidades em “Big
Jato” (2015). Adaptando um original literário de Xico Sá, o filme mais recente
do diretor Cláudio Assis é uma versão fílmica de um “romance de formação”, ou
seja, de uma obra que versa sobre o processo de amadurecimento de um
protagonista. Nesse sentido, estão lá os dilemas típicos desse tipo de produto
cultural – os desejos e aspirações de um jovem, o duro aprendizado que a vida
lhe oferece, suas desilusões amorosas, o desencanto com a falsa infalibilidade
dos pais, a necessidade de expansão dos horizontes, a consequente despedida da
casa familiar e até da própria cidade em que nasceu. Nesse sentido, até a cena
de conclusão do filme é de talhe clássico e tradicional – o encontro entre o
protagonista Francisco (Rafael Nicário) e o mar pela primeira vez. O fato da
trama se passar numa cidade do interior do nordeste brasileiro também dá um
caráter ainda mais simbólico para a obra, pois o tal processo de mudança
existencial de Francisco também corresponde a alterações no quadro social da
comunidade, numa nem tão sutil alusão elogiosa às mudanças provocas por mais de
uma década de um governo de esquerda. Mas o que diferencia realmente o filme de
Assis como uma produção acima da média em termos artísticos não é esse lado
temático, mas sim a criatividade de seu formalismo e o lirismo de sua
abordagem. É notável como a poesia se insere dentro da narrativa, tornando-se
uma espécie de fio condutor da obra e que se reflete também numa encenação
bastante livre e num elenco de composições dramáticas bastante pungentes. Nesse
último quesito, destaque absoluto para Matheus Nachtergaele em sensacional papel
duplo repleto de nuances, além do belo aproveitamento do cantor e compositor
Jards Macalé como ator. Aliás, o lado musical de “Big Jato” é outra extensão
criativa expressiva das particulares concepções artísticas de Assis, em que a
combinação de eletrônica e regionalismo extraída por DJ Dolores mostra sintonia
magnífica com a narrativa lírica elaborada pelo cineasta.
Num conjunto geral, “Big Jato” não é tão impressionante e mesmo
impactante quanto “A febre do rato”, a obra-prima anterior dirigida por Cláudio
Assis. Ainda assim, é uma experiência cinematográfica memorável, mostrando um
lado do cinema brasileiro que, independente da quantidade de público que
arremata, continua forjando uma linguagem artística própria e ousada.
segunda-feira, junho 20, 2016
Prova de coragem, de Roberto Gervitz *1/2
Havia uma certa confluência de fatores que fazia com que a
produção brasileira “Prova de coragem” (2015), dirigida por Roberto Gervitz,
fosse uma obra promissora. Para começar, a produtora Monica Schmiedt havia
dirigido o ótimo documentário “Extremo sul” (2005), que tinha como mote
principal uma expedição de escalada ao Monte Sarmiento na Terra do Fogo que
acaba fracassando antes mesmo de começar, e que se relaciona a um dos aspectos
principais da trama de “Prova de coragem”. Já o roteiro do filme de Gervitz tem
como base um romance de Daniel Galera, autor esse que já havia tido uma obra
sua adaptada para o cinema com resultados bastante interessantes em “Cão sem
dono” (2007), fazendo um retrato contundente do vazio existencial dos “jovens
adultos” desse novo século. Ocorre que as expectativas geradas por tais
indícios positivos, entretanto, acabam sendo frustradas diante do resultado
final de “Prova de coragem”. O roteiro do filme até sugere algumas questões e
dilemas que poderiam render algo efetivamente capaz de prender a atenção do
espectador, dentro da característica abordagem intimista de Galera, mas o
tratamento formal proposto por Gervitz é tão apático que joga por terra
qualquer chance da produção decolar. Uma encenação engessada e artificial em demasia
(as cenas de flashback, por exemplo, parecem teatro de escola), a narrativa
nada inspirada e o elenco repleto de atuações inexpressivas (o protagonista
vivido por Armando Babaioff, em especial, é um primor de canastrice) jogam o
filme para o limbo das nulidades cinematográficas.
sexta-feira, junho 17, 2016
Dior e eu, de Frédéric Tcheng ***1/2
Talvez retratar os bastidores da concepção da coleção de
grife de moda não seja exatamente um grande atrativo para uma parcela
considerável do público de cinema. O que faz com que o documentário “Dior e eu”
(2014) tenha um alcance mais universal e não se restrinja apenas ao interesse
de iniciados, entretanto, é a abordagem do diretor Frédéric Tcheng. É claro que
o filme traz alguns detalhes técnicos sobre o ambiente da elaboração e
confecção de roupas e dos desfiles, mas a verdadeira tônica do filme é versar
sobre o significado existencial, artístico e mercadológico desse meio,
confrontando a importância da marca Dior com as aspirações e relações humanas
em volta do protagonista Ralf Simons, estilista que fará a sua primeira coleção
para a marca. Roteiro e estrutura narrativa não se acomodam a um simples drama
de superação, ainda que o aspecto emocional se mostre com uma sutileza
comovente. O documentário constrói uma atmosfera quase etérea ao focar a sensibilidade
e transcendência que envolve um projeto como esse. As pressões envolvendo
dinheiro e prestígio estão lá, mas uma das grandes sacadas de Tcheng é expor
isso com sutileza e mesmo ironia, confrontando tais aspectos junto a
personalidade serena e algo delicada de Simons. O cotidiano de tensão na
idealização e feitura da coleção e as sequências de desfile são retratados com
um misto de rigor e fascínio, dando para o mundo da moda uma grandeza
expressiva e transcente mesmo para os olhos daqueles que não entendem muito do
assunto.
quinta-feira, junho 16, 2016
Cobain: Montage of Heck, de Brett Morgen ***1/2
O diretor Brett Morgen teve acesso a um rico (e praticamente
inédito para o grande público) acervo de material de arquivo para realizar o
documentário “Cobain: Montage of Heck” (2015), obra que versa sobre a vida do
falecido líder do Nirvana. Só por isso o filme já valeria uma conferida. São
vários trechos audiovisuais de shows e da vida doméstica do protagonista, depoimentos
de Kurt em fitas-cassetes que acabam compondo uma espécie de diário pessoal,
escritos e desenhos do artista. Além disso, há fartos depoimentos de parentes,
amigos, companheiros de banda. Morgen pega todo esse material e dá uma unidade
narrativa bastante funcional e envolvente. A ordem de apresentação da vida de
Cobain é linear e cronológica, fazendo com que o filme seja bastante
informativo e didático tanto para os admiradores de Nirvana e rock em geral
quanto para aqueles que se interessam pelo conteúdo humano em si da história.
Mas o que torna o documentário uma experiência memorável não é apenas esse seu
caráter histórico (até porque há uma gama considerável de livros e filmes versando
sobre a mesma matéria). O maior mérito de “Cobain: Montage of Heck” é que a
obra joga o espectador para dentro da mente de Cobain, numa verdadeira jornada
sensorial. Mais do que simplesmente reproduzir uma série de fatos biográficos,
a abordagem de Morgen faz com que os aspectos pungentes dos dramas pessoais e
dilemas artísticos do Cobain se tornem ainda mais intensos graças a criativas
escolhas estéticas do diretor (é de se reparar, por exemplo, como as animações
inspiradas nos desenhos e escritos de Kurt se casam com o áudio das fitas
mencionadas com a sua voz). Todo esse direcionamento narrativo e emocional
arquitetado por Morgen acaba se mostrando em sintonia existencial com a
musicalidade a flor-da-pele de discos como “Nevermind” e “In utero”.
quarta-feira, junho 15, 2016
Mais forte que bombas, de Joachim Trier ****
A estrutura narrativa de “Mais forte que bombas” (2015) remete
a um melodrama familiar tradicional. Pelo menos na parte temática, estão lá boa
parte dos elementos temáticos geralmente presentes no gênero: conflitos de
gerações, situações limites que levam a reavaliações pessoais, expiações de
culpas. Mesmo o lado formal do filme, em sua superfície, mostra o apego por uma
abordagem mais clássica. São em pequenas nuances, entretanto, que a obra do
diretor norueguês Joachim Trier se mostra como algo diferenciado. Dentro do
roteiro, são inseridas com sutileza questões sociais e políticas, fazendo com que
o microverso intimista de relações dentro de uma família e daqueles que orbitam
em sua volta seja um reflexo metafórico do conjunto de valores da sociedade
ocidental contemporânea. Nesse sentido, a visão do filme sobre tais questões
foge da obviedade e do moralismo obtuso, o que fica bastante evidenciado na
forma com que o personagem Conrad (Devin Druid) é caracterizado – numa engenhosidade
narrativa de Trier, num primeiro momento o espectador enxerga apenas as
perspectivas de seu pai Gene (Gabriel Byrne) e de seu irmão mais velho Jonah
(Jesse Eisenberg), em que Conrad é retratado de forma genérica como um
adolescente alienado, mas com o desenrolar da trama a perspectiva dominante
passa a ser a do garoto, e é nesse momento que hipocrisias e elementos
disfuncionais são desmascarados de maneira contundente. Dentro de tal concepção
de ideias humanistas, as soluções estéticas de Trier caem como uma luva pela
elegância e originalidade de sua execução, fazendo com que dentro da narrativa
sejam incorporadas com naturalidade influências e referências diversas de
outras mídias, como técnicas documentais de noticiários televisivos,
maneirismos de games eletrônicos e uma narração de textos literários. No
conjunto de tais soluções artísticas, aliado a uma extraordinária trilha sonora
e a um elenco com um punhado de expressivas interpretações, resulta um dos
melhores trabalhos cinematográficos a chegarem nos cinemas nacionais no
corrente ano.
terça-feira, junho 14, 2016
Invocação do mal 2, de James Wan ***
Em relação ao filme que deu origem a série de 2013, “Invocação
do mal 2” (2016) apresenta uma evolução considerável. Os excessos de
virtuosismos formais e a narrativa de talhe mais tradicional conseguem se
equacionar de maneira mais orgânica – ao invés de meros exibicionismos técnicos,
tais detalhes conseguem acrescentar tensão e interesse para a trama. Na
realidade, o trabalho estético do diretor James Wan consegue dar um passo além
nesse novo capítulo da saga sobrenatural. É de se reparar, por exemplo, como o
trabalho de direção de arte se mostra criativo e de forte impacto imagético ao
reconstituir uma ambientação proletária da Londres de final dos anos 70. Tal
concepção não é meramente decorativa, pois torna mais crível o cotidiano da
família de origem humilde que é assombrada numa casa típica de classe operária.
Essa sutil nuance social caracteriza da maneira contundente a estrutura
clássica dessa vertente do horror – a do mal que irrompe de dentro de uma
residência familiar e que espelha aquilo que é disfuncional e conflitante naquele
microcosmo. O filme se desenvolver a partir dos mencionados clichês narrativos
e temáticos, mas o faz com propriedade e sobriedade, além dos elementos “setentistas”
criarem uma estranha atmosfera misto de sentimental e gótica (é só observar
como a canção “Can’t help falling in love” na célebre versão interpretada por
Elvis Presley se insere em momentos chaves da trama). Mesmo o roteiro de “Invocação
do mal 2” é bem resolvido e traz algumas soluções surpreendentes e efetivamente
assustadoras, ainda que trabalhe naquela fórmula variante de “O exorcista”
(1973). No final das contas, não é nada que vá revolucionar o gênero, mas
mostra evolução considerável de James Wan e cria expectativa positiva para um
novo capítulo da série.
segunda-feira, junho 13, 2016
Uma noite em Sampa, de Ugo Giorgetti ***
O diretor Ugo Giorgetti apresenta em “Uma noite em Sampa”
(2016) uma espécie de fórmula artística própria que já havia depurado de
maneira bastante característica em algumas obras anteriores de sua filmografia,
combinando concisão narrativa e economia de recursos estéticos. Dá para dizer
que tal estilo já havia alcançado resultados mais expressivos em filmes como “Festa”
(1989) e “Solo” (2010). Ainda assim, esse seu trabalho mais recente guarda
alguns aspectos positivos que fazem valer uma conferida. A encenação guarda
parentesco com o teatro, valorizando caracterizações caricaturais e exageradas,
mas com o desenvolver da trama tal abordagem acaba se mostrando coerente com o
espírito do filme, em que as situações angustiantes e as reações dos
personagens acabam traçando um raio-x psicossocial da sociedade brasileira
contemporânea, principalmente no que diz respeito a retratar os preconceitos da
classe média nativa. Giorgetti extrai interpretações contundentes de seu
elenco, o que acaba valorizando os diálogos repletos de ironia venenosa. A
narrativa fica num limite nebuloso e perturbador entre o naturalismo e o
delirante – é de se reparar, nesse sentido, no inteligente uso de manequins em
cena e como eles interagem com as figuras em “carne e osso” do filme. No mais, “Uma
noite em Sampa” peca no tom autoexplicativo de algumas sequências, com ênfase na
forma explícita com que coloca a influência de “O anjo exterminador” (1962) em
sua concepção formal e temática. Apesar de tais equívocos, a produção de Giorgetti
reforça ainda mais o caráter autoral do cineasta, mostrando por que ele é um
dos grandes nomes do cinema nacional.
sexta-feira, junho 10, 2016
Maravilhoso Boccaccio, de Vitorio e Paolo Taviani ***
Os irmãos Taviani se permitem algumas ousadias em sua
adaptação para a tela de grande de “Decamerão”. Em “Maravilhoso Boccaccio”
(2015), logo no início, criam um preâmbulo bem diferente daquele da obra
original, dando um caráter mais trágico e melancólico para a narrativa. Tal
abordagem se torna predominante ao longo do filme – o requinte visual e o
elegante trabalho de edição dão à produção uma atmosfera solene. Por vezes esse
direcionamento artístico soa um tanto incômodo, dando uma impressão de assepsia
formal que pode tornar o espectador indiferente ao filme, fazendo com que a
qualidade atemporal das histórias criadas por Boccaccio sejam o principal
gancho de interesse. Nesse sentido, tal concepção tem um resultado final
frustrante se houver comparação com a magnífica e definitiva recriação cinematográfica
do mesmo texto literário pelo mestre Pier-Paolo Pasolini e também se vier à
mente o antológico resgate de Shakespeare pelos próprios Taviani em “César deve
morrer” (2012). Nesse sentido, também não para esquecer a fenomenal adaptação
que eles fizeram de histórias de Pirandello em “Kaos” (1984). Mas ainda que não
esteja nesse panteão de obras memoráveis, “Maravilhoso Boccaccio” é um trabalho
capaz de gerar interesse pelo simples fato de os irmãos diretores serem
artistas muito acima da média, em que mesmo num trabalho menor conseguem
transparecer quesitos notáveis como direção de arte esmerada, fotografia
deslumbrante em algumas sequências e uma encenação repleta de achados
dramáticos.
quinta-feira, junho 09, 2016
Yorimatã, de Rafael Saar ***1/2
Documentários sobre música virou uma prática mais que
recorrente no cinema brasileiro contemporâneo. Praticamente todos os grandes
nomes do cancioneiro nacional e os gêneros mais expressivos do país já
mereceram um filme (alguns, até mais que um). Até mesmo a apreciação de tais
obras, tanto por parte de público quanto de crítica, acaba recebendo uma
abordagem diferenciada, pois mesmo quando a produção em si não é grande coisa,
o fato de estar trazendo para a tela grande a arte e a vida de algum grande nome
ou os meandros de um estilo muito estimado acaba tornando a experiência
cinematográfica em questão algo no mínimo válido. Dentro desse panorama, “Yorimatã”
(2014) se mostra como uma obra singular. Ao abordar a trajetória artística e
pessoal da dupla de compositoras e cantoras Luhli e Lucina, o documentário do
diretor Rafael Saar cumpre um papel multifacetado, afetando o espectador por
diversos fatores – é informativo e didático por tornar mais conhecidos fatos
relativos a artistas que são obscuras para o grande público (apelar delas terem
composto sucessos antológicos para os Secos e Molhados e para a carreira solo
de Ney Matogrosso); é sensorialmente rico ao conseguir transformar em narrativa
visual a musicalidade expansiva de suas biografadas; é pungente ao evidenciar a
sensibilidade à flor-da-pele e o caráter libertário da arte e vida das
protagonistas; é estimulante na sua dinâmica cinematográfica, ao combinar com
concisão e leveza os elementos tradicionais desse tipo de produção (números
musicais, imagens de arquivo, depoimentos e imagens contemporâneos). O
resultado das acertadas escolhas estéticas e temáticas de Saar é um
documentário de narrativa que encanta sem fazer perceber as horas passando e
que dá uma baita vontade de ir atrás dos discos e canções de Luhli e Lucina. O
que mais poderia se esperar de um documentário musical?
quarta-feira, junho 08, 2016
X-Men: Apocalipse, de Bryan Singer **
“Primeira classe” (2011) e “Dias de um futuro esquecido”
(2014) foram obras que apresentaram uma síntese narrativa e soluções dramáticas
que deram uma expressiva arejada para a franquia “X-Men” nos cinemas, depois do
frustrante “O confronto final” (2006), principalmente por quesitos como a preservação
da essência de personagens e situações originários das HQs originais, marcantes
cenas de ação, concisão narrativa e roteiros enxutos e coerentes. Essa receita
pode até parecer simples, mas foi executada com notável eficiência,
respectivamente, pelos diretores Matthew Vaughn e Bryan Singer. No novo capítulo
da saga dos mutantes no cinema, “Apocalipse” (2016), Singer dá prosseguimento
ao seu trabalho de direção, mas parece esquecer as qualidades dos filmes
anteriores. É uma obra espalhafatosa, melodramática em excesso, com sequências dispensáveis
e diálogos autoexplicativos em demasia. A obra a todo momento parece buscar uma
grandeza épica e sombria, mas nunca consegue justificar tal pretensão em função
de uma encenação truncada e sem naturalidade e de um roteiro pueril que mesmo o
nerd ou geek mais fanático e sem critérios dificilmente conseguiria engolir. Se
era tão fácil para a Jean Grey (Sophie Turker) usar a Força Fênix, por que não
fez isso desde o início para dar um fim no vilão Apocalipse (Oscar Isaac)? Magneto
(Michael Fassbender) mata dezenas de pessoas à sangue frio, e depois se
arrepende com facilidade e ninguém dos X-Men pensa em levá-lo às autoridades,
ignorando as latentes tendências homicidas do vilão? A caracterização dos
personagens também deixa muito a desejar: o professor Xavier (James McAvoy) e
Mística (Jennifer Lawrence) passam boa parte da trama disparando discursos
ingênuos e edificantes, Magneto (Michael Fassbender) é um mero imbecil
facilmente manipulável, Mercúrio (Evan Peters) dá a impressão de ter saído de
um episódio de “Os trapalhões”, o pretensamente temível Apocalipse tem
imponência nula. Na verdade, a noção geral que se tem ao assistir a “Apocalipse”
é a de uma obra feita às pressas e sem muito critérios, a fim de levantar um
lucro fácil sob o pretexto de que quem gosta de filmes de super-heróis não deve
ser muito exigente.
terça-feira, junho 07, 2016
Antibirth, de Danny Perez ***
O diretor norte-americano Danny Perez também é um videomaker
bastante vinculado ao universo de bandas neopsicodélicas contemporâneas como
Animal Collective e Unknown Mortal Orchestra. Numa das festas da edição de 2016
do FANTASPOA, teve uma performance antológica ao discotecar um set alucinado de
psicodelia, eletrônica e industrial associado a uma projeção de trechos de
filmes marcados pela esquisitice e escatologia. Toda essa sua herança “clipeira”
fica evidente no longa-metragem ficcional “Antibirth” (2016) – ambientação delirante
e sórdida, edição de traço frenético, magnífica trilha sonora de canções de
rock underground. Há ainda referências ao universo fílmico de diretores como
Roman Polanski, David Lynch e David Cronenberg. Esse acúmulo de influências e
referências por vezes tornam a narrativa algo trôpega, pouco fluente. Em seus
melhores momentos, contudo, “Antibirth” se insinua na mente do espectador como
um pesadelo memorável e perturbador, em que o retrato sujo e melancólico do
cotidiano de junkies, criminosos pé-de-chinelo e fracassados em geral se casa,
de maneira surpreendentemente natural, com uma trama que mistura horror e
ficção científica, com direito a um desempenho inesquecivelmente escroto de
Natasha Lyonne, No geral, uma verdadeira pedrada sensorial que dificilmente
poderá ser vista em algum multiplex da vida.
segunda-feira, junho 06, 2016
A caçada do futuro, de Brian Trenchard-Smith ***1/2
Assim como “Drive-in da morte” (1986), outra obra de ficção
científica dirigida também por Brian Trenchard-Smith, “A caçada do futuro”
(1982) envereda por uma trama que apresenta um futuro distópico dominado pelo
totalitarismo, em que as liberdades individuais foram sacrificadas em nome de
uma rigorosa segurança pública. O que as diferencia é que “Drive-in da morte”
apresenta uma abordagem mais sombria e de atmosfera mais sufocante e
perturbadora, enquanto “A caçada do futuro” é uma aventura descabelada, quase
delirante. Na sessão comentada no FANTASPOA desse último, o próprio
Trenchard-Smith declarou que o filme é fruto da criatividade que usou de acordo
com as limitações de recursos impostas pelos produtores. Mais apressados podem
confundir tal formalismo da produção com características de cinema trash. Nada
mais equivocado: por mais que efeitos possam aparentar uma precariedade, a
dinâmica narrativa impressa pelo cineasta, com direito, inclusive, a utilização
de trechos documentais alheios, e a caracterização visual suja remetem a um
cinema estilo exploitation insanamente divertido e de uma composição imagética
de alto impacto sensorial que pode soar incômoda para os acostumados com a
assepsia visual dos efeitos digitais tão em voga nas contemporâneas obras do
gênero.
sexta-feira, junho 03, 2016
Drive-in da morte, de Brian Trenchard-Smith ****
O diretor australiano Brian Trenchard-Smith, bastante ativo
nos anos 70 e 80 com filmes na linha exploitation, tem Quentin Tarantino como
um dos seus grandes admiradores confessos. Ao se assistir a “Drive-in da morte”
(1982) se pode entender o motivo de tal admiração. O filme é uma brilhante
síntese entre ficção científica apocalíptica casca grossa, filme de gangues
adolescentes e parábola sócio-política, algo como uma combinação entre “Mad Max”,
comédias adolescentes oitentistas de John Hughes e a visão sombria de um futuro
distópico de “1984” de George Orwell. A direção de Trenchard-Smith é fenomenal
ao entrelaçar essas referências diversas com notável coesão e naturalidade. A encenação
é exagerada, operística mesmo, evidenciada nas coreografias quase delirantes de
lutas e nas alucinadas sequências automobilísticas, mas ao mesmo tempo revela
surpreendente sutileza ao ressaltar as nuances contundentes do subtexto do
roteiro que discorre sobre preconceitos sociais e raciais, alienação e
violência estatal. A direção de arte também é peça fundamental dentro da
originalíssima concepção artística da produção, em que o mau gosto de figurinos
e os cenários urbanos em ruínas colaboram na perturbadora atmosfera de sordidez
e opressão que paira sobre a narrativa, impressão essa reforçada pela fotografia
“realismo neon” que era bem característica da época. Voltando a fazer
comparações, o formalismo insólito e a abordagem temática de Trenchard-Smith
remetem a um Walter Hill dirigindo “Ruas de fogo” (1984) entupido de
anfetaminas e transbordando revolta política.
quinta-feira, junho 02, 2016
O diabo mora aqui, de Rodrigo Gasparini e Dante Vescio ***
Desde da consolidação da figura de Zé do Caixão, parte da
evolução do cinema de horror brasileiro passa pela síntese entre influências de
referências estrangeiras dentro do gênero e a incorporação de uma mitologia
nacional típica. “O diabo mora aqui” (2015) é um exemplar enfático dessa
tendência. Muito mais do que simples exotismo, as referências culturais e
históricas na trama do filme são as principais responsáveis pela sua forte
tensão dramática e pelos seus momentos imagéticos mais impactantes. A questão
da escravatura no país e as suas nefastas consequências que perduram até hoje,
principalmente no que diz respeito às desigualdades de classes sociais, dão um
sentido assustador a um roteiro que envolve elementos tradicionais do horror
como zumbis, assombrações e uma casa que é a origem do mal. Influências óbvias
como a franquia “Evil Dead” são incorporadas com naturalidade, vide o uso de expressivas
trucagens e uma encenação de raras dinâmica e desenvoltura, fazendo de “O diabo
mora aqui” uma obra de horror bem divertida e eficiente em gerar sustos do que
a grande maioria das pasteurizadas produções norte-americanas no gênero que
costumam aportar por aqui nos últimos tempos.
quarta-feira, junho 01, 2016
Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois, de Petrus Cariry ***
Se “A bruxa” (2015) apresenta uma síntese perturbadora entre
elementos de filme de horror com uma visão existencial libertária em relação a
condição feminina numa sociedade patriarcal, “Clarrise ou alguma coisa sobre
nós dois” (2015) também envereda por caminhos semelhantes, propondo enquadrar
uma narrativa intimista e de atmosfera sombria no gênero drama familiar dentro
de uma estrutura de terror psicológico. O diretor Petrus Cariry demonstra uma
propensão para um contundente e sutil jogo de simbologias a esquadrinhar a
estranha relação entre a protagonista Clarisse (Sabrina Greve), burguesa e
frígida, com seu pai moribundo (Everaldo Pontes), com boa parte da ação se
desenvolvendo numa grande casa encravada no meio de uma floresta. A tensão não
é extraída de truques manjados de suspense, mas sim de incômodos silêncios,
gestuais contidos, olhares expressivos e imagens sugestivas (o corpo velho
repleto de chagas, uma masturbação frustrada, a árida pedreira, a densa
vegetação da floresta), além de eventuais toques oníricos e delirantes. A
encenação meticulosa, com desenvolvimento que remete a influências de tragédia
grega, valoriza um roteiro que demole com perversidade a moral pequeno-burguesa,
mostrando como sentimentos, traumas e ambição social se relacionam com
naturalidade dentro da sociedade capitalista ocidental contemporânea. Ainda que
os excessos psicanalíticos possam tornar a narrativa um tanto hermética, é
inegável o impacto que algumas soluções temáticas e estéticas tem sobre o
espectador, principalmente no ritual de morte do pai e a consequente sequência violenta
e sangrenta de sexo que encerra o filme.
Assinar:
Postagens (Atom)