O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa tem uma forte vinculação
com o cinema de gênero, principalmente na área de interligação entre o suspense
e o horror, mas sua abordagem artística é bastante diversa daquela de produções
nipônicas como “O chamado” (1998) e derivados. Isso fica bastante evidente em
sua obra mais recente, “Creepy” (2016). Não há grandes inovações em termos
formais e temáticos, e por vezes até pode haver um certo incômodo com algumas incongruências do roteiro. O forte de Kurosawa está na construção de uma atmosfera
densa e perturbadora de tensão e terror, na caracterização bizarra de
personagens e situações, na forte e sutil simbologia da trama e numa encenação
desconcertante que varia do intimismo dramático ao puro horror gore. Os clichês
narrativos tradicionais do gênero estão presentes de maneira constante, mas uma
das grandes sacadas do cineasta está na sua criatividade e virtuosismo
estéticos em manipular tais recursos e os colocar em cena sob uma perspectiva
insólita e mesmo de caráter desafiador. Nesse sentido, a relação emocional que
se estabelece no triângulo composto pelo protagonista Takakura (Yuko Takeuchi),
sua esposa Yasuko (Hidetoshi Nishijima) e o asqueroso psicopata Nishino
(Teruyuki Kagawa) revela nuances existenciais inquietantes, principalmente na
forma com que questiona valores morais e comportamentais. A lógica e prática distorcidas
de Nishino em induzir laços emocionais estimulando o vício em drogas pesadas e
exterminar famílias parece evocar uma espécie de expiação das hipocrisias da
sociedade moderna. Por trás desse discurso ambíguo há um complemento formal de
coerência sensorial impressionante, vide a fotografia de tons sombrios, a
trilha sonora de temas efetivamente assustadores e a edição que conduz a narrativa
como se fosse um macabro conto gótico.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, novembro 30, 2016
terça-feira, novembro 29, 2016
Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil, de Belisário Franca ***
A premissa básica do argumento de “Menino 23: Infâncias
perdidas no Brasil” (2016) pode fazer pensar até numa obra de cunho ficcional
beirando o fantástico: nos anos 30, garotos negros órfãos são levados do Rio de
Janeiro para uma grande fazenda do interior de São Paulo de propriedade de
simpatizantes do integralismo e do nazismo e lá são submetidos a condições de
escravidão. Ocorre, entretanto, que o filme dirigido por Belisário Franca é um
documentário, ou seja, mostra fatos que realmente aconteceram, o que torna tudo
ainda mais assustador e revoltante. A abordagem formal de Franca é simples e
direta, utilizando depoimentos recentes, encenação discreta e registros
audiovisuais de arquivo. A partir de tal recursos, o diretor consegue obter uma
síntese narrativa eficiente e de impacto, conciliando de maneira precisa o
aspecto histórico/didático, ao mostrar o contexto sócio-político do racismo
naquele período, com o fator intimista/dramático, dando a palavra a dois homens
que fizeram parte de tal “experimento” nefasto. A partir desse conjunto
estético-temático, “Menino 23” traça um perfil complexo e contundente da
trajetória do preconceito racial no Brasil, mostrando também como tal questão
está intrinsecamente ligada aos mecanismos de opressão para perpetuação no
poder de uma oligarquia econômica, evidenciando uma sintonia, dessa forma, com
alguns fatos bem recentes da história do nosso país.
segunda-feira, novembro 28, 2016
Snowden - Herói ou traidor?, de Oliver Stone ***1/2
Parte significativa da filmografia do diretor
norte-americano Oliver Stone é dedicada a fazer uma espécie de inventário
sócio-político-cultural da história do seu país. Dentro desse nicho, seu maior
acerto artístico foi “JFK” (1991), que apresentava uma combinação notável entre
narrativa dinâmica e envolvente e um conteúdo aprofundado e inquietante sobre a
temática que versava. Essa síntese também é o grande mérito de “Snowden – Herói
ou traidor” (2016), obra mais recente de Stone, que foca a história do
ex-agente da CIA que denunciou os mecanismos de espionagem virtual praticada
pelos Estados Unidos. Ainda que o filme se renda a alguns convencionalismos
narrativos, a noção de ação cinematográfica é muito bem trabalhada, vide a
edição que incorpora com naturalidade e coerência efeitos digitais a simularem
o mundo da virtualidade e a encenação vigorosa e bem coreografada que extrai
uma tensão perturbadora nas sequências mais cruciais em termos dramáticos. O roteiro
apresenta um certo traço panfletário, o que fica evidente na caracterização
maniqueísta de personagens e situações, mas ao mesmo tempo sabe valorizar a
complexidade dos dilemas morais e contradições de seu protagonista, além de
mostrar detalhes das operações políticas e de segurança do governo norte-americano
que geralmente são tratadas com superficialidade na mídia “oficial”. Para falar
a verdade, é até provável que a falta de escrúpulos da CIA e do NSA a
investigarem indevidamente cidadãos nativos e governos estrangeiros seja muito
mais acentuada e cruel na realidade do que na simulação de uma obra para o
cinema. E ainda que tais fatos retratados no filme sejam ainda relativamente
recentes, a abordagem de Stone traz um traço atemporal ao deixar evidente mais
um dos métodos da permanente opressão de governos e grandes corporações sobre
os indivíduos.
sexta-feira, novembro 25, 2016
BR 716, de Domingos de Oliveira ***1/2
Alguns dos filmes mais recentes do diretor Domingos de
Oliveira pecavam por um acabamento formal meio qualquer nota e um texto
autoindulgente, vide “Juventude” (2008) e “Paixão e acaso” (2012). Em “BR 716”
(2016), o cineasta corrige esse rumo criativo e entrega um dos seus trabalhos
mais expressivos e cativantes. Para começar, ele conta com uma direção de
fotografia de notável beleza plástica, num registro preto e branco que sublinha
com sensibilidade uma atmosfera mista de nostalgia e onirismo. Por se tratar de
uma obra de caráter memorialista e autobiográfica, marca de grande parte da
filmografia de Domingos, a narrativa vem marcada por algo de difuso e
exuberante, como se as lembranças viessem sob um prisma exagerado e sem um
grande compromisso com o “real”. Essa preferência pelo subjetivismo acaba
tornando o filme muito mais visceral e verdadeiro na forma com que retrata com
crueza e carinho os dilemas e contradições existenciais do protagonista Felipe
(Caio Blat), alter ego do diretor. Outro trunfo de “BR 716” é a uma encenação
que sabe unir rigor e um teor libertário, havendo um dinamismo coerente tanto
nas sutilezas dramáticas e cômicas dos momentos mais intimistas quanto na
caracterização dionisíaca das festas constantes promovidas por Felipe. Por se
tratar de um retrato geracional focado no Rio de Janeiro de 1964, há momentos
que a produção assume alguns clichês narrativos um tanto ingênuos na sua
contextualização histórica, mas isso na realidade se incorpora com naturalidade
dentro do próprio espírito de melancolia nostálgica da obra. Domingos de
Oliveira ainda acerta num dos pontos que costuma ser o seu forte, a direção de
atores, fazendo com que o seu elenco mostre algumas atuações memoráveis, como a
evocação de uma diva esfuziante de Sophie Charlotte, a caracterização alucinada
de Glauce Glima e mesmo a intepretação de Blat, que faz uma verdadeira
possessão incorporando os trejeitos e maneirismos típicos de Oliveira.
quinta-feira, novembro 24, 2016
Cinema Novo, de Eryk Rocha ***1/2
Seria um tanto incoerente fazer um documentário sobre o Cinema
Novo utilizando uma linguagem convencional e acadêmica, tendo em vista o fato
do movimento deflagrado por Glauber Rocha e outros inquietos cineastas ter
procurado justamente romper com tradicionalismos mofados dentro da ordem
cinematográfica. Por esse motivo, o cineasta Eryk Rocha adota uma via criativa
e ousada em “Cinema Novo” (2016) – ao invés de simplesmente “contar uma
história” utilizando os recursos mais óbvios nesse tipo de produção como se
fosse uma reportagem, ele preferiu fazer o espectador entrar numa viagem
sensorial dentro de um imaginário delirante e criativo para ter uma ideia do
significado artístico e existencial das principais obras daquele período e de
seus criadores. Nesse sentido, a citação visual direta de “O encouraçado
Potemkin” (2016) não é gratuita, pois o enfoque na montagem, o grande legado de
Serguei Eisenstein, é o principal mote criativo no documentário em questão.
Praticamente todo o material audiovisual é composto de trechos documentais da
época e cenas dos principais trabalhos do Cinema Novo e de obras que
influenciaram, foram influenciadas ou simplesmente tiveram alguma sintonia com
tais produções cinemanovistas. Eryk Rocha organiza as ideias sobre a sua
temática dentro de uma linha teórica delimitada com precisão e sensibilidade,
criando dessa forma uma trama sutil e complexa. Há o surgimento explosivo dos
filmes, o momento em que os cineastas discutem suas criações e o contexto
sócio-cultural que as envolvem, o impacto que os filmes causam no Brasil e no
mundo e, por fim, os motivos que levam à implosão do movimento e a dispersão de
seus principais diretores. É fascinante a forma com que o documentarista
estrutura o seu caleidoscópio narrativo dentro dessa lógica histórica, fazendo
com que um mosaico de conceitos, abordagens e discursos diversos e muito
pessoais ganhem uma coerência intrínseca na leitura que fazem do Brasil e do
cinema do passado, do presente e do futuro.
quarta-feira, novembro 23, 2016
Elle, de Paul Verhoeven ****
A produção francesa “Elle” (2016) é uma bela síntese das
concepções autorais muito particulares do cineasta holandês Paul Verhoeven,
combinando refinamento narrativo com um sensorialismo visceral. Estão lá boa
parte dos clichês básicos do gênero suspense, mas eles são manipulados com uma
elegância fenomenal e ao mesmo tempo também são pervertidos dentro de uma trama
repleta de desdobramentos insólitos e um forte conteúdo simbólico (nesse
sentido, é antológica a sequência do jantar de natal, em que a composição e
dinâmica da mesa reflete as divisões sócio-econômicas-culturais da sociedade
ocidental contemporânea). O roteiro em sua primeira metade até insinua um
formato que evoca a atmosfera de algumas obras de Alfred Hitchcock, principalmente
naquela fórmula “quem é o culpado”, mas esse direcionamento aparentemente
convencional vai se tornado cada vez mais difuso, com Verhoeven transformando a
narrativa numa espécie de perturbadora parábola moral. Os dilemas e
contradições da protagonista Michèle (Isabelle Huppert) são complexos e por
vezes até bizarros, mas exalam uma humanidade crua e contundente na forma
plural com que as diversas facetas da personagem se expõem e interagem
(sentimental/existencial/profissional). Esse contexto temático repleto de
nuances recebe um tratamento formal bastante lapidado, com destaque para a
encenação precisa na sua junção de naturalidade e detalhismo imagético, vide as
intensas cenas de sexo e violências (aliás, na melhor tradição Paul Verhoeven),
e as sequências em que os games eletrônicos se inserem na narrativa, guardando
uma correlação irônica sensacional com aquilo que se passa no mundo “real” da trama,
além da trilha sonora tensa e sedutora e o elenco de atuações antológicas
(Huppert, por sinal, num dos grandes momentos de sua expressiva carreira).
terça-feira, novembro 22, 2016
Depois da tempestade, de Hirokazu Koeeda ***
Em suas obras mais recentes, o cineasta japonês Hirokazu
Koeeda vem formatando seu estilo dentro do gênero do melodrama familiar. Nessa
vertente, ainda que não apresente nada tão contundente quando o drama
fantástico “Depois da vida” (1998) ou o suspense intimista “Ninguém pode saber”
(2003), o diretor lançou trabalhos que se afastam de uma abordagem óbvia ou do
sentimentalismo excessivo. Esse é o caso de “Depois da tempestade” (2016). A
história do escritor e detetive Ryota (Hiroshi Abe) que se sente frustrado
pelas dificuldades financeiras e pelo fracasso do casamento é enquadrada numa
narrativa sóbria e num roteiro que não abre concessões fáceis. A caracterização
de personagens e situações é delineada de maneira sensível e complexa, o que
cria tanto tensão dramática para o filme quanto empatia com o espectador. A
marca autoral de Koeeda é nítida de maneira sutil – a síntese entre formalismo
e temática tem notável coerência artística e se mostra desafiadora ao não se
adaptar às necessidades comerciais de se mostrar acessível, preservando a
crueza dos sentimentos e sensações dos personagens e dispensando um final feliz
e conciliador artificioso.
segunda-feira, novembro 21, 2016
Dr. Estranho, de Scott Derrickson ***
Por mais que haja uma coerência na forma com que os filmes
interagem dentro do seu universo e uma competente qualidade narrativa nas suas
realizações, a atual linha de produções cinematográficas da Marvel não permite
grandes variações e ousadias dentro de sua fórmula artística – claro que com
algumas honráveis exceções, como “Os guardiões da galáxia” (2014). Dentro dessa
lógica, “Dr. Estranho” (2016) é um exemplar bastante sintomático de tal
situação. Estão presentes boa parte dos preceitos formais e temáticos que já
pautaram os demais filmes das outras franquias, principalmente no que diz
respeito às obras que mostram as origens dos super-heróis, e que de certa forma
também são característicos dos próprios quadrinhos que as inspiraram. O diretor
Scott Derrickson segue tão à risca essa cartilha que por vezes temos a
impressão de se estar assistindo a refilmagem de “O homem de ferro” (2008), só
que por um prisma místico (as piadinhas bestas, por exemplo, são as mesmas).
Ainda assim, o ritmo da narrativa tem uma desenvoltura cativante e as cenas de
ação tem uma coreografia bem resolvida. E se por um lado o roteiro tem uma
mecânica um tanto previsível em excesso e falte uma efetiva tensão dramática
capaz de surpreender o espectador (culpa principalmente de um vilão sem graça, o
que é recorrente nos filmes da Marvel), há de se destacar como a questão do
misticismo é bem incorporada na trama, apresentando tanto alguns conceitos bem
interessantes quanto rendendo algumas sequências de força imagética
deslumbrante.
sexta-feira, novembro 18, 2016
Tio Bernard - Uma antilição de economia, de Richard Brouillette ****
O grande trunfo artístico de “Tio Bernard – Uma antilição de
economia” (2015) está na ligação estético-existencial que se estabelece no
discurso sócio-político-econômico do seu protagonista, Bernard Maris,
economista e editor do periódico humorístico Charlie Hebdo, com a formatação
concebida pelo diretor Richard Brouillette. A narrativa do documentário
consiste basicamente num longo depoimento do citado intelectual, dado no ano de
2000, dissecando as contradições e hipocrisias do capitalismo moderno e também
expondo os mecanismos de manipulação e opressão escondidos por trás dos
discursos edificantes de livre mercado e prosperidade propagados por grande
parte de economistas e tecnocratas. Para acompanhar tal diatribe lúcida e
desafiadora, Brouillette utiliza uma abordagem que sintetiza urgência,
contenção de recursos e um teor reflexivo sobre o seu próprio mecanismo de
realização, em que mesmo detalhes de bastidores refletem uma atmosfera de
contestação e ironia. A edição se efetiva nas trocas de rolos de película,
detalhe esse que é incorporado dentro da própria encenação como recurso
dramático-cômico (é de se reparar que nesses “intervalos”, em que a tela
escurece, tio Bernard continua a falar sem parar e até acentua a acidez de suas
tiradas). O talento oratório, a capacidade de fundamentação arguta e o carisma de
Marin são aproveitados ao máximo diante dessa linguagem cinematográfica que
combina com precisão sofisticação e fúria. Tais soluções narrativas afastam a
obra do campo da simples reportagem e a configuram como um contundente libelo
humanista-artístico contra um ordenamento social e político marcado pela
injustiça e o absurdo e ajudam a entender como uma figura como a do tio Bernard
pode perturbar tanto o status quo vigente. Não por acaso, ele estava entre as
vítimas do lamentável atentado terrorista sofrido pelo Charlie Hebdo em janeiro
de 2015.
quinta-feira, novembro 17, 2016
O plano de Maggie, de Rebecca Miller ***
A influência que talvez mais salte aos olhos ao se assistir
a “O plano de Maggie” (2015) seria a filmografia de Woody Allen. A diretora
norte-americana Rebecca Miller evoca algumas referências tanto do estilo de
filmar quanto na concepção de roteiro típicos do estilo de Allen. Estão lá a
concepção formal que por vezes emula uma espécie de documentário caseiro, o
senso de humor que sintetiza leveza e amargura, a trama repleta de situações
entre o inusitado e o embaraçoso, além de personagens confusos em termos
sentimentais e existenciais. O resultado final, contudo, está longe do mero
pastiche. Os truques dramáticos e cômicos da história são eficientes em suas
cirandas amorosas e quiproquós familiares, além de condensarem com alguma
crueza alguns dos principais dilemas e contradições de uma certa classe média
intelectual contemporânea. A encenação proposta por Miller tem naturalidade e
apresenta nuances que procuram fugir das soluções fáceis, tendência essa que é
reforçada pela trinca principal do elenco em interpretações que trazem
complexidade e ironia nas doses certas.
quarta-feira, novembro 16, 2016
Indignação, de James Schamus **1/2
Transpor o universo literário do escritor Philip Roth para o
cinema é uma tarefa penosa. A produção norte-americana “Indignação” (2016) é um
exemplo enfático de tal dificuldade. Estão lá na trama as habituais obsessões
temáticas-existenciais do autor – o questionamento dos valores éticos e morais
da sociedade norte-americana, a exposição dos preconceitos raciais e sociais,
os tormentos sexuais de personagens complexos. O problema é que tais temas são
trabalhados de forma artificial e solene tanto pelo roteiro quanto pela
encenação, retirando, dessa forma, a verve e a ironia com que Roth costuma
tratar esse material em seus romances. A linguagem literária também não consegue
se consolidar em outro tipo de narrativa – a descrição oral em primeira pessoa
do protagonista Marcus Messner (Logan Lerman) é excessiva e afetada, roubando
um espaço essencial que deveria ser ocupada pela concepção imagética do filme.
Assim, falta sutileza e uma efetiva profundidade na forma com que personagens e
situações são desenvolvidos. Ainda que a fotografia e a direção de arte
demonstrem alguma beleza visual na sua reconstituição dos anos 50 e a atuação
de Olivia Hutton apresente um interessante encanto, “Indignação” tem um
resultado final falho na sua proposta de dissecação sensorial das hipocrisias
arraigadas dos Estados Unidos devido a uma abordagem estética e textual que
carece de força e ousadia.
sexta-feira, novembro 11, 2016
Busca insaciável, de Milos Forman ****
Quando se fala na fase norte-americana da carreira do cineasta tcheco Milos Forman, logo vem à mente filme antológicos como “Um estranho no ninho” (1975), “O povo contra Larry Flynt” (1996) e “O mundo de Andy” (1999). Pouco se comenta, entretanto, sobre sua produção de estreia nos Estados Unidos, “Busca insaciável” (1971), o que é uma grande injustiça, pois se trata de uma obra que está, no mínimo, no mesmo nível artístico dos trabalhos mencionados. A formatação narrativa mantem muito da original abordagem de linguagem cinematográfica que Forman praticava em alguns de seus filmes mais marcantes realizados em seu país natal como “Os amores de uma loira” (1965) e “O baile dos bombeiros” (1967) – é de se reparar, por exemplo, que a sequência inicial de “Busca insaciável” em que vários jovens, num inventivo truque de edição, cantam a mesma música é semelhante à da jovem que canta ao violão na abertura de “Os amores de uma loira”. Assim, a visão de ironia ácida de Forman sobre os hipócritas valores sócio-culturais da sociedade norte-americana da época (e que se mantém até hoje, vide a recente eleição de Donald Trump) vem embalada por um sofisticado formalismo que combina uma direção de fotografia seca e objetiva e uma edição de cortes insólitos. A contundência de tal estética se alia a uma esquisita e sardônica atmosfera de distanciamento emocional, gerando um efeito desconcertante para o espectador – a aparente frieza da encenação esconde uma grande tiração de sarro do reacionarismo e visão obtusa do americano norte-americano médio. Nesse sentido, é particularmente brilhante a sequência em que respeitáveis pais de família fumam maconha num evento social para tentar entender os motivos dos filhos terem fugido de casa. No mais, é curiosa como essa reflexão sobre o período do flower power acaba se relacionando com outro filme de Forman que versava sobre temática semelhante, o musical “Hair” (1979), formando um expressivo e amargo panorama sobre a contracultura.
quinta-feira, novembro 10, 2016
O pecado de Hadewijch, de Bruno Dumont ***1/2
A filmografia do diretor francês Bruno Dumont é baseada numa
síntese bastante particular de preceitos artísticos e existenciais que remetem
a cineastas como Roberto Rossellini e Robert Bresson. Assim, seus filmes
abarcam uma estranha combinação de conto moral e formalismo rigoroso e
ascético, em que a exposição do mal estar e inquietações ético-religiosas da
sociedade ocidental contemporânea vem acompanhada de uma linguagem estética
contida e distanciada na configuração de seu modus operandi. “O pequeno
Quinquin” (2014) é a representação mais expressiva das concepções insólitas de
Dumont, mas “O pecado de Hadewijch” (2009) mostra que esse estilo já estava
cada vez mais delineado em suas nuances de sensibilidade e esquisitice. A
trajetória da protagonista Céline (Julie Sokolowski) em busca de redenção
espiritual e de uma aproximação mais íntima com uma divindade superior é
esmiuçada numa narrativa seca e sem concessões, em que elementos como a ironia
e a sensualidade se manifestam com discrição perversa. No meio dessa jornada
intimista, Dumont estabelece uma sutil amostragem sócio-cultural da Europa
desse século, principalmente em questões conflitantes e contraditórias como o
preconceito racial e o fanatismo religioso.
quarta-feira, novembro 09, 2016
Curumim, de Marcos Prado ***1/2
O que diferencia um documentário cinematográfico de uma
reportagem audiovisual? A pergunta pode parecer complexa e para alguns a
fronteira entre esses dois gêneros narrativos é até muito tênue, mas um filme
como “Curumim” (2016) acaba por estabelecer uma diferenciação bastante contundente.
O assunto principal de sua trama, a prisão e fuzilamento do brasileiro Marco
Archer na Indonésia por tráfico de drogas, foi bastante comentado na mídia. A
abordagem concebida pelo diretor Marcos Prado, entretanto, afasta-se do
meramente informativo, fazendo com que a sua obra seja uma viagem existencial
perturbadora tanto na mente de seu protagonista quanto nas circunstâncias
históricas e sociais do período abrangido na trajetória de Archer. Para isso,
Prado utiliza recursos diversos para compor a narrativa – filmagens próprias,
registros obtidos por Archer na prisão (onde aguardou por mais de 10 anos pela
sua execução), imagens de arquivo, depoimentos e até mesmo encenações. A edição
consegue equilibrar de maneira notável a precisão de um formalismo “profissional”
com o caráter amador de algumas tomadas, criando uma atmosfera ambígua na sua
mescla de “filme caseiro” e sóbrio retrato geracional. O formalismo criativo
articulado pelo cineasta consegue captar com sensibilidade e vigor as nuances
dramáticas da história contada, abrangendo a era de hedonismo e inocência do
Rio de Janeiro dos anos 70 e 80, a decadência de uma classe alta brasileira de
perfil aristocrático na virada do século, os “causos” movido a aventuras e
drogas do protagonista ao redor do mundo e a sua final degradação física e
mental trancafiado numa prisão fuleira nos cafundós da Ásia. Nesse relato sombrio
que se situa num ponto difuso entre o épico e o intimista, “Curumim” ainda se
permite de maneira sutil uma amarga reflexão sobre o sistema de valores
distorcidos que envolvem questões polêmicas como a pena de morte e o combate ao
tráfico de drogas. Nesse amplo espectro temático, as ambições artísticas e contestadoras
de Prado se mostram elevadas, com o cineasta dando conta de tais intenções com
a criatividade e ousadia das soluções narrativas e de conteúdo de uma produção
memorável.
terça-feira, novembro 08, 2016
A viagem de meu pai, de Philippe Le Guay ***
Dentro de uma temática já bastante abordada por outras
produções cinematográficas, a das dificuldades da velhice, “A viagem de meu pai”
(2015) não chega a ser uma obra-prima, mas ainda assim consegue apresentar
algumas surpresas positivas capazes de gerar inquietação para o espectador. A
maior delas é a forma com que o diretor Philippe Le Guay formata a sua
narrativa, que se desenvolve a partir de uma relação com a própria dinâmica do
processo gradual de senilidade do protagonista Claude Lherminier (Jean
Rochefort). Assim, as noções de tempo e realidade vão se tornando cada vez mais
difusas com o avançar da trama, ainda que a encenação evoque um tom
naturalista, fazendo com que fatos corriqueiros do cotidiano convivam em uma
estranha harmonia com toques oníricos e por vezes delirantes. É mérito também
do filme em manter uma atmosfera de sobriedade emocional, em que situações melancólicas
e mesmo cruéis não são expostas com obviedades sentimentais, prevalecendo uma
certa crueza existencial e se permitindo até em alguns momentos uma dose de
ironia. Claude não é retratado de forma simplista como uma mera vítima de sua
condição como idoso – os percalços pelos quais ele e sua família passam ganham
uma condição de inevitabilidade do destino, sugerindo-se ainda como
consequências de atos praticados pelo protagonista quando mais jovem e de seu
próprio e inato temperamento orgulhoso. Dentro dessa proposta de Le Guay, a
atuação de Rochefort ganha especial ressonância, pois sua interpretação é
repleta de notáveis nuances dramáticas e cômicas.
segunda-feira, novembro 07, 2016
Canção da volta, de Gustavo Rosa de Moura **1/2
Os conceitos estéticos e existenciais de “Canção da volta”
(2016) são consistentes e inquietantes. A trama que que trata das consequências
práticas e sentimentais provocadas pelas crises de depressão de Julia (Marina
Person) para sua família apresenta um subtexto desafiador no sentido de
questionar os preceitos comportamentais de uma classe média dita civilizada e
humanista. A concepção narrativa procura acompanhar esse caráter ousado do
roteiro, valendo-se de uma estrutura temporal que por vezes se afasta do
linear, como se mostrasse em sintonia com o caráter errático da personalidade
da protagonista. O problema central da produção dirigida por Gustavo Rosa de
Moura, entretanto, está numa encenação um tanto engessada e que não acompanha
esse espírito libertário da história que é contada. Falta uma maior
desenvoltura na interação dos atores com aquilo que é contado em cena, fruto de
uma excessiva racionalização na hora de colocar as ideias em prática. Os
melhores momentos da obra são aqueles em que a forma e o conteúdo encontram uma
síntese mais livre e espontânea, vide a sequência em que Julia entra em uma
espécie de transe e dança sozinha esbarrando pelos móveis da casa ou as tomadas
das aulas de balé da personagem – tais trechos imagéticos conseguem apresentar
uma carga simbólica forte apenas pelo vigor da ação e sintetizam melhor o
espírito contestador de “Canção da volta”. Se o diretor tivesse mantido esse
tipo de solução narrativa, talvez seu filme tivesse apresentado um resultado
artístico semelhantes a produções memoráveis que versaram sobre temática
semelhante como “Possessão” (1981) e “Melancolia” (2011).
sexta-feira, novembro 04, 2016
O contador, de Gavin O'Connor ***
A descrição de “O contador” (2016) como uma espécie de cruza
picareta entre a “Bourne” com “Gênio indomável” (1997) pode parecer um exagero
jocoso, mas também não deixa de ter a sua pertinência. Ou seja, pelo menos em
termos de premissa de trama, a produção em questão não passa de uma bobagem
escapista. Sorte que o diretor Gavin O’Connor, o mesmo do excelente “Guerreiro”
(2011), consegue oferecer um senso narrativo envolvente e faz com que o roteiro
sobre um contador autista com apurado treinamento militar que desvenda e
destrói uma conspiração corporativa consiga gerar alguma tensão e interesse
para o espectador. As cenas de ação envolvendo lutas e tiroteios são
coreografadas com clareza e filmadas com uma fotografia elegante. Esse
formalismo concebido por Gavin O’Connor é até previsível, entretanto é
executado com precisão e convicção. Até a habitual inexpressividade de Ben Affleck
consegue ser aproveitada dramaticamente tendo em vista o distúrbio do
protagonista. E é interessante também notar que mesmo uma história repleta de
inverossimilhanças como a apresentada no filme revela um subtexto um tanto
nebuloso, na forma com que a lei e seus respectivos agentes (policiais,
políticos e afins) são retratados como ineficientes na busca de justiça, e
reforçando a necessidade de indivíduo suprir tais “lacunas” com iniciativas
próprias truculentas. Os fãs da barbárie de toga no Brasil provavelmente vão se
identificar...
quinta-feira, novembro 03, 2016
Lolo: O filho da minha namorada, de Julie Delpy ***
A filmografia de Julie Delpy como diretora parece girar
dentro de uma fórmula narrativa simples – crônicas familiares que além da
reflexão sobre as relações pessoais também apresentam um subtexto
sócio-político. Dentro desse conceito artístico, o ponto alto da carreira da
cineasta é o extraordinário “O verão do Skylab” (2011). “Lolo: O filho da minha
namorada” (2015) não apresenta o mesmo nível de qualidade, mas ainda assim tem
os seus pontos inquietantes. Num primeiro momento, o espectador se sente
envolvido pelos eficientes truques cômicos relacionados aos planos perversos do
jovem Lolo (Vincent Lacoste) para acabar com o namoro de sua mãe, a cosmopolita
Violette (Delpy), com o ingênuo interiorano Jean-René (Dany Boon), rendendo
algumas divertidas cenas que envolvem um humor físico que beira o pastelão e o
escatológico. Numa visão mais atenta da trama e mesmo da encenação concebida
por Delpy, entretanto, pode-se perceber algo de sombrio e irônico em detalhes
como a caracterização psicótica de Lolo, a violência física e psicológica de
algumas das “brincadeiras” do personagem-título e as sutis ironias que se fazem
em determinadas situações do roteiro que envolvem questões de classe e a atual
situação econômica da Europa. De se considerar também a crueza de alguns
diálogos a expor a sexualidades e as seguranças existenciais de uma mulher
adulta na sociedade contemporânea. Ainda que o final feliz agridoce do filme
represente uma espécie de concessão típica de uma comédia romântica, “Lolo”
reforça a impressão de que Delpy possui um traço autoral na forma com que
elabora suas narrativas cinematográficas.
terça-feira, novembro 01, 2016
Demônio de neon, de Nicolas Winding Refn ****
A obra-prima “Drive” (2011) se provou como uma
extraordinária exceção dentro do estilo habitual do diretor Nicolas Winding
Refn, pois era uma obra marcada por uma narrativa precisa e de formalismo
clássico que se adaptava de acordo com a marca autoral do cineasta. Nas demais
produções de sua filmografia, o dinamarquês investe numa abordagem que valoriza
muito mais o sensorial e o atmosférico do que os meandros do roteiro, vide
filmes antológicos como “O guerreiro silencioso” (2009) e “Apenas deus perdoa”
(2013). “Demônio de neon” (2016) é uma continuação dos preceitos artísticos de
Refn – imagine-se um conto moral às avessas sobre a beleza e a inocência
marcado por uma ambientação difusa de hedonismo, horror e delírio onírico e se
pode ter uma ideia do que representa essa estranha narrativa. As referências
visuais e temáticas são diversas e insólitas, como o horror sensual e barroco
de Mario Bava, as nuances enigmáticas de David Lynch, o realismo de corres
berrantes de algumas produções oitentistas (leia-se “O fundo do coração” e “Dublê
de corpo”). Refn amarra todas essas influências e citações dentro de uma linguagem
coesa e particular, fazendo o espectador entrar num vórtice de loucura,
violência e erotismo, ora repugnante, ora bizarramente encantador. O esmero
estético se manifesta em cada detalhe do filme e não se reduz a mero exibicionismo
técnico, revelando notável sintonia existencial com a própria natureza
misteriosa e simbolista do roteiro, conforme pode ser observado na climática trilha
sonora de temas eletrônicos, na fotografia que varia com notável desenvoltura
entre o sombrio sutil e o luminoso exagerado, na encenação de síntese desconcertante
entre o naturalismo e o estilizado, na caracterização maneirista e icônica dos
personagens. Por falar nisso, é curioso perceber que no elenco da produção está
Karl Grusman, que atuou no papel principal de “Love” (2015), de Gaspar Noé, cineasta
que é uma espécie de gêmeo criativo existencial de Refn.
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