Se “Debi & Lóide: Dois idiotas em apuros” (1994) é uma
pérola da comédia grosseira e escatológica e a continuação “Debi & Lóide 2”
(2014) é uma sequência digna e divertida, o derivado “Debi & Lóide: Quando
Debi conheceu Lóide” (2003) é uma produção bem menos inspirada. A explicação é
simples: o diretor Troy Miller está bem distante de ter o mesmo domínio narrativo
e senso de humor alucinado dos irmãos Farrelly, enquanto Derek Richardson e
Eric Christian Olsen não chegam aos calcanhares do carisma de Jim Carrey e Jeff
Daniels. Assim, o que resta é uma produção genérica e sem graça, incapaz de
manter o interesse do espectador.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, março 31, 2017
quinta-feira, março 30, 2017
T2: Trainspotting, de Danny Boyle **1/2
A ideia para uma continuação de “Trainspotting” (1996) não
chega a ser meramente oportunista. Pelo fato de ser uma produção bastante
emblemática para a época, era natural que houvesse uma expectativa para ver
como os principais personagens estariam enquadrados dentro das contradições,
dilemas e conflitos típicos da atualidade (e que de certa forma são decorrentes
de tais elementos correspondentes da década de 90). O resultado final de “T2:
Trainsportting” (2017), entretanto, é bem decepcionante. É claro que seria
difícil chegar no mesmo nível do primeiro filme, uma das grandes obras-primas
do cinema das últimas décadas. Mas a abordagem artística escolhida pelo diretor
Danny Boyle foi equivocada em suas concepções e falha na sua realização. Ao
invés daquela formatação original de comédia dramática de atmosfera ambígua,
hedonista e algo delirante, essa produção mais recente se desenvolve como um
melodrama mais convencional, moralista e beirando o sentimentalismo excessivo,
ainda que Boyle insira na narrativa alguns maneirismos estéticos “moderninhos”.
É claro que existem aspectos positivos que dão uma certa aura carismática para
o filme: algumas sequências são bem divertidas na sua síntese de comicidade
ácida e violência gráfica, a trilha sonora cancioneira é excelente e foge do
óbvio, o quarteto principal de personagens conta com ótimas caracterizações
dramáticas. Mas são detalhes isolados que acabam engolidos pela estética
preguiçosa e por um roteiro que se rende a soluções conservadoras e previsíveis.
Por vezes o espectador pode até dar umas risadas ou ficar tenso em algumas
passagens mais expressivas, mas a sensação geral é de indiferença diante da
apatia criativa do trabalho de Boyle. Provavelmente, deve ser por isso que ao
longo da narrativa são exibidos vários trechos do primeiro filme, como se fosse
necessário lembrar da importância artística da obra de 1996 diante da
irrelevância de “T2”.
quarta-feira, março 29, 2017
Super, de James Gunn ***1/2
A premissa inicial da trama de “Super” (2010) nem chega a
ser exatamente uma grande novidade: depois de alguns desgostos pessoais, o
pacato Frank (Rainn Wilson) decide se tornar um vigilante uniformizado pronto
para combater o crime. O grande diferencial do filme está na abordagem do
diretor James Gunn para essa pequena e um tanto ridícula “saga”. Não há grandes
efeitos especiais e nem coreografias espetaculares de lutas – a narrativa envereda
mais por um misto de humor negro de comicidade perturbada, escatologia e
violência explicitas e caracterização psicológica marcada pela crueza. A
atmosfera do filme se alterna entre o sombrio e o sórdido, enquanto a encenação
também mostra um caráter ambíguo na combinação entre realismo e exagero escrachado.
Em meio as sequências de explosões grotescas de brutalidade e delírios
metafísicos, há um contundente subtexto de reflexão sobre a solidão e o vazio existencial
do indivíduo na sociedade ocidental contemporânea. Nesse sentido, “Super” se
mostra uma produção singular na forma com que entrelaça o aspecto de ser bem divertida
na sua síntese de comédia tresloucada e ação casca-grossa com uma visão
existencial bastante arguta na sua ácida lucidez.
terça-feira, março 28, 2017
Irmã, de Zach Clark **1/2
Para os acostumados com os melodramas padrão Hollywood sobre
famílias disfuncionais, “Irmã” (2016) pode até causar alguma surpresa por
algumas aparentes “esquisitices” formais e temáticas – personagens com algumas
bizarrices em suas caracterizações, formalismo com um certo tom de crueza,
roteiro que sugere uma visão mais libertária e menos moralista em suas
soluções, a ótima trilha sonora baseada em solos de baterias desgovernados e
memoráveis canções no estilo “metal punk gótico”. Além disso, a trama traz um
interessante recorte histórico, pois se desenrola pouco antes da primeira
eleição de Barack Obama para presidente dos Estados Unidos, o que evidencia a
expectativa e a esperança de tempos melhores depois de uma gestão republicana
marcada por guerras e perseguições políticas. No final das contas, entretanto,
tais aspectos diferenciais não conseguem interagir de forma plenamente
satisfatória, resultando em uma narrativa oscilante e por vezes
despersonalizada na sua constante reciclagem de clichês típicos do cinema
independente norte-americano. É claro que por vezes em algumas passagens o
filme até consegue divertir e mesmo gerar algum encanto, principalmente na
sequência da festa de halloween particular da família da protagonista Colleen
(Addison Timlin), mas falta uma direção mais segura e ousada por parte do
diretor Zach Clark no sentido de explorar com mais criatividade alguns fatores
promissores da trama. Nesse sentido, é só lembrar do extraordinário “O casamento
de Rachel” (2008), que a partir de temática e estética semelhantes à “Irmã”
tinha um resultado final bem mais impactante.
segunda-feira, março 27, 2017
Fragmentado, de M. Night Shyamalan ***1/2
Na conclusão da trama de “Fragmentado” (2017), fica
estabelecida uma conexão com “Corpo fechado” (2000) no sentido de que haja uma
inter-relação entre as obras pelo fato de pertencerem a um mesmo universo
existencial, havendo até uma sugestão de que haverá uma continuação ou assemelhado
promovendo o encontro entre personagens de ambas as produções. Mas a
aproximação que se pode fazer entre esses dois filmes não se dá apenas por essa
questão. Nos dois trabalhos se pode observar semelhanças em termos de concepção
artística, tanto pelo lado estético como o temático – é como se o diretor M.
Night Shyamalan promovesse uma espécie de releitura particular do gênero “aventura
de super-heróis” no cinema, com a diferença de que em “Corpo fechado” ele
mostrou a gênese de um campeão do “bem”, enquanto que em “Fragmentado” está em
foco a origem de um supervilão. Se no filme mais antigo havia algumas ideias
interessantes que foram mal trabalhadas e acabaram resultando em uma obra um
tanto vacilante e truncada em termos de narrativa e que se levava demasiadamente
a sério, em “Fragmentado” abordagem e execução demonstram uma evolução
impressionante. Shyamalan não temeu cair no exagero e mesmo no ridículo, dando
ao seu filme uma atmosfera tensa, sórdida e beirando o delirante. Filmes de
super-herói exigem uma dimensão épica e icônica em sua concepção, e o cineasta
parece ter entendido tal necessidade. Ao invés de se prender em caracterizações
psicológicas pretensiosas ou nos excessos melodramáticos de histórias paralelas
como havia ocorrido em “Corpo fechado”, “Fragmentado” investe numa dinâmica
narrativa mais objetiva, com direito a sequências de ação de notável
desenvoltura cênica e a uma atuação alucinada de James McAvoy (é impressionante
como olhares e gestos se alternam com naturalidade a cada personalidade que se
muda do protagonista Kevin). E mesmo as sequências de flashback com Casey (Anya
Taylor-Joy) se incorporam à trama de forma surpreendente, sem a necessidade de “amarrar
pontas” e reforçando o caráter ambíguo e misterioso de “Fragmentado”. Assim, no
seu conjunto geral, “Fragmentado” até faz imaginar como seria se Shyamalan
fosse dirigir algum filme da Marvel ou da DC.
sexta-feira, março 24, 2017
As senhoras de Salem, de Rob Zombie ***
Pode-se perceber um padrão autoral peculiar no cinema de
horror praticado pelo diretor norte-americano Rob Zombie. Ainda que trafegue
por alguns dos tradicionais preceitos narrativo do gênero, o cineasta consegue
se diferenciar por uma visão mais sombria e ambígua nas tramas de seus filmes,
em que maniqueísmos na oposição entre o bem e o mal ficam mais difusos, assim
como pela abordagem formal apresentar um estranho e perturbador misto de crueza
e delírio barroco. Tal concepção artística atingiu seu grande ponto alto na
obra-prima “Rejeitados pelo diabo” (2005), mas “As senhoras de Salem” (2013)
preserva ainda bastante do estilo de Zombie. O roteiro centra num dilema básico
dos filmes sobre bruxas, a de mulheres moradoras de Salem que nos dias atuais
ainda sofrem a influência das feiticeiras que séculos atrás foram mortas pelos
fanáticos religiosos da região. O trunfo da produção está na atmosfera sórdida
que permeia a narrativa e na encenação austera realizada por Zombie – nesse conjunto
estético, o filme avança como uma espécie de trágico e algo irônico conto
gótico, em que a sensação de inevitabilidade do triunfo do mal é permanente. As
caracterizações dos personagens são convincentes e carismáticas e se revelam em
sintonia com a ambientação de teor épico e macabro de algumas marcantes
sequências, principalmente na conclusão brutal do filme.
quinta-feira, março 23, 2017
Personal shopper, de Olivier Assayas ****
Depois de se aventurar por drama de época (“Destinos
sentimentais”), policial (“Clean”) e memorialismo (“Depois de maio”), o diretor
francês Olivier Assayas voltar a enquadrar o cinema de gênero dentro de seus
peculiares padrões autorais. Em “Personal shopper” (2016), o cineasta envereda
pelos preceitos do horror sobrenatural e os recicla dentro de uma narrativa que
versa sobre alienação e vazio existencial. Pode até parecer pretensioso em suas
intenções artísticas, mas o resultado final é orgânico e contundente. Roteiro e
encenação obedecem a um padrão estético e existencial marcado pelo rigor e pela
coerência, em que alguns clichês formais e temáticos do gênero fantástico
(casas assombradas, espíritos desajustados) vão se moldando dentro de um
formato misto de conto moral e crônica de costumes. Essa abordagem artística de
Assayas tem uma ambiguidade ora atraente, ora perturbadora, fazendo com que o
filme utilize signos visuais que aludem à modernidade, tanto nos aspectos
tecnológicos quanto nos padrões de beleza, para reforçar uma ideia de
fascinação por alguns prazeres mundanos. Diferente da patética glorificação do
materialismo perpetrada por “Cinquenta tons de cinza” (2015), entretanto, tal
direcionamento narrativo tem a função de caracterização do ambiente que
circunda a protagonista Maurenn (Kristen Stewart), mostrando os aspectos
contraditórios de sua personalidade que trafegam no limite entre o intimismo de
seus desejos e inquietações pessoais e a sua vivência social/profissional.
Nesse sentido, a visão da obra sobre o metafísico se distancia bastante das
obviedades moralistas e maniqueístas, em que a vontade de Maurenn em contatar
com o irmão falecido esconde de maneira sutil a sua incapacidade de lidar de
forma lúcida com a realidade fática em sua volta, evidenciada, principalmente,
na forma com que a personagem é envolvida na sórdida trama de sexo, dinheiro e
assassinato entre a sua empregadora e o amante.
quarta-feira, março 22, 2017
Insubstituível, de Thomas Lilti **1/2
É bem provável que se “Insubstituível” (2016) fosse
realizado dentro dos padrões “normais” de Hollywood o resultado final seria bem
diferente. E para pior. O estilo do diretor Thomas Lilti tem uma certa
discrição emocional e há uma sobriedade na condução da narrativa. O subtexto da
trama tem carga simbólica considerável em termos de observação política e
social – fala de um conjunto de valores típicos de uma concepção de bem-estar
social que foi típica da Europa Ocidental por décadas e que agora se encontra
em declínio. Ainda que tenha esses pontos relevantes, essa produção francesa se
mostra um tanto anacrônica e desprovida de uma maior identidade artística tendo
em vista estar muito ligadas a convencionalismos formais típicos do melodrama.
A estética discreta da direção de Lilti é até por vezes agradável, mas falta a “Insubstituível”
aquela tensão dramática e mesmo a fúria existencial que tornaram tão cativantes
e memoráveis filmes como “Aquarius” e “Eu, Daniel Blake”, outros dramas sociais
lançados em 2016.
quinta-feira, março 16, 2017
A origem da vida, de Dennis Lee *
Há produções que conseguem sintetizar o estereótipo negativo
de determinadas vertentes cinematográficas. “A origem da vida” (2012) é um
exemplar claro desse tipo de situação. No filme do diretor Dennis Lee se
concentra aquilo que há de pior e mais caricato no cinema “indie”
norte-americano – assepsia formal, melodrama rasteiro travestido de pseudoprofundidade,
personagens caricatos, atmosfera entre o meloso e o “fofinho”. Resultado final:
dispensável e esquecível.
quarta-feira, março 15, 2017
Kong: A Ilha da Caveira, de Jordan Vogt-Roberts ***
Ao contrário das produções de 1976 e 2005, “Kong: A ilha da
caveira” (2017) não é uma refilmagem da obra clássica de 1933. O filme dirigido
por Jordan Vogt-Robert pega alguns conceitos e elementos já trabalhados nas
obras anteriores e as recria sob uma perspectiva diferente e mesmo uma nova
trama. Assim, o espírito de cinema B, ou mesmo de cultura “pulp”, está mais
presente, não havendo a dimensão trágica dada anteriormente ao protagonista. E a
escolha de situar a trama na primeira metade da década de 70 não é gratuita,
pois o subtexto do roteiro faz uma analogia clara entre o caráter belicoso de
um pelotão do exército norte-americano perdido na Ilha da Caveira e com a
missão de exterminar Kong e a postura intervencionista dos Estados Unidos na
Guerra do Vietnã e em outros conflitos pelo mundo que grassaram nas últimas
décadas. Tal paralelo político é feito até de maneira eficiente, e surpreende
que uma produção de um grande estúdio norte-americano faça com que o público torça
descaradamente pelo macacão contra as forças armadas do Tio Sam. Como aventura,
o filme não tem aquele fascinante clima de pesadelo da versão original dos anos
30 e nem aquele senso alucinado de encenação da obra dirigida por Peter
Jackson. Ainda assim, é uma divertida aventura, com boas cenas de ação e ótima
caracterização imagética dos monstros, além da direção de arte trazer uma
síntese expressiva de estilização exagerada e recriação de época de razoável
fidelidade histórica. Nesse sentido, é interessante a forma com que as canções
roqueiras da época se inserem da narrativa – aliás, a sequência em que os
helicópteros entram pela primeira vez na Ilha da Caveira ao som de uns rocks da
pesada faz lembrar algumas cenas memoráveis de “Apocalypse Now” (1979).
terça-feira, março 14, 2017
Jovens, loucos e mais rebeldes, de Richard Linklater ***1/2
As comédias “estudantis”, formato que trazia obras cômicas
que retratavam o cotidiano de jovens classe média em meio a confusões pueris e
descobertas sexuais, se consolidaram como expressivo gênero cinematográfico no
final da década de 70 e boa parte dos anos 80, vide obras como “Clube dos
cafajestes” (1978) e “Porky’s” (1982). O diretor Richard Linklater realiza em “Jovens,
loucos e mais rebeldes” (2015) uma recriação bastante particular desse
universo. Estão lá no filme boa parte dos elementos narrativos inerentes ao
gênero, mas o que diferencia a abordagem de Linklater é a sua encenação sutil e
levemente reflexiva e o estabelecimento de um contexto existencial mais amargo
e irônico. Situada em 1980, a trama se concentra nos últimos dias que antecedem
o começo das aulas em um campus universitário. Há algo de solene na forma com
que Linkater marca o decurso do tempo, como se o passar das horas indicasse os
últimos momentos de inocência e de uma saudável alienação por parte do
protagonista Jake (Blake Jenner) antes que a rotina de obrigações estudantis e
sociais se concretize. Nesse viés, ainda que o verniz aparente seja de
homenagem a um determinado estilo de filme, há também uma intenção de fazer uma
dessacralização do gênero focado. Em meio a esse subtexto mais profundo e às
discretas ousadias do diretor, o filme também sabe preservar as qualidades
desse tipo de comédia: ótimas sequências cômicas, personagens carismáticos e a
preservação carinhosa do velho ideário “sexo, drogas e rock and roll”.
Silêncio, de Martin Scorsese ****
No livro de ensaios “A civilização do espetáculo”, o
escritor peruano Mario Vargas Llosa emite um controverso comentário sobre a
religião – ainda que declaradamente ateu, considera que a religião ainda seja a
melhor forma de civilizar o homem moderno, no sentido que esse sentimento
místico lhe atribuiria um conjunto de valores e ideais que lhe dariam alguns
princípios éticos e morais que o impediriam de cair na barbárie, ainda mais
pelo fato de que a arte, o conhecimento científico e a cultura, outros motores
desse processo de humanização, tem uma ascendência cada vez menor perante esse
homem no mundo contemporâneo. Ainda que tal raciocínio seja questionável,
evidencia que a religião como instituição e sentimento não pode ser dissociado
do contexto histórico-político em que está inserida. “Silêncio” (2016), a mais
recente produção dirigida por Martin Scorsese, é uma obra que retrata de forma
contundente essa conturbada relação da humanidade com a sua religiosidade. Para
isso, Scorsese utiliza uma abordagem narrativa-existencial fascinante pela sua
ambiguidade – ao mesmo tempo que reforça uma admiração pela fé cristã de seu
protagonista, o padre Sebastião Rodriguez (Andrew Garfield), em seu poder de
lhe dar tenacidade em fazer valer o seu credo diante das mais terríveis
circunstâncias, também insinua uma crítica à incapacidade do personagem em
entender e aceitar o complexo cenário social e cultural do Japão do século
XVII, o que reflete uma visão de mundo eurocêntrica e colonialista.
As sutilezas da temática de “Silêncio” se relacionam de
maneira perturbadora com as escolhas formais de Scorsese, em que prevalecem um
rigor estético em termos de encenação, fotografia e edição. O registro
audiovisual evoca sintonia com um olhar estrangeiro – os cenários e o povo do
Japão são envoltos numa atmosfera que sintetizam crueza naturalista, mistério e
exotismo. Nesse sentido, o filme faz lembrar “Apocalypse Now” (1979) e algumas
das obras de Werner Herzog, como “Aguirre e a cólera dos deuses” (1972) e
“Fitzcarraldo” (1982), principalmente no sentido em que estranhamento e
desconforto sensoriais se relacionam com o sentimento atávico de temor do
indivíduo ocidental diante de cenários, nativos e costumes que lhes são
desconhecidos. Essa singular linguagem cinematográfica que Scorsese delineia em
“Silêncio” também é marcada pela dubiedade, em que o deslumbre imagético de várias
cenas se confunde com uma certa crueldade na forma com que a violência gráfica
se manifesta em cena e mesmo com a aridez emocional de outros momentos. Nesse
último quesito, o filme é bastante radical em sua coerência artística – é de se
reparar, por exemplo, que praticamente não há temas incidentais na trilha
sonora para enfatizar a dramaticidade das cenas. Aliás, dentre outras escolhas
desconcertantes de Scorsese para “Silêncio” está a forma com que a própria
cultura japonesa é retratada no filme. Mais do que simples antagonistas na trama,
a caracterização de fatores comportamentais e personagens japoneses tem uma notável
profundidade e sensibilidade. Se em termos cênicos a produção revela
influências claras e bem trabalhadas de clássicos do cinema nipônico,
principalmente aqueles que aludiam ao universo dos samurais, há também o
cuidado no roteiro de expor as particularidades do pensamento e filosofia
particulares que norteiam as concepções existenciais daquela sociedade. Nesse
sentido, os diálogos entre membros do governo com o padre Rodriguez sobre a
impossibilidade do cristianismo se firmar no Japão são fascinantes no seu misto
de fundamentação cultural e ironia.
sexta-feira, março 10, 2017
Um duende em Nova York, de Jon Favreau ***
O diretor norte-americano Jon Favreau parece manter em sua
filmografia um certo ideário artístico: fazer filmes dentro de um padrão
mainstream, mas que contenham alguns elementos de ironia e esquisitice. Esse
discreto tom autoral pode ser percebido na comédia “Um duende em Nova York”
(2003). A trama do filme até remete àquela tradicional linha de narrativa
derivada de “Um conto de Natal” de Charlie Dickens, em que o espírito natalino
se contrapõe a valores capitalistas desumanos, resultado numa lição de vida
edificante. A partir desse modelo convencional, Favreau insere algumas
características destoantes, como a estranha atmosfera mista de fábula e sátira,
o tom nonsense na encenação de algumas sequências, a caracterização abilolada
de Will Ferrell e um certo sarcasmo mais ácido na forma com que retrata
relações humanas e mesmo os costumes da sociedade pequeno-burguesa
contemporânea. É certo que essa pequena diatribe de Favreau se amolda de acordo
com os ditames de Hollywood, principalmente em sua conclusão, mas ainda assim é
uma obra diferenciada dentro dessa linhagem de “produções natalinas para a
família”.
quinta-feira, março 09, 2017
Logan, de James Mangold ***1/2
Ok, há realmente algumas incongruências no roteiro de “Logan”
(2017), principalmente em questões muito mal explicadas como a desculpa de
envenenamento do adamantium como motivos da decadência física do protagonista
ou o fato de uma simples enfermeira ter gravado no celular uma série de imagens
comprometedoras de experiências secretas de clonagem de mutantes por parte de
um laboratório dotado de um forte aparato de segurança. No final das contas,
entretanto, tais deslizes da trama acabam se tornando menores diante dos fortes
acertos no terceiro e derradeiro capítulo da franquia cinematográfica do mais
popular mutante da Marvel. Se no primeiro filme predominava uma concepção de narrativa
convencional e sem brilho e em “Wolverine imortal” (2013), dirigida por James
Mangold, ocorria uma sensível melhora artística, nessa obra mais recente,
também tendo Mangold no comando da produção, é impressionante como densidade
dramática e ação alucinada atingem um ponto de equilíbrio narrativo memorável.
Talvez o grande acerto do filme é estabelecer um forte conceito de história e
concepção estética e levar tal direcionamento de maneira coerente até a sua
conclusão – Wolverine saiu de cena, e o que ficou é um Logan (Hugh Jackman)
envelhecido, doente e muito longe do seu apogeu em termos de força, agilidade e
selvageria, e a encenação e ambientação da obra são marcadas por uma síntese de
realismo, amarga visão sócio-política de um futuro próximo, sordidez e
brutalidade. Mangold não se furta a fazer uma espécie de colcha de retalhos
criativa em termos de roteiro e estética, pois em “Logan” há influências e
referências diversas como as aventuras pós-apocalípticas de “Mad Max” (com
direito inclusive do protagonista se unindo a um bando de crianças e
adolescentes renegados) e clássicos faroestes crepusculares (o que fica
bastante explícito nas citações a “Os brutos também amam”). Ocorre que Mangold
tem a manha de fazer com que essa junção de elementos não caia na mera
reciclagem picareta e soe bastante orgânica e convincente. Assim, a atmosfera
de tensão e violência é bastante perturbadora, a caracterização dos personagens
é muito bem delineada em termos psicológicos e icônicos (X-23, por exemplo, é
muito mais interessante nessa versão para o cinema do que a figura dos
quadrinhos na qual se baseou), as cenas de ação têm uma ótima desenvoltura em
termos de coreografia e de um grafismo sujo e sangrento, a abordagem emocional
é empática e comovente. Até o timing para o momento do lançamento de “Logan” foi
bastante acertado – o futuro nada remoto retratado no roteiro dominado por
preconceitos raciais, pobreza e domínio político-econômico de grandes
corporações parece bastante em sintonia com o nosso presente de ascensão de uma
direita neo-liberal e xenofóbica. Também é interessante constatar como Mangold
consegue até fazer com que “Logan” se conecte ainda com a sua própria filmografia,
em que o decadente Wolverine tem semelhanças existenciais com o desacreditado
policial protagonista de “Cop Land” (1997) e com o cantor outsider Johnny Cash
de “Johnny & June” (2005) – não à toa, uma canção de Cash embala os
créditos finais de “Logan”.
quarta-feira, março 08, 2017
Eu, Olga Hepnarová, de Petr Kazda e Tomás Weinreb ***
As opções estéticas dos diretores Petr Kazda e Tomas Weinreb
para enquadrarem a narrativa de “Eu, Olga Hepnarová” (2016) são coerentes com
as intenções temáticas da obra. A rigorosa fotografia em preto e branco, a sufocante
atmosfera de aridez emocional e o roteiro que beira o fragmentado são elementos
que que conseguem traduzir de maneira expressiva todo o contexto social e
intimista que levou a protagonista-título (Michalina Olszanska) a cometer o
brutal crime de homicídios múltiplos – aliás, tal história é baseada em fatos
reais. Não que a trama leve necessariamente a justificar os atos extremos da
personagem principal e nem pretenda se mostrar simpática a ela. O registro formal-existencial
da produção é simplesmente objetivo, por vezes beirando uma perturbadora frieza,
o que faz com que o filme se afaste de moralismos e maniqueísmos fáceis, e
enverede mais pelo lado de retratar a forma com que uma sociedade de caráter
opressivo e as hipocrisias da família tradicional se revelam incapazes de lidar
com o diferente e o destoante, fomentando ainda mais a distorção dos valores
que tanto alegam defender. Para ilustrar tal visão de mundo, a concepção
artística dos cineastas se configura como uma linguagem síntese entre o
naturalismo e o didático – ainda que de uma desoladora dureza audiovisual, o resultado
final é de inegável eficiência narrativa.
terça-feira, março 07, 2017
A tartaruga vermelha, de Michael Dudok de Wit ***1/2
Dentro do atual panorama mundial das animações, “A tartaruga
vermelha” (2016) tem uma concepção artística que a coloca naquele nicho “fora
do tempo e do espaço”. Seu roteiro possui um forte tom fabular, enquanto que a
técnica de seu grafismo remete mais à escola tradicional europeia de décadas passadas
– é de se reparar, por exemplo, que as expressões faciais dos personagens
lembram alguns filmes de Tintin. O resultado final de tais opções criativas do
diretor holandês Michael Dudok de Wit, entretanto, estão bem distantes do mero
anacronismo ou nostalgia. A narrativa é repleta de sutilezas estéticas e
temáticas e avança de forma serena. A trama não se prende a maiores explicações
sobre origens de personagens ou explicações para certos eventos fantasiosos – o
que importa é quase que exclusivamente o universo daquela ilha em que o
protagonista náufrago passará boa parte de sua vida, em que uma estranha
relação entre a natureza e a magia se dá de forma natural e com bizarra
coerência. O roteiro repleto de simbologias simples e marcantes é embalado por
um traço preciso, que sintetiza de maneira extraordinária estilização e
realismo. Nesse sentido, não como não destacar as antológicas sequências da
tempestade no meio do oceano no início do filme e do tsunami que devasta boa
parte da ilha, momentos de grande e assustador impacto sensorial (em função
disso, é bem recomendável que se assista ao filme em uma sala de cinema). Por
outro lado, há também momentos memoráveis devido a delicadas nuances visuais
que sugerem ao espectador um olhar mais atento e contemplativo. A bela e
melancólica conclusão de “A tartaruga vermelha” reforçam ainda mais o caráter
atemporal da produção.
segunda-feira, março 06, 2017
Eu não sou seu negro, de Raoul Peck ***1/2
Os elementos que o diretor Raoul Peck teve em mãos para
conceber a narrativa do documentário “Eu não sou seu negro” (2016) são básicos
e concisos – um roteiro incompleto de 30 páginas desenvolvido pelo escritor
James Baldwin, farto material de arquivo audiovisual, a narração do ator Samuel
L. Jackson e um conceito temático amplo e bem definido. A partir desse
direcionamento formal-existencial, o cineasta elaborou um contundente panorama
sócio-político-cultural embalado por uma estética turbulenta e inclemente. O
foco principal aparente da trama está numa reflexão sobre vida e morte de três
importantes militantes da causa dos negros nos Estados Unidos – Medgar Evers, Malcolm
X e Martin Luther King – mas aos poucos o subtexto vai se tornando cada vez
mais abrangente, deixando vir à tona também o pensamento contestador e lúcido de
Baldwin. Dentro dessa perspectiva de narrativa, o que a trama se propõe de
forma engenhosa é relacionar a trajetória do racismo nos EUA com a própria
configuração do país como nação. Para isso, Peck tem ótimas sacadas em termos
de temática e montagem, fazendo com que os depoimentos de seus protagonistas
interajam não só com os eventos do contexto histórico em que eles estavam
inseridos, mas também com fatos que se efetivaram muitos anos depois de suas
respectivas mortes. Assim, as denúncias sobre a hipocrisia de autoridades e
sociedade perante a discriminação racial e os alertas sobre a necessidade de
uma maior integração entre as comunidades dentro do país se mostram em sinistra
sintonia com as revoltas dos negros por motivos de preconceitos que ocorreram
em décadas posteriores (e ainda continuam nos dias de hoje). Peck também coloca
em cheque a própria história do cinema norte-americano ao mostrar diversos
trechos de produções importantes na filmografia nativa que refletiam um
preconceito racial escancarado e que acabava promovido como algo natural por
tais obras. Essa união entre uma visão de mundo bastante crítica e uma concepção
artística criativa e muito bem delineada tem como resultado final uma produção
que tanto impressiona pela clareza e fundamentação inequívoca de seu ideário
humanista quanto emociona pela sua sensibilidade a dissecar uma das facetas
mais odiosas e injustas da sociedade contemporânea.
sexta-feira, março 03, 2017
Operação corvo, de Takashi Miike **
O diretor japonês Takashi Miike é um cara de extremos –
assim como é capaz de fazer maravilhas (“The audition”, “Imprint”, “13
assassinos”), também pode perpetrar abacaxis como esse “Operação Corvo” (2007).
A premissa da trama é até uma boa ideia – uma narrativa clássica de gangsteres
no ambiente de uma escola, com direito a todas as cenas de violência e intrigas
inerentes a essa linhagem de filmes policiais. O resultado final, entretanto,
está muito longe de tais possibilidades promissoras. O roteiro é bastante
confuso, sendo que a encenação afetada e preguiçosa nada contribui para
melhorar as coisas. Por vezes, em algumas passagens, dá para sentir a mão diferenciada
de Miike, mas acaba sendo muito pouco para garantir o interesse do espectador.
quinta-feira, março 02, 2017
A lei da noite, de Ben Affleck **1/2
A ambição de Ben Affleck para “A lei da noite” (2016)
aparenta ser grande. Retomando o gênero dos filmes de gangsteres “à antiga”, a
obra sugere uma cruza entre a estética barroca de “Ajuste final” (1990) com o
romantismo grandioso de “O poderoso chefão” (1972) e “Era uma vez na América”
(1984). Ainda que Affleck não tenha o estofo artístico dos diretores dos filmes
mencionados, o talento narrativo que havia demonstrado no policial “Atração
perigosa” (2010) o credenciava a uma experiência cinematográfica no mínimo memorável.
O resultado final de “A lei da noite”, entretanto, mostra-se aquém das
expectativas e de suas boas referências. Ainda que o trabalho de direção de
arte seja caprichado e algumas sequências de ação sejam bem movimentadas e
divertidas, faltou para a produção uma encenação mais encorpada e de maior
densidade dramática. O filme até conta com um bom elenco, mas que se perde numa
direção de atores um tanto frouxa e que faz as interpretações oscilarem entre o
inexpressivo e o caricato. O que, de certa forma, acaba sendo uma síntese
daquilo que dá errado no filme. Pode-se perceber no subtexto do roteiro uma
intenção de profundidade psicológica e mesmo de uma sofisticada simbologia a
mostrar os dilemas sócio-culturais dos Estados Unidos nos anos 20 no que diz
respeito a questões complexas como criminalidade, racismo e o conturbado
cenário econômico da época. Ocorre que a mão de Aflleck como diretor se mostra
pesada e pouco sutil, fazendo com que “A lei da noite” se configure como uma
incômoda combinação de academicismo e pastiche. Repare-se, por exemplo, na
sequência em que o protagonista Joe Coughlin (Aflleck) discursa perante um
banqueiro contra as hipocrisias do sistema financeiro norte-americano – as ideias
do texto são coerentes e contundentes, mas a forma com que a cena é executada é
primária e sem efetivo impacto dramático.
quarta-feira, março 01, 2017
Moonlight, de Barry Jenkins ***
Na superfície, “Moonlight” (2016) remete a elementos de várias
produções norte-americanas na linha black: muito funk, soul e rap na trilha
sonora (excelente, por sinal), temática social relacionada a abandono familiar
e marginalidade, uma certa atmosfera sórdida e sombria que permeia a narrativa.
O filme dirigido por Barry Jenkins, entretanto, utiliza uma abordagem estética
e de conteúdo ainda mais ampla e que se revela de maneira sutil, em que um viés
intimista e sensorial vai se tornando predominante aos poucos. Na trama, aos
habituais preconceitos sociais e raciais se adiciona ainda a questão da
sexualidade. O roteiro descarta o caráter moralista ao expor as contradições e
dilemas dos personagens, principalmente no caso do protagonista Chiron, fazendo
com que algumas de suas escolhas que poderiam até ser consideradas
questionáveis ganham um ar de inevitabilidade do destino, principalmente ao se
considerar o ambiente nocivo que o envolve. Paira sobre os dois terços iniciais
do filme de maneira constante uma ambientação de opressão, em que cada passo de
Chiron parece estar sendo implacavelmente vigiado e perseguido. Algumas
escolhas formais por parte de Jenkin conseguem acentuar com precisão e
sensibilidade essa impressão – nesse sentido, é de se reparar, por exemplo, no
vertiginoso plano-sequência no início de “Moonlight” e na assustadora sequência
em que Chiron adolescente é espancado por colegas de escola. Alguns desses
truques narrativos podem até soar óbvios ou simples, mas tem uma eficácia
admirável para evidenciar o pesado drama do protagonista. No terceiro ato do
filme, Jenkins muda o seu enfoque, passando para um registro entre o melancólico
e o agridoce para sugerir uma possibilidade de redenção existencial para Chiron,
e que propicia uma sequência antológica, aquela em que Kevin (Andre Holland)
oferece para Chiron uma canção no jukebox.
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