terça-feira, novembro 30, 2010

Jackass 3D, de Jeff Tremaine ***1/2


Assim como na série televisiva originária e nos dois longas que o precederam, “Jackass 3D” (2010) é um compêndio quase aleatório de esquetes envolvendo dublês em pegadinhas e cenas de perigo considerável que, geralmente, acabam com os rapazes machucados. É claro que tudo isso temperado com um grau de demência e escatologia que beira o surreal. Esta produção mais recente da franquia equaciona de forma ainda mais extrema o coeficiente delirante da trupe, contando ainda com um apuro técnico nas tomadas e montagem que evidencia com maior nitidez o grau de absurdo das “brincadeiras” dos caras. Há a utilização, por exemplo, de uma câmera chamada Phantom que ajuda a obter um efeito slow motion incrível, captando movimentos que parecem irreais (característica essa que é ampliada com o uso do 3D). Mas fundamentar o impacto sensorial que “Jackass 3D” tem sobre a platéia apenas pela sua tecnologia seria reducionismo. O ponto forte de empatia do filme está é na criatividade, disposição e loucura de seus protagonistas em se envolver em episódios marcados por brutalidade e humor absurdos, atualizando o espírito dos antigos freak shows de acordo com a ótica sarcástica e desencanada deste século.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Jogos Mortais - O Final, de Kevin Greutert *1/2


Por mais apelativa e derivativa que pudesse ser, a franquia “Jogos Mortais” conseguiu se destacar em alguns episódios (principalmente no terceiro e quarto) por mostrar certo teor barroco na caracterização visual de algumas das brincadeiras violentas de Jigsaw e também por manter uma atmosfera sórdida e sombria em parte de determinadas passagens. Ainda que se revelasse um pouco de criatividade que seus criadores pudessem ter, entretanto, a verdade é que os filmes da série se tornaram cada vez mais repetitivos e burocráticos em termos criativos. “Jogos Mortais – O Final” (2010) parece sinalizar que tal constatação não passou despercebida pelos produtores, sendo que o capítulo final procura amarrar todas as pontas soltas e arrumar uma solução convincente como conclusão. O resultado, todavia, é frustrante por trazer um roteiro que fecha os principais conflitos de forma abrupta e forçada. A trama é tão pouco natural que se acaba ficando com a impressão que daqui alguns meses teremos mais uma continuação para dar seguimento à saga de mutilações. Mesmo as seqüências de armadilhas sangrentas já trazem muitos traços de requintes e elaborações como em outras da série. No final das contas, “Jogos Mortais – O Final” acaba soando mais como uma reciclagem preguiçosa de elementos de uma obra original que no seu princípio já retrabalhava com cara-de-pau elementos da obra-prima “Seven” (1995). E convenhamos: os tão comentados efeitos 3D estão entre os mais toscos e mal aproveitados desta onda recente de uso (e abuso) desse tipo de trucagem.

sexta-feira, novembro 26, 2010

A Suprema Felicidade, de Arnaldo Jabor ***1/2


Confesso que nunca fui grande apreciador de Arnaldo Jabor como cronista. Ele sempre me pareceu um sub-Nelson Rodrigues (justo ele, o melhor tradutor do universo nelsonrodrigueano para o cinema). E isso era uma decepção para mim, pois como cineasta Jabor era um artista bastante inquietante. Sua volta para trás das câmeras em “A Suprema Felicidade” (2010), depois de mais de 25 anos sem filmar, revela uma forte coerência formal e temática com sua filmografia. O naturalismo nunca foi o foco principal no estilo de Jabor – ele sempre pendeu mais para narrativas carregadas de simbologias e exageros formais. Nesta sua obra mais recente, as características mencionadas se chocam com uma trama memorialista com tintas autobiográficas. A trama não obedece a uma ordem linear de fatos – há idas e vindas constantes nos planos temporais, o que junto a uma certa caracterização grotesca de situações e personagens, faz de “A Suprema Felicidade” uma obra meio delirante. Essas opções de Jabor, por mais incômodas que pareçam ao olhar do espectador, acabam se mostrando acertadas por estarem em sintonia com a situação de que estamos vendo os fatos pela ótica de uma criança/adolescente/jovem, visão essa que sempre traz uma dose de fantasia, o que possibilita a Jabor uma série de ousados voos estéticos que extrapolam no barroco, com destaque para a sequência em que o protagonista Paulo visita um bordel que parece vindo direto de um sonho (ou pesadelo). Mesmo a reconstituição de época obedece muito mais a uma lógica advinda de impressões do imaginário infantil/juvenil do que a uma suposta fidelidade histórica.

Perturba também em “A Suprema Felicidade” que a viagem memorialista de Jabor não caia em lugares comuns nostálgicos ou saudosistas. Pelo contrário – predomina no filme um tom que varia entre o pessimista/amargo e a serenidade/resignação, conflito esse de sentimentos ambíguos que encontra a síntese exata na figura do avô de Paulo (Marcos Nanini, em notável atuação dramática distante dos seus habituais papéis cômicos). Jabor começa “A Suprema Felicidade” com fugazes momentos de contentamento para seus personagens (sexo, celebrações, união familiar). Ao longo da trama, entretanto, disseca as ilusões de suas criaturas e joga o espectador num mar de frustrações e desencantos. Assim, a ironia do título filme acaba encontrando respaldo nas palavras do mencionado personagem vivido por Nanini, que diferencia alegria e felicidade e constata que apenas por alguns breves minutos foi feliz em sua vida. Tal momento resume com fidelidade a beleza melancólica e desajeitada de “A Suprema Felicidade”.

Deixa Ela Entrar, de Thomas Alfredson ****


O diretor Tomas Alfredson não apresenta grandes inovações ou invencionices em “Deixa Ela Entrar” (2008). Opta-se por um estilo clássico na concepção formal, mas sempre com classe e sensibilidade raras. O ritmo lento da narrativa é hipnótico e nunca cai no enfadonho, pois tudo o que se mostra na tela é relevante, o que faz com que não se consiga desgrudar os olhos da mesma. A câmera faz travellings insinuantes e reveladores, o que acentua ainda mais o clima de tensão que paira permanentemente. A seqüência em que a vampira Eli se apresenta pela primeira vez ao menino Oskar no fantasmagórico playground do prédio em que moram é um exemplo sensacional dessa concepção formal, com a câmera fazendo um movimento que corresponde ao olhar do garoto que paira no final exatamente na figura de Eli que surge no meio dos brinquedos como se tivesse saído repentinamente do meio das sombras. Aliás, esse é outro ponto forte da direção de fotografia de “Deixa Ela Entrar”: o cuidado com a iluminação aproveita de forma sensacional a ambientação gélida das tomadas externas no meio da neve. Essa construção de uma ambientação sombria e mórbida também recebe a contribuição de uma sóbria edição de poucos cortes. Alfredson faz também um uso econômico, mas tremendamente eficaz, da violência e de efeitos especiais, em que se valoriza ao extremo a atmosfera de suspense até ao ponto que quando finalmente a brutalidade e o sangue irrompem isso se dá de forma impactante.

A estrutura formal de “Deixa Ela Entrar” oferece um molde exato para o estranho conto de amor e morte representado na sua trama. Não há uma preocupação com explicações e justificativas para situações e personagens: Alfredson apenas tem a intenção de fazer do mistério o mote principal e constante do filme. Também não há a ação de evidenciar qualquer espécie de moral que salve ou castigue. Eli mata as suas vítimas, mas não se regojiza ou se culpa por isso: na sua lógica, sugar o sangue das pessoas representa apenas a sua sobrevivência. Assim, o fato de criarmos simpatia ou não por determinados personagens, mesmo que eles sejam tão críveis e bem construídos (o que é o caso deles em “Deixa Ela Entrar”), não representa um fator que evite que eles sejam abatidos pela menina, mas também não impede sequências imersas em poesia melancólica como aquela da morte do pai de Eli. E se outros personagens eventualmente possam merecer uma morte sangrenta e impiedosa (como na seqüência no ginásio das piscinas em que os garotos do grupo que atormentava Oskar são implacavelmente destroçados), pior para eles...

“Deixa Ela Entrar”, na sua estrutura de conto de fadas amoral, resgata a essência do gênero horror naquilo que ele tem de mais primordial: a extrapolação da realidade, a perpetuação do mistério e o medo do desconhecido. Assim como em “O Nevoeiro” (2007) e “Arrasta-me Para o Inferno” (2009), demonstra ainda a capacidade do universo do fantástico em fascinar e amendrontar o imaginário das platéias.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Solo, de Ugo Giorgetti ***1/2


Lendo no papel o tipo de estrutura narrativa proposta por Ugo Giorgetti em “Solo” (2009), pode-se pensar em uma certa preguiça criativa por parte do veterano cineasta paulista. Afinal, o cerne do filme seria o registro de um longo monólogo por parte do personagem interpretado por Antônio Abujamra. O resultado final fático da obra, entretanto, está muito longe do enfadonho, burocrático e previsível. No meio das tomadas com os depoimentos de Abumjara, Gioergetti insere fundos de imagens que variam de cores de forma constante, além de trechos de fotos, animações e registros visuais diversos, estabelecendo uma dinâmica de montagem que magnetiza o espectador e que se relaciona de forma insólita, mas coerente, com o texto contundente proferido pelo protagonista.

E por falar no texto de “Solo”, ao refletir sobre o roteiro do filme acabei lembrando de uma experiência própria relacionada à temática em questão. Tenho 37 anos, e alguns poucos anos atrás estava em uma loja de vinis quando uma mãe entrou com seu filho no local. A criança tinha uns 4 ou 5 anos e olhava espantada para as paredes tomadas de LPs. Ao perguntar para mãe do que se tratava aquilo tudo, a mão respondeu: “Meu filho, antigamente as pessoas escutavam música assim...”. Devo confessar que naquele momento me senti um anacronismo ambulante. Agora se eu, um cara na faixa dos trintas anos, tive tal sensação, imagine pensar o que um senhor ao redor dos 60 ou 70 deve pensar dos padrões culturais, sociais e tecnológicos dos tempos atuais. Pois o personagem solitário de “Solo” é um retrato desse indivíduo atônito com os tempos modernos. Nas suas falas, prevalece uma gama de sentimentos diversos como espanto, melancolia, raiva, sarcasmo, não resvalando, todavia, para a caricatura. A criatura vivida por Abujamra pode se mostrar fragilizada e desconcertada, mas aos poucos adquire uma grandeza quase épica no seu descontentamento com as facilidades vazias da sociedade contemporânea. Renega o rótulo de velhinho excêntrico e auto-indulgente ao jogar na cara do espectador a sua revolta e sagacidade. Em termos metafóricos, parece refletir a posição de Giorgetti em relação à anemia criativa de boa parte das recentes manifestações artísticas brasileiras.

500 Dias Com Ela, de Marc Webb ***

Existem filmes que conseguem ser fortemente sintomáticos em relação à época em que foram realizados, independentes de serem obras primas ou não. Esse é o caso de “500 Dias Com Ela” (2009). Nessa obra de estréia do diretor Marc Webb, conta-se, de forma não linear, a história de do relacionamento amoroso entre Tom (Joseph Gordon-Levitt) e Summer (Zooey Deschanel), dos flertes iniciais até o fim definitivo das esperanças de reatamento. A visão sobre os fatos é pretensamente não idealizada, procurando um viés realista e irônico sobre os envolvimentos amorosos, tanto que o roteiro é inspirado em fatos reais vividos pelo seu autor (como deixa clara a hilária explicação escrita no início do filme). Nesse sentido, “500 Dias Com Ela” apresenta momentos de grande força dramática pela crueza com que expõe sentimentos e sensações. As sequências que mostram o progressivo distanciamento do casal são dolorosas, alguns diálogos entre os dois são dilacerantes pelas amargas conclusões a que chegam. Além disso, o filme evidencia que fatores como estabilidade emocional e vida profissional são fundamentais na consolidação do “amor”, desacreditando que esse último possa ser incondicional. Uma grande sacada de Webb também é fazer com que o espectador veja as situações pelo olhar de Tom. Assim, vê-se Summer sempre sobre uma perspectiva de dúvida, pois não se tem muita idéia do que ela está pensando. A imprevisibilidade e o seu olhar distante só aumentam a insegurança e a perplexidade de Tom, e quem assiste a “500 Dias Com Ela” consegue entender perfeitamente o porquê. Assim, não há como não criar uma identificação com o rapaz e, por conseqüência, com o próprio filme.

Todas essas características perturbadoras parecem ter assustado o próprio Webb, o que fez com que ele oferecesse um tom cômico em boa parte do filme para evitar cair em excessos depressivos. Na realidade, dá até para dizer que Webb faz uma certa gozação metalinguística com a tristeza que emana durante várias oportunidades em “500 Dias Com Ela”. Há um narrador que frequentemente explica o que os protagonistas sentem e as lições que eles podem estar tirando dos fatos, uma menina de cerca de 12 anos que é a conselheira sentimental de Tom, pequenos números musicais e truques visuais que trazem um toque de fantasia para a produção. Tais detalhes revelam as próprias origens de Webb, um prestigiado diretor de vídeo-clips musicais, mas também concentram os pontos fracos do filme. Por que um narrador explicitando coisas que já estariam suficientemente claras apenas com imagens? E por mais que algumas das constatações da mini-conselheira de Tom sejam de uma lucidez cortante, o fato delas serem proferidas por uma figura tão insólita acaba tirando muito do impacto que poderiam ter. É justamente nesses equívocos que reside o motivo de “500 Dias Com Ela” ser um filme sintomático do seu tempo: o desejo de ser pop, cult e referencial, quesitos básicos do atual cinema com pretensões pós-modernas. Isso fica claro nesta tendência de em alguns momentos Webb mastigar o sentido das cenas para quem assiste, não deixando espaço para interpretações. Em tais seqüências, não se permite a leitura de um sub-texto a partir do roteiro, pois tal sub-texto já está ostensivamente delimitado. E se em algumas oportunidades a identificação do público com as desventuras de Tom vem ao natural, em outras Webb força essa aproximação por meio de referências como músicas e filmes, recurso que acaba soando muito formulaico, derivado do estilo Nick Hornby (o escritor de “Alta Fidelidade”, a bíblia dos adoradores de referências pop). Detalhes como música, vestuário, livros, etc, são acessórios, mas não efetivamente definidores de espírito de personagens. Podem soar divertido em alguns momentos, mas no final jogam esses mesmos personagens para um nível caricatural ou de estereótipo (o que acaba acontecendo com Tom). Buscar sempre a aproximação com a realidade imediata do espectador não significa necessariamente uma legitimidade artística.

Mas talvez essa discussão seja filosófica ou antropológica demais para uma simples resenha cinematográfica. Mesmo estando longe da perfeição, “500 Dias Com Ela” é um debut promissor e faz despertar curiosidades sobre o que o Mark Webb possa realizar nas suas próximas produções. Afinal, seus equívocos revelam muito mais a vontade de experimentar com a linguagem do cinema do que um sinal de acomodação.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Ondine, de Neil Jordan ***


Mesmo não tendo a contundência formal é temática de obras como “Michael Collins” (1996), “Nó na Garganta” (1997) e “Fim de Caso” (1999), “Ondine” (2009), produção recente de Neil Jordan, ainda consegue mostrar bastante do estilo particular de seu realizador. Ao longo de boa parte de sua trama, a narrativa se mostra sinuosa, trafegando com certa sutileza e ambiguidade entre a fantasia e a realidade. A forma com que Jordan retrata personagens e situações acentua ainda mais tal aspecto dúbio, com uma fotografia que explora enevoadas paisagens marítimas quase como se as mesmas fizessem parte de universo mágico ou paralelo, assim como a enigmática Ondine (Alicja Bachleda) recebe uma caracterização difusa entre o etéreo e o carnal. É fascinante ainda a aura de atemporalidade que permeia o filme, em que velhas lendas regionais convivem de forma harmoniosa com referências de modernidade. Assim, por exemplo, o mito do canto da sereia pode ser relacionar com o rock climático e abissal da banda islandesa Sigur Rós. No geral, o cineasta sugere que o elemento fantástico está muito mais no olhar do que numa definição conceitual. “Ondine”, entretanto, perde bastante do impacto no seu terço final, justamente quando procura uma explicação “coerente” para os mistérios que rondam sua trama, com a atmosfera de ambivalentes planos de realidade se esvanecendo.

Amantes, de James Gray ****


Numa das entrevistas que concedeu para divulgar o magnífico “A Época da Inocência” (1993), Martin Scorsese, ao ser questionado sobre o fato de estar fazendo um filme de época depois de tantas obras sobre a máfia, colocou que aquele era um filme de época feito sob a lógica de um filme de gângsteres. Essa história me veio à mente ao assistir a “Amantes” (2008): apesar de aparentemente pertencer ao gênero drama romântico, o filme é desenvolvido pelo diretor James Gray, mais afeito ao universo das produções policiais (vide o extraordinário “Os Donos da Noite”, de 2007), como se fosse um tenso e seco thriller, algo como um “O Poderoso Chefão” de tons intimistas.

A trama de “Amantes”, na sua superfície, é simples e quase banal: Leonard (Joaquin Phoenix), rapaz perturbado e com tendências suicidas, apaixona-se por Michelle (Gwyneth Paltrow), sua transtornada vizinha, ao mesmo tempo que começa namorar Sandra (Vinessa Shaw), a pacata e centrada filha do futuro sócio do seu pai. A simplicidade dessa premissa, entretanto, é ilusória. “Amantes” caminha por uma trilha bem mais tortuosa. A polarização que se faz entre as duas mulheres não é entre a maniqueísta divisão de quem é a malvada e quem é a boazinha. Michelle, amante de um poderoso e casado advogado (Elias Koteas), pouco oferece a Leonard: não o ama, mas constantemente o procura como apoio moral. O que atrai Leonard para o caótico mundo de Michelle não é apenas beleza ou sexo: numa sociedade que lhe exige adequação e que tome os seus remédios, ele vê na vizinha uma alma gêmea igualmente confusa. Já Sandra é carinhosa e compreensiva em relação ao passado conturbado do namorado. Sua figura tem um forte elemento simbólico ao se apresentar como praticamente uma extensão da pessoa da mãe (Isabela Rossellini) do rapaz (uma das cenas finais na praia, em que o par de luvas caídas na água traz a Leonard a lembrança de Sandra, é a síntese magnífica dessa simbologia). Uma afirmação mais de uma vez é proferida em relação à Sandra: vários rapazes correm atrás dela desejando namoro... Ela representa segurança emocional, afetiva e até mesmo financeira. Mas o que deveria ser um alento acaba sendo apenas mais um tormento a sufocar Leonard.

O filme não oferece concessões a Leonard e nem ao espectador. Temos a sensação de saber desde o começo da história que o envolvimento do protagonista com Michelle é pura encrenca para ele. Gray disseca o que poderia haver de romântico e nos joga a carcaça da realidade. O que nos comove na sequência em que Leonard se declara para Michelle não é uma improvável redenção pelo amor romântico, mas sim o desnudamento emocional do rapaz, mostrando-se em toda a sua fragilidade e confusão psicológicas.

James Gray oferece para esse pequeno épico de desilusão amorosa um estilo formal de talhe clássico. A edição oscila de forma admirável entre a serenidade quase contemplativa e o dinamismo objetivo e vibrante, como se fosse uma metáfora para o comportamento bipolar de Leonard. As sequências envolvendo o passeio noturno dele, Michelle e suas amigas são exemplares nesse sentido, das divertidas brincadeiras entre os personagens durante o trajeto no carro até a sensual e febril festa numa boate, evocando a memorável abertura de “Os Donos da Noite”. Igualmente representativas dessa precisa arquitetura narrativa da montagem de “Amantes” são as cenas em que Leonard e Michelle se comunicam dos seus apartamentos tanto pelos seus celulares quanto gritando pelas janelas (ou, às vezes, simplesmente se olhando).

A fotografia também é um capítulo à parte. Tanto as tomadas externas quanto as internas são banhadas por tons escuros e atmosféricos, como se sublinhassem os sentimentos de desconforto e angústia de Leonard e também o comportamento errático e imprevisível de Michelle. O breu de certas seqüências é um elemento dramático que dá um sentido fundamental para algumas das principais passagens de “Amantes”. O ápice dessa inspirada utilização sombria das cores é a cena em que aos poucos Michelle sai das sombras e o seu rosto vai revelando a intenção de não ficar mais com Leonard.

E não há como esquecer também das fantásticas sequências realizadas no telhado do prédio onde moram Michelle e Leonard: geralmente filmadas sob a iluminação cinzenta dos finais de tarde e com enquadramentos altamente expressivos, tais momentos guardam alguns dos instantes mais cruciais e sombriamente belos do filme, tanto pelo impacto das imagens quanto pelos diálogos reveladores dos personagens.

Muito tem se destacado nas matérias sobre “Amantes” a antológica interpretação de Joaquin Phoenix, sendo que realmente não há como se impressionar. Sua atuação é tão cheia de intensidade e sutilezas que fazem de Leonard alguém incrivelmente crível e humano. Mas seria injusto não destacar também o ótimo trabalho de Gwyneth Paltrow. Confesso que nunca fui muito entusiasta da atriz, mas aqui ela consegue sair daquelas gastas e cansadas caracterizações unidimensionais de loirinhas frágeis e adoráveis, fazendo de Michelle uma criatura que tanto vai do apaixonante quanto ao irritante.

terça-feira, novembro 23, 2010

Capitalismo: Uma História de Amor, de Michael Moore ***


Em um primeiro momento, a intenção de Michael Moore em “Capitalismo: Uma História do Amor” (2009) é expor as razões que levaram à crise econômica norte-americana que estourou em 2008 e se estendeu pelo resto do mundo. Ao longo do documentário, entretanto, tais motivos vão ficando cada vez mais nebulosos, inclusive para o próprio diretor! Moore parece refletir o espanto do espectador ao se ver perdido em conceitos complexos e tecnicismos do mercado de ações e demais especulações. Isso não quer dizer que ele não permite deixar evidente seu ponto de vista sobre o assunto, adotando uma postura crítica ostensiva sobre as políticas econômicas e sociais adotadas pelos governos norte-americanos, tanto republicanos quanto democratas, nos últimos 30 anos, formando um amplo painel sobre a trajetória dos Estados Unidos no mencionado período. É claro que a visão do diretor traz uma certa carga ideológica, além de tentar encontrar explicações em razões um tanto simplistas e superficiais. É inegável o talento de Moore, todavia, em emoldurar suas concepções pessoais em um formato acessível e bem humorado. As sequências que mostram famílias sendo despejadas pelos bancos em virtude de hipotecas não pagas, por exemplo, são contundentes ao tornar factíveis as conseqüências da farra especulativa dos banqueiros e agentes governamentais irresponsáveis. O cineasta combina depoimentos e trechos diversos de filmes de ficção e documentais aliado a sua habitual interação com os personagens e situações do seu filme, obtendo como resultado final uma obra que beira a tragicomédia tamanha a ironia ácida e amarga que transpira. Mesmo que seus pretensos fins didáticos acabem não sendo correspondidos na sua totalidade, Moore consegue em “Capitalismo: Uma História de Amor” oferecer um registro emblemático e acessível de uma era e suas complexidades.

Abraços Partidos, de Pedro Almodovar ***1/2


Em linhas gerais, a carreira do cineasta espanhol Pedro Almodóvar se divide em três fases. Na primeira, que começa em “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón” (1980) e vai até “Kika” (1993), o que fica em primeiro plano é o tom anárquico, com o diretor satirizando impiedosamente vários aspectos da sociedade espanhola, principalmente aqueles herdados da era franquista: o conservadorismo, a religiosidade obscurantista, a repressão sexual. Os roteiros dos filmes eram rocambolescos e exagerados, mas traziam uma estranha combinação de humor escrachado e dramaticidade. Além disso, sua narrativa cinematográfica foi sendo aprimorada a cada produção. Na segunda fase, Almodóvar enveredou para uma criativa recriação do gênero clássico de melodramas, sempre permeada por sutis e amargos toques cômicos. Nessa linha, gerou três obras memoráveis – “A Flor do Meu Segredo” (1995), “Carne Trêmula” (1997) e “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999). Por fim, a terceira fase, que se inicia em “Fale Com Ela” (2002) e se desdobra até hoje, buscou uma espécie de síntese das fases anteriores, além de estabelecer o gosto por uma linguagem cada vez mais referencial e tomando o próprio cinema como tema em si. E é justamente aí que se enquadra “Abraços Partidos” (2009).

Nessa produção mais recente, fica ainda mais escancarada a tendência do cineasta em focar o cinema quase como personagem. Ao tomar como protagonista o diretor e roteirista Mateo Blanco (Lluís Homar), Almodóvar tem a premissa ideal para fazer uma série de citações e homenagens cinéfilas de forma ampla, indo desde daquilo que é considerado como parte do topo do cinema como arte (o clássico italiano “Viagem à Itália” de Roberto Rossellini) até a um gênero menosprezado como o terror (é antológico o diálogo entre Mateo e o seu assistente em que eles criam uma estapafúrdia trama envolvendo vampiros que se aproveitam de doadores de sangue). Por esse viés, passa também a figura de Lena (Penélope Cruz), que na sua caracterização traz evocações a divas como Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Sophia Loren e Catherine Deneuve – essa última em cenas que remetem à obra-prima de Buñuel, “A Bela da Tarde” (1967). Almodóvar aproveita, inclusive, para fazer uma auto-homenagem no “filme dentro do filme” que há em “Abraços Partidos”, uma espécie de releitura de “Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos” (1988).

Almodóvar condensa habilmente esse mar de citações e seqüências de metalinguagem em uma trama que remete a dois gêneros clássicos – o policial noir e o melodrama típico das produções da Hollywood dos anos 40 e 50. Nesse sentido, lembra bastante o que ele já havia feito no excelente “Má Educação” (2004). Em “Abraços Partidos”, a narrativa em vários momentos adota uma linha investigativa, em que passado e presente se alternam intensamente, visando descortinar os mistérios que rondam os personagens. É uma trama, entretanto, que não é para ser levada muito a sério – é nesse ponto que se revela a veia cômica do cineasta. Não há maiores sutilezas nessa recriação do noir e do melodrama. Almódovar faz a sua reciclagem escolhendo as vias do exagerado e do paródico, desconcertando o espectador com essa falsa dramaticidade. O que é uma virtude do cineasta se revela, entretanto, como ponto fraco de “Abraços Partidos” em algumas oportunidades – há seqüências em que Almodóvar parece ele mesmo acreditar na seriedade das situações que criou. Nesse sentido, o momento em que Blanca (Judit Garcia) faz as “revelações finais” para Mateo é particularmente enfadonho, digno de algumas rasteiras novelas televisivas.

“Abraços Partidos” consolida um momento na carreira de Almodóvar em que ele não está mais disposto a se mostrar como inovador ou iconoclasta. Assim como Tarantino, está mais interessado na constituição de um universo personalista, em que seus filmes sempre traduzirão as suas obsessões estéticas e temáticas, mesmo que possa a vir se repetir, eventualmente (o que não é necessariamente um defeito). No mundo cinematográfico de hoje, poucos têm o talento suficiente para poder se dar a esse luxo.

segunda-feira, novembro 22, 2010

Atividade Paranormal 2, de Tod Williams **1/2


Mesmo dentro de uma concepção normal que beira a fuleiragem, parece que “Atividade Paranormal” vai se estabelecer como mais uma lucrativa franquia no gênero horror (as notícias de que uma terceira parte já está em fase de pré-produção só confirma tal tendência). Como em outros exemplares de filmes em série, a preocupação principal está em oferecer mais do mesmo em detrimento de trazer alguma inovação. Assim, esta primeira seqüência (2010) de “Atividade Paranormal” repete os truques estéticos e temáticos da obra que a precedeu. Basicamente, são vários minutos em que pouca coisa acontece, com a edição combinando filmagens caseiras e tomadas de câmeras de vigilância mostrando cenas de quotidiano, buscando-se o efeito de um falso documentário. Quando a narrativa ameaça enveredar para o marasmo, o roteiro trata de inserir alguns sustos para lembrar o espectador que ele está vendo um filme de horror. Tal fórmula pode ser manjada, mas na produção em questão acaba manipulada até com razoável eficiência, com o diretor Tod Williams mantendo a tensão em meio a tomadas que em sua essência retratam cenas quotidianas. Por mais que essa orientação possa ser anti-climática, acaba cativando o espectador justamente por tornar o terror tão próximo da realidade deste último.

sexta-feira, novembro 19, 2010

Atração Perigosa, de Ben Affleck ****


Este é o tipo de filme que teria tudo para afastar os apreciadores de cinema em geral. Para começar, o horrível título genérico escolhido para o mercado brasileiro. Além disso, o fato de ter o habitual canastrão Ben Affleck como diretor não seria a melhor das credenciais. O negócio, entretanto, é deixar os preconceitos de lado e encarar “Atração Perigosa” (2010), uma das grandes surpresas cinematográficas do ano. O motivo para tal entusiasmo não está no fato de Affleck traga inovações para o gênero policial. Ao contrário: tudo na produção se remete a um estilo clássico de realização – roteiro de situações e conflitos previsíveis (mas sempre marcantes), fotografia desprovida de efeitos ou invencionices, edição que alterna longos planos contemplativos e tomadas repletas de cortes precisos, elenco de atuações sóbrias. Esse conjunto de elementos já foi visto em várias produções, mas é inegável que Affleck domina o mesmo com notável habilidade. Seu domínio da ação é extraordinário – sabe criar a tensão necessária nas seqüências de diálogos e de ritmo narrativo mais lento e ao mesmo tempo cria momentos de aventura eletrizantes (as cenas de roubos a bancos e perseguições automobilísticas humilham Paul Greengrass, Zack Snyder e afins). Cabe ainda ressaltar alguns achados visuais notáveis, como o detalhe das máscaras usadas pelos assaltantes. E é provável que olhar mais detalhista de Affleck como cineasta tenha influenciado até mesmo o seu lado de intérprete dramático, pois em “Atração Perigosa” ele oferece a sua atuação mais sanguínea e repleta de nuances. Ou seja: para quem achava que o cinema policial norte-americano andava em decadência, “Atração Perigosa” é um desmentido bastante enfático.

quinta-feira, novembro 18, 2010

O Solteirão, de Brian Koppelman e David Levien ***


Para começar, cabe logo um esclarecimento: a escolha do título deste filme para o mercado brasileiro foi infeliz em qualquer sentido que se possa imaginar. Por um lado, pode afugentar aquela parte do público que não se sente atraída por comédias ligeiras (coisa que o filme não é). E sob outra perspectiva, ainda mais importante, não tem sintonia com o espírito da obra (no caso, a produção originalmente se chama “Homem Solitário”).

Tirando esse aspecto do título, “O Solteirão” (2009) é uma obra surpreendente. Mesmo dentro de uma concepção formal que quase nunca foge do convencional, acaba adquirindo uma força inesperada pelo roteiro bem construído e pelas eficientes composições dramáticas de seu elenco. A trama do filme consegue manter um tom constante de incerteza e perplexidade com o comportamento errático do protagonista Ben (Michael Douglas). O personagem se afunda de forma progressiva em um inferno pessoal, mas parece quase se divertir com isso em alguns momentos. Douglas acha com naturalidade o tom de sua interpretação, variando com sutileza a gama de emoções que emanam de Ben (indiferença, melancolia, bom humor afiado). “O Solteirão” mantém sem maiores concessões a sua coerência temática, não procurando muitas explicações para o comportamento de seu personagem, aspecto esse que se cristaliza na bela conclusão em aberto do filme.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi ***1/2


A revolta que exala de “Cronicamente Inviável” (2000) contra os costumes pequeno-burgueses da sociedade brasileira não se configura apenas em termos temáticos. Para destilar seu veneno ideológico, o diretor Sérgio Bianchi utiliza uma estética inquietante, como que mostrando que a realidade complexa que aborda não pudesse ser abarcada apenas com uma narrativa linear e naturalista. O cineasta faz colidir elementos diversos como registros falsamente documentais, caracterizações estilizadas e exageradas de situações e personagens, interpretações dramáticas de empostações quase teatrais. Tais detalhes formais compõem uma moldura adequada para o roteiro que faz uma espécie de tratado sociológico-científico das mazelas sociais no formato de pequenas histórias que tem como mote exploração econômica, preconceitos raciais e de classe e vazio existencial. Bianchi, contudo, não envereda por análises acadêmicas ou didáticas. No final das contas, “Cronicamente Inviável” é muito mais o seu manifesto de inconformismo contra a realidade que o cerca do que uma hipócrita visão “isenta” dos fatos.

terça-feira, novembro 16, 2010

Piranha 3D, de Alexandre Aja ***1/2


Em “Alta Tensão” (2003) e “Viagem Maldita” (2006), o cineasta francês Alexandre Aja já havia empreendido uma revisão radical dos truques e clichês mais emblemáticos do cinema gore norte-americano. Nesta revisão da produção original de Joe Dante lançado em 1978, Aja se aprofunda na referida opção estética. A impressão que se tem assistindo a “Piranha 3D” (2010) é que alguém passou muito tempo de sua vida vendo obras repletas de sangue, mutilação, mulher pelada e erotismo barato e resolveu regurgitar tudo isso de forma extrema em único filme. Tudo em “Piranha 3D” é exagerado e caricatural, mas sempre é filtrado por uma estilização insólita. De forma muito particular, Aja declara seu amor a um gênero cinematográfico normalmente desprezado, mas que na verdade sempre guardou consideráveis possibilidades criativas, e que aqui são muito bem aproveitadas por Aja. Mesmo com o oportunista efeito 3D, pode-se perceber que a trucagem é realizada com categoria pouco usual. Em algumas sequências, o efeito torna as imagens confusas, principalmente nas tomadas aquáticas envolvendo os simpáticos bichinhos (a mistura de sangue, tripas e peixes velozes e vorazes parecem se fundir num tom vermelho único). Por outro lado, o 3D traz um impacto visual notável em outros momentos, com destaque para o bagaceiro balé aquático entre duas mocinhas nuas e siliconadas.

sexta-feira, novembro 12, 2010

Coco Chanel & Igor Stravinsky, de Jan Kounen ***1/2


Confesso que o meu primeiro contato com a música de Stravinsky foi de maneira enviesada. Em “Israel”, faixa de abertura do álbum ao vivo “Nocturne” (1983) da banda gótico-punk Siouxsie and The Banshees, havia um trecho da “Sagração da Primavera” que servia quase como uma breve vinheta. Mesmo que de duração rápida, aqueles arranjo e melodia épicos e sinistros nunca saíram da minha mente.

Algumas das primeiras tomadas de “Coco Chanel & Igor Stravinsky” (2009) já revelam logo de cara que não estamos diante de uma mera cinebiografia: uma câmera inquieta voa no meio da primeira apresentação da “Sagração da Primavera” em Paris, flagrando vários detalhes – a evolução do tema musical de acordo com a entrada e participação de cada instrumento, o registro do balé coreografado por Nijinsky e as reações exaltadas e contrastantes na platéia. No meio dessa confusão, pode-se perceber Coco Chanel (Anna Mouglalis) de seu camarote, envolta em sombras (o tom sombrio da fotografia lembra bastante o extraordinário trabalho de Gordon Willis em “O Poderoso Chefão 3”). Tal abertura revela desde o início que “Coco Chanel & Igor Stravinsky” envereda muito mais por uma realidade idealizada, em que os truques estéticos realçam o aspecto de pessoas e fatos relevantes que compõem um imaginário coletivo em detrimento daquilo que é factual. De certa, a mesma abordagem pela qual Martin Scorsese enveredou na obra-prima “O Aviador” (2004).

Mesmo que se formate dentro de um esquema de melodrama e com alguns dados efetivamente históricos, “Coco Chanel & Igor Stravinsky” nunca abandona o tom da verdade que é pervertida pela fantasia. Até porque não houve uma definitiva conclusão de que os protagonistas tenham tido um relacionamento amoroso na vida real. Mesmo que se trate de ficção e se aprofunde em estilizações, entretanto, o filme acaba sendo fiel no sentido de dar uma ideia muito aproximada da dimensão da importância e influência de Chanel e Stravinsky para a cultura e o comportamento ocidentais do início do século XX até os dias de hoje.

A ousadia do tipo de narrativa adotado pelo cineasta Jan Kounen em “Coco Chanel & Igor Stravinsky” se cristaliza na seqüência final da produção, quando a já consagrada “Sagração da Primavera” recebe uma nova apresentação em Paris. Nestas cenas derradeiras, Kounen encadeia uma série de tomadas que evocam uma estranha mistura entre o onírico e o delírio, em que passado, presente e futuro vão se intercalando de forma desconcertante, numa conclusão de raro impacto sensorial que parece absorver um pouco da atmosfera difusa da filmografia de David Lynch.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro, de José Padilha ****


A comparação pode soar óbvia, mas “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro” (2010) lembra muito a segunda parte de “O Poderoso Chefão”, no sentido que ambas possuem tramas auto-contidas e independentes das obras que o precedem, mas que também servem como uma forma de complementar o sentido dos filmes iniciais. Se na obra original de 2007 o diretor José Padilha determinava um ritmo narrativo vertiginoso para mostrar a trajetória obsessiva do Capitão Nascimento (Wagner Moura) em encontrar um substituto para si além de prender ou matar os marginais que apareciam pelo caminho, nesta continuação ele opta por uma linha mais reflexiva e cerebral, intercalando com econômicas, mas precisas, sequências de ação. Mesmo com uma trama que se desenvolve muito mais em diálogos e nos ambientes fechados de gabinetes, a tensão é sempre constante. Tal opção formal e temática não é gratuita, tornando “Tropa de Elite 2” uma obra bastante diversa daquela que a precedeu. Se nesta enxergávamos quase que somente a violência de marginais reprimida sem concessões pelo BOPE, na continuação são expostas as possíveis causas da violência mencionada.

Por mais que a visão sobre a brutalidade do conflito entre a polícia e a marginalidade seja crítica, entretanto, é inegável que José Padilha se revela um exímio coreógrafo da violência cinematográfica. O cineasta faz questão de que o espectador não perca sequer um detalhe da ação. Perseguições, tiroteios e golpes são registrados com fotografia e montagem que privilegiam a clareza visual, ainda que em certos momentos assumam uma estética que beira o documental. É extraordinária, por exemplo, a tomada em que o enfurecido Capitão Matias (André Ramiro) interroga, com requintes de crueldade, um traficante: o enquadramento mostra os rostos dos personagens em posições contrastantes, ressaltando de forma assustadora a posição de fragilidade do marginal perante o policial.

Aliás, é de se destacar o trabalho de caracterização dos personagens, um dos grandes trunfos artísticos de “Tropa de Elite 2”. O já citado Capitão Matias, mais contido na primeira parte, ganha uma dimensão quase de possessão por se revelar uma extensão ainda mais furiosa do Capitão Nascimento. Já o Comandante Fábio (Milhem Cortaz) é a face de uma malandragem que oscila entre a ingenuidade e o puro cinismo, enquanto o miliciano Russo (Sandro Rocha) é um vilão antológico pela aura insidiosa que o cerca. Mas no campo da interpretação, nenhum deles consegue superar a gama de emoções que extravasa de Wagner Moura ao oferecer um Nascimento que flui com naturalidade entre a raiva e a frustração represadas e visíveis apenas no olhar até momentos de explosões temperamentais devastadoras.

Em meio a tantas qualidades que “Tropa de Elite 2” contém, há um detalhe que, em um primeiro momento, aparece como ponto negativo: a narração em off de Nascimento acaba se excedendo em contar detalhes da trama que já estariam suficientemente claras pelas próprias imagens expostas no filme. Essa mesma narração, entretanto, traz um dos aspectos mais desconcertantes da produção. É que na verdade ela revela uma visão subjetiva do personagem sobre os fatos e pessoas que o cercam, o que faz com que o espectador seja simpático à ideologia pragmática do mesmo. Mas tal visão não representa a posição de Padilha (e consequentemente do filme) sobre o que é mostrado na tela. Assim, ao longo da trama muitas das concepções de Nascimento se evidenciam como equivocadas e as aparentes certezas iniciais acabam demolidas. Ou seja, Padilha “induz ao erro” a platéia, fazendo com que ela deixe aflorar seus instintos e preconceitos, para depois questioná-la com veemência. A sutileza de tal abordagem qualifica ainda mais “Tropa de Elite 2” como uma das melhores obras cinematográficas de 2010.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Alô Alô Terezinha, de Nelson Hoineff ***1/2


Não vou bancar o cool e dizer que sempre gostei de Baby Consuelo. Na verdade, foi só na década de 90 que fui escutar Novos Baianos e perceber que a Baby era, provavelmente, uma das três melhores cantoras que o Brasil já teve. O problema, entretanto, é que a primeira vez que a vi/ouvi foi nos anos 80, quando ela já havia virado paródia de si mesma e tinha uma carreira solo pouco louvável, imersa em breguice e misticismo picareta, além de ostentar um vestuário que oscilava entre o espalhafatoso e o francamente ridículo. Pois é justamente essa Baby pouco recomendável que surge no esplendor de sua cafonice em “Alô Alô Terezinha” (2008), documentário que focaliza os bastidores de programas de auditório comandados por Abelardo Barbosa, também conhecido como Chacrinha. Ainda no campo das reminiscências, também devo confessar que eu não era muito fã de tais programas. Talvez para a minha mentalidade de criança/adolescente de classe média aqueles momentos eram excessivos demais: cantores e cantoras despejando canções de romantismo açucarado insuportável, uma platéia histérica, jurados extravagantes, as chacretes executando coreografias dignas de bordéis e, a cereja nesse bolo de gosto duvidoso, a figura do Velho Guerreiro, um homem que parecia estar constantemente em possessão alucinada comandando todo aquele caos. Revendo tudo isso em “Alô Alô Terezinha”, todavia, tive uma impressão diferente daquela confusão bufona e colorida. Não foi apenas um ataque de nostalgia, mas também uma compreensão de que aquilo captava com perfeição boa parte das contradições que permeiam a alma coletiva brasileira.

Cabe ressaltar que “Alô Alô Terezinha” não tem a ambição de biografar Chacrinha. Pelo contrário: de certa maneira, parece até reforçar o mistério e a aura de mito sobre a sua pessoa. O diretor Nelson Hoineff concentra a sua narrativa em imagens de arquivos montadas de forma aparentemente aleatória e em depoimentos de pessoas que gravitavam em torno do apresentador – músicos, calouros, jurados, profissionais da produção do programa e, é claro, as inevitáveis chacretes. Aliás, o elemento sexual é muito forte na composição do roteiro – discute-se quem transou com as chacretes, com quais delas Chacrinha tinha caso, o impacto que elas tinham sobre o imaginário nacional. O que poderia ser apelativo, contudo, na realidade é essencial para termos uma idéia aproximada do clima fortemente erótico e exuberante que emanava daqueles programas de televisão. E nesse sentido, faz-se a conexão do pernambucano Chacrinha com artistas mambembes que percorrem o sertão com espetáculos musicais e de variedades que utilizam um humor erótico que varia entre o ingênuo e o malicioso.

Hoineff faz das chacretes uma espécie de fio condutor da narrativa. Além de revelarem detalhes, picantes ou não, do que acontecia por trás dos panos, elas ganham uma dimensão inesperada ao exporem suas vidas pós-Chacrinha, impressionando pela sinceridade e contundência ao falarem de desejos, frustrações e saudades. Para mulheres que eram admiradas por sua beleza física e sensualidade, é difícil não encarar o envelhecimento biológico como uma amarga decadência. Para ressaltar essa visão, Hoineff obtém seqüências preciosas como aquelas em que consegue fazer uma das chacretes, já bem mais rechonchuda, vestir um dos maiôs da época do programa, ou quando convence a veterana Índia Potira a ficar pelada.

As idéias de decadência e do grotesco são chaves na concepção formal e temática de “Alô Alô Terezinha”, pois realçam o gosto pelo extremo de Chacrinha. O que vem delas também é o tom de melancolia nostálgica que está presente no olhar da maioria daqueles que deram seus depoimentos para o filme. Todos têm a consciência que havia algo de sórdido nos programas, que Chacrinha humilhava os calouros e insultava chacretes e demais colegas, que os gritos vindo das “macacas de auditório” eram insuportáveis, que boa parte das apresentações musicais eram marcadas por canções medíocres e artistas pouco talentosos. Mesmo assim, há neles a consciência de que tudo aquilo tinha uma forte espontaneidade e um carisma que são praticamente ausentes na televisão hoje em dia, quando besteirois como Faustão, novelas, Big Brother e quetais são levados a sério.

“Alô Alô Terezinha” também soa como uma resposta a uma série de produções que trazem um ideal de uma cultura brasileira marcada pela autenticidade e bom gosto. “Coisa Mais Linda” (2005) evoca uma elitista bossa nova, “Vinicius” (2005) idealiza seu biografado como o letrista e poeta ideal, “Loki” (2008) entroniza os Mutantes como os mais revolucionários do nosso rock, “Um Homem de Moral” exalta o samba bem articulado de Paulo Vanzolini (2009). Já o documentário de Hoineff traz à tona artistas como Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo e faz deles legítimos representantes da cultural popular, independentes dos mesmos atenderem ou não aos padrões parnasianos dos cadernos culturais. Por sinal, o antológico depoimento de Timóteo sobre João Gilberto pode ser exagerado, mas, no contexto do filme, tem quase a força de um desafio.

O mais fascinante em “Alô Alô Terezinha” é o fato de que Hoineff, ao retratar um período e personagens específicos da nossa história cultural, conseguiu fazer uma extraordinária radiografia do próprio Brasil, confrontando épocas diferentes e constatando que há um povo que progressivamente perde sua identidade, tanto pela imposição de padrões estéticos assépticos como pela influência obscurantista de igrejas evangélicas – não a toa, o documentário mostra algumas chacretes e os já mencionados Baby Consuelo e Nelson Ned que se converteram na fase descendente de suas carreiras.

No mais, não sei se a intenção de Hoineff era realmente promover essa recuperação de uma parte da cultura brasileira que costuma ser ignorada ou simplesmente esquecida. Da minha parte, pelo menos, até comecei a ver de uma outra forma aquela Baby Consuelo oitentista...

Juntos Pelo Acaso, de Greg Berlanti


O problema de “Juntos Pelo Acaso” (2010) não está no fato de ser uma obra imersa em clichês narrativos e um roteiro pra lá de previsível, mas sim na questão do diretor Greg Berlanti fazer isso sem a menor convicção. O filme até ameaça no início enveredar por um caminho mais dramático dentro do gênero da comédia romântica, mas a condução burocrática de Berlanti torna tudo muito mecânico e sem alma, mesmo que apele para vários golpes emocionais ao longo da trama. No mais, “Juntos Pelo Acaso” também serve para constatar que Katherine Heigl é a versão atualizada e ainda mais insípida de Meg Ryan.

Como Esquecer, de Malu De Martino **1/2


A trama de “Como Esquecer” (2010) não apresenta maiores novidades dentro de um tema bastante explorado no cinema: o final de um relacionamento amoroso e as duras consequências para aquela parte que ainda se sente apaixonada pela outra que terminou a relação. No caso do filme em questão, há ainda o detalhe do rompimento se dar entre um casal de lésbicas. Aliás, isso é algo que chega a ser quase irônico, pois no universo de “Como Esquecer” praticamente todos os personagens são gays, dando uma impressão de que os heterossexuais são a “minoria”. Nesses termos, questões como o preconceito são deixadas de lado. Mas essa produção brasileira não é destinada apenas para um nicho específico de público. Os dilemas e conflitos expostos são universais e criam possível identificação com a platéia. A diretora Malu De Martino expõe o calvário de sofrimento emocional da protagonista Julia (Ana Paula Arósio) de forma detalhada e sem concessões. Além disso, a dimensão humana da personagem é bem explorada no sentido de mostrar reações e sentimentos de forma perturbadora tamanha a crueza com que os mesmos são expostos. O que atrapalha “Como Esquecer” como obra cinematográfica é a sua aproximação constante e forçada com a literatura, com uma narração em off que beira várias vezes o excessivo, com direito a longas citações literárias. Tudo bem que Julia é uma professora de literatura, sem contar o fato da diretora buscar relacionar nuances do roteiro com alguns clássicos literários que são citados ao longo do filme. É evidente também, entretanto, que a opção por uma narrativa mais baseada no poder de sugestão das imagens em algumas tomadas tornaria “Como Esquecer” mais estimulante em termos formais.

segunda-feira, novembro 08, 2010

O Refúgio, de François Ozon ***


O cineasta francês François Ozon já enveredou por vários gêneros cinematográficos dentro de sua filmografia. Mesmo com essa variedade, contudo, suas produções mantiveram uma certa unidade em termos temáticos e estéticos, prevalecendo uma abordagem em que prevalece uma ácida ironia e o distanciamento emocional. “O Refúgio” (2009) não foge do padrão de Ozon, gerando para o espectador uma sensação de desconcerto. Dentro de um formato de melodrama, jogando na mesma trama elementos como vício em drogas, homossexualismo, morte e desagregação familiar, o diretor arquiteta uma narrativa contemplativa e que explora com constância as dúvidas existenciais de seus protagonistas. Há no filme, principalmente pela fotografia limpa e luminosa, uma estranha atmosfera de quase beatitude. Diante de um conjunto como esse, pode-se pensar em relacionar o que se está vendo na tela com uma obra que tem como mote principal de seu roteiro um doloroso processo de amadurecimento e redenção para a personagem Mousse (Isabelle Carré), ex-viciada em heroína grávida de namorado junkie já falecido. A solução encontrada por Ozon, porém, não é marcada pela facilidade, ressaltando quem nem sempre um processo de sofrimento levar um indivíduo a se tornar uma pessoa melhor. Tal conclusão traz em seu bojo o elemento sardônico tão caro para o cinema de Ozon.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Comer Rezar Amar, de Ryan Murphy *


Dizer que “Comer Rezar Amar” (2010) é uma obra problemática por se enquadrar no gênero “filme de mulherzinha” seria inexato. Até porque não dá para caracterizar a produção dentro desse estereótipo. Muito do que é mostrado na trama do filme em termos de conflitos, mesmo que abordado com a profundidade de um manual de auto-ajuda, tem um caráter universal, não se aplicando apenas a mulheres balzaquianas de classe média. Nesse sentido, há até momentos que chegam a ser perturbadores pela forma que relacionamentos humanos são expostos. O que faz “Comer Rezar Amar” afundar mesmo é sua concepção formal equivocada. O diretor Ryan Murphy parece demonstrar muito mais uma sensibilidade de publicitário no filmar do que propriamente alguma visão artística. As seqüências filmadas na Itália, por exemplo, parecem um grande comercial de supermercado tamanho o tom asséptico dos closes em pratos culinários e nas tomadas mostrando pessoas se fartando com vinhos, salgados, doces e afins. Pretende-se visualizar um certo hedonismo em tais cenas, mas as mesmas carecem de vigor e convicção nos seus pretensos extravasamentos sensoriais. No mais, predomina uma direção de fotografia de viés “cartão-postal” que mais parece disposta a animar o espectador a fazer viagens a um país exótico do que propriamente explorar as possibilidades criativas das paisagens da Índia e Bali. Há um instante em “Comer Rezar Amar”, contudo, que parece nos dar um vislumbre do que o filme poderia ter sido: a protagonista Liz (Julia Roberts), assistindo a um casamento hindu, relembra a sua própria festa matrimonial e acaba tendo uma dança imaginária com o ex-marido ao som da bucólica canção “Harvest Moon” de Neil Young, expressiva sequência essa de caráter onírico e de serena melancolia.

quinta-feira, novembro 04, 2010

O Último Exorcismo, de Daniel Stamm ***


Por mais que possamos reclamar de ficarmos com dor de cabeça tentando acompanhar uma narrativa em que a câmera não para de tremer e de que os enquadramentos sejam toscos, a realidade é que parece que esta tendência de filmes que utilizam o recurso da câmera subjetiva, em que o espectador vê o que ocorre pela perspectiva de um personagem que filma os fatos, veio para ficar. Quem mais tem abusado do estilo é o cinema de horror, que tem uma espécie de pioneirismo na técnica através do impactante “Canibal Holocausto” (1979), acabando por firmar comercialmente tal vertente em produções como “A Bruxa de Blair” (1999), “Rec” (2007) e “Atividade Paranormal” (2007). “O Último Exorcismo” (2010) também envereda pela seara do “falso documentário de terror”, sabendo dosar com certa precisão os clichês e limitações do gênero. Assim, mesmo que adotando o conceito de uma direção de fotografia “amadora”, os enquadramentos não tremem tanto quanto o habitual, o que aliado a uma montagem de ritmo mais sereno torna o ritmo narrativo quase clássico. Há também o mérito do diretor Daniel Stamm em manter uma atmosfera constante de dubiedade, em que não se pode determinar com precisão a fronteira do real e do sobrenatural, pelo menos até a arrebatadora conclusão de “O Último Exorcismo”. Aliás, o roteiro da produção combina uma série de clichês básicos dentro da linha do horror, dando um aspecto de perturbadora atemporalidade ao filme, conseguindo, entretanto, estabelecer uma série de pequenas e envolventes surpresas.

quarta-feira, novembro 03, 2010

Cabeça a Prêmio, de Marcos Ricca **1/2


A carreira pregressa como ator de prestígio de Marco Ricca fica evidente na sua estréia cinematográfico como diretor em “Cabeça a Prêmio” (2010). O ponto forte do filme está justamente nas composições dramáticas bem elaboradas de seu elenco. Mesmo atores que geralmente pouco transcendem como Eduardo Moscovis e Cássio Gabus Mendes se mostram capazes de nuances notáveis na caracterização como pistoleiros de aluguel violentos, mas de emoções contidas. Já Fúlvio Stefanini e Otávio Muller combinam em suas respectivas interpretações uma gama impressionante de ações e sentimentos com fluência e naturalidade. Em uma trama policial repleta de reviravoltas, Marcos Ricca consegue criar impacto em discretas e eficientes sequências de ação, assim como consegue manter uma atmosfera de tensão quase constante. O cineasta erra a mão, entretanto, quando apresenta momentos de intimismo que não adequam à concepção de filme policial que se propôs desde o início, fazendo com que “Cabeça a Prêmio” adquira um ritmo narrativo trôpego no seu terço final.