Durante alguns anos, o diretor Todd Solodndz foi uma espécie
de cronista da podridão da classe média norte-americana. Filmes como “Bem vindo
à casa de boneca” (1995), “Felicidade” (1997) e “Histórias proibidas” (2001) destilavam
raiva e ironia ácida em relação às hipocrisias e idiossincrasias morais da
sociedade ocidental. Além da temática, podia-se perceber em tais filmes um homogêneo
padrão estético e narrativo – apesar de revolver os recônditos obscuros do
comportamento humano e de eventuais quedas para o escatológico, Solondz
contrastava com direção de fotografia luminosa, direção de arte asséptica e uma
edição clássica e sem enfeites. O resultado final conseguia simultaneamente ser
envolvente e perturbador. “A vida durante a guerra” (2009), espécie de
continuação de “Felicidade”, retoma os traços característicos do estilo de
Solondz, mas sem o mesmo impacto sensorial de antes. Talvez porque a atmosfera
do filme tenha um viés mais melancólico. É claro que aquela propensão para a sátira
e o choque pontua com freqüência a trama, mas o roteiro também se permite
alguns momentos de amarga serenidade, em que dá para ser perceber até uma
postura de mais compaixão para os seus personagens. Assim, “A vida durante a
guerra” acaba marcando uma espécie de discreto amadurecimento para a amarga visão
de mundo que permeava “Felicidade”.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, janeiro 30, 2015
quinta-feira, janeiro 29, 2015
Ida, de Pawel Pawlikowski **1/2
A direção de fotografia de “Ida” (2013) é tão boa que dá
vontade de fazer um álbum de fotos com alguns dos enquadramentos do filme,
realmente notáveis em termos de composição cênica, iluminação e textura do
preto-e-branco. Esse apuro estético nas tomadas, entretanto, não encontra
equivalência no ritmo narrativo e no roteiro da produção. As concepções artísticas
do diretor Pawel Pawlikowski sofrem de uma assepsia formal e falta de imaginação
que acabam beirando o enfadonho. É provável que a intenção do cineasta fosse de
que a frieza de sua abordagem, aliada a uma atmosfera de distanciamento
emocional, buscasse uma sobriedade necessária para que a obra não caísse em
excessos melodramáticos. Todo esse rigor, todavia, acaba se revelando
equivocado, pois “Ida” é um filme condicionado a uma fórmula narrativa previsível
e desgastada. O encadeamento da trama obedece a mecanismos convencionais, em
que poucas vezes se pode perceber alguma vida criativa. Por mais que se
pretenda como uma visão adulta sobre fatos complexos derivados da 2ª Guerra,
obedece a uma lógica moralista e maniqueísta. O que dizer, por exemplo, da
solução de que a personagem que bebe, fuma e trepa adoidada durante o filme na
realidade faz tudo isso porque tem o trauma de um filho assassinado na infância
e cuja saída final é o suicídio? Ok, essa pretensão de seriedade e superficial
bom gosto até pode render alguns frutos momentâneos (tipo indicação a Oscar ou
a algum outro prêmio), mas, do jeito que ficou, dificilmente vai ser considerado
uma efetiva experiência cinematográfica memorável e estimulante.
quarta-feira, janeiro 28, 2015
Jersey Boys - Em busca da música, de Clint Eastwood ***1/2
O envolvimento de Clint Eastwood com música não é de hoje.
Pianista e grande fã de jazz, ele já havia dirigido algumas obras expressivas relacionados
a tal temática, como a cinebiografia “Bird” (1988) e o documentário “Piano
Blues” (2003). De certa forma, “Jersey Boys – Em busca da música” (2014) pode
parecer uma natural extensão desse apreço. Ainda sim, há alguns elementos que
evidenciam a capacidade do veterano cineasta de ainda surpreender. O primeiro
deles seria de que Eastwood sempre foi um tradicionalista na sua devoção pelo
cancioneiro dos Estados Unidos – suas preferências declaradas são o jazz e o
blues, além de nutrir uma antipatia em relação ao rock e ao pop. Só que em “Jersey
Boys” o foco está justamente na trajetória de Frankie Valli & The Four
Seasons, uma banda dos anos 60 cuja música era uma mescla de soul, rhythm and
blues e rock and roll. Também foge do habitual do diretor o formato escolhido para
contar a sua história: um misto de drama real, musical e filme de gângster,
adaptando uma peça da Broadway sobre o grupo biografado. Apesar dessas
atipicidades, prevalece a habitual classe de Eastwood para filmar, com ele
sabendo conciliar com maestria tanto uma encenação de tons realistas com
momentos de estilização narrativa, metalinguagem e números musicais. O
resultado é uma obra de vigor narrativo esfuziante, capaz de fazer um retrato
apaixonado e esclarecedor sobre os bastidores de criação e gravação de algumas das
mais belas canções da música popular do século XX. O filme peca apenas em
algumas cenas domésticas banais que revolvem clichês manjados sobre o dilema “sucesso
artístico versus infelicidade familiar”. No mais, pode até parecer forçado
fazer uma comparação, mas acaba sendo irresistível: enquanto “Tim Maia” (2013) é
uma produção que diminui a importância artística de seu biografado e o
transforma num junkie mala que de vez cantava ou compunha, “Jersey Boys” é uma
obra que dá uma baita fissura em sair correndo para escutar as pérolas musicais
de Frankie Valli & The Four Seasons.
terça-feira, janeiro 27, 2015
Um milhão de maneiras de pegar na pistola, de Seth MacFarlane *1/2
É provável que tanto os fãs do seriado televisivo “The
Family Guy” quanto aqueles que curtiram muito “Ted” (2012), ambos criações do
diretor e roteirista Seth MacFarlane, terão uma baita decepção ao assistir “Um
milhão de maneiras de pegar na pistola” (2014). A premissa da produção até que é
interessante: tirar um sarro com os clichês e a aura mítica do gênero dos
faroestes. Por vezes, dá para perceber algumas boas sacadas irônicas de
MacFarlane nesse processo de dessacralização. O que prejudica tais boas
intenções, entretanto, é uma formatação equivocada ao extremo – o espectador
tem a constante impressão de que está assistindo a uma longa apresentação de
stand up por parte de MacFarlane, tendo como cenários paisagens e cidades poeirentas,
locais típicos de um “bangue-bangue”. Tal escolha do diretor traz sérios prejuízos
ao ritmo narrativo de seu filme, tirando qualquer traço de fluência e
naturalidade. Em algumas sequências, surge um eventual rasgo de boa comédia, com
uma abordagem oscilando entre o delirante e o escatológico. Mas no geral o que
predomina é uma verborragia irritante de MacFarlane em piadas e comentários
pretensamente ácidos e de resultados cômicos pífios.
segunda-feira, janeiro 26, 2015
As aventuras do avião vermelho, de Frederico Pinto e José Maia **1/2
Entender o atual contexto em que “As aventuras do avião
vermelho” (2012) está sendo lançado é importante não só para o analisar, mas
também para poder embarcar na viagem estética dos diretores Frederico Pinto e
José Maia. Em um momento em que a grande maioria das produções de animação
envereda para o digital e o 3D, o filme em questão parece se aninhar com
convicção num obscuro recôndito anacrônico. E faz isso não por preguiça
criativa – os realizadores expressam em suas escolhas formais e temáticas um
carinho especial por certos quesitos artísticos fora de moda. Essa aproximação
com concepções “fora do tempo e do espaço” aflora um certo caráter contestatório
por parte dos diretores. E esse caminho não se dá sem percalços. A base do
roteiro é um livro infantil de Érico Veríssimo, mas a adaptação não se preocupa
em ser totalmente fiel ao original. O roteiro se permite algumas atualizações e
liberdades, com direito a observações críticas sobre aspectos atuais da educação
infantil, sem que com isso deixar de preservar a essência da obra literária.
Nesse viés, o traço simples e expressivo que marca a concepção estética do
filme, distante do realismo típico do 3D, bem como o leve tom ingênuo da trama
revelam sintonia com o livro de Veríssimo. Os cineastas ainda se permitem
algumas ousadias ao dar uma ambiência delirante para algumas passagens. O que
faz com que “As aventuras do avião” não pegue na veia com seu resultado final é
a dificuldade de estabelecer uma narrativa fluida, natural – o ritmo por vezes é
trôpego, em outros momentos um tanto apressado, fazendo com que as coisas caiam
no enfadonho em determinados momentos. Ou seja, há várias boas ideias e sacadas
visuais que se revelam instigantes isoladas, mas que não resultam num todo
satisfatório. Ainda sim, as inquietações artísticas dessa animação a tornam um
trabalho que merece atenção.
sexta-feira, janeiro 23, 2015
Os pinguins de Madagascar, de Simon J. Smith e Eric Darnell **
Dentro das franquias de animação que aparecem atualmente nos
cinemas, a de “Madagascar” é uma das menos expressivas em termos artísticos,
pouco fugindo da fórmula “bichos fofinhos, referências engraçadinhas e números
musicais coloridinhos”. Uma das poucas coisas efetivamente engraçadas e
marcantes que havia nos filmes em questão era o grupo de pinguins alucinados,
beirando o psicótico, que apareciam em alguns momentos. Dava até vontade de ver
um filme só com eles. Os produtores da série parecem que compartilharam da
mesma impressão e tiveram a sacada mercadológica de colocar tal ideia em
prática. O resultado final, entretanto, é decepcionante. “Os pinguins de
Madagascar” (2014), ainda que usufrua do carisma de seus protagonistas, padece
da mesma anemia criativa da série da qual se originou. O potencial de
esquisitice e ironia dos pinguins é explorado de forma pouco criativa, com os
realizadores se contentando com as soluções rotineiras de sempre. Não há, por
exemplo, o grafismo exuberante e a tensão dramática de “Operação Big Hero”
(2014), mas apenas um desfile burocrático de fofices e piadinha (algumas poucas
engraçadas, e boa parte delas nem tanto...).
quinta-feira, janeiro 22, 2015
Livre, de Jean-Marc Valée **1/2
Certas escolhas formais e temáticas em um filme podem
sugerir ousadia e maturidade por parte daqueles que se envolveram na realização,
no sentido de que eles se afastam de critérios comerciais ou de mero
entretenimento para oferecer às platéias um espetáculo mais profundo e
questionador. Por vezes, entretanto, tal direcionamento artístico mais revela
uma busca por credibilidade do que um desejo em trilhar caminhos menos óbvios. E
é dentro dessa segunda alternativa que “Livre” (2014) parece melhor se
encaixar. A caracterização pretensamente desglamourizada de Reese Witherspoon
no papel da protagonista Cheryl Strayed, a encenação naturalista, a evocação de
um estilo documental na estética e a relação de temas adultos na trama (famílias
disfuncionais, drogas, promiscuidade sexual, redenção e afins), em um primeiro
momento, dão a impressão de uma abordagem desafiadora por parte do diretor
Jean-Marc Valée, mas a forma com que a narrativa se desenvolve evidencia um
convencionalismo banal, que nivela o filme naquele nicho de dramas de superação
pessoal que o pessoal que escolhe os indicados para o Oscar tanto gosta. Não
adianta mostrar Witherspoon sem maquiagem e com as unhas caindo se a cada cinco
minutos tem alguém proferindo uma lição de vida no puro estilo autoajuda ou ter
à disposição belos cenários naturais se o registro visual adotado dá a impressão
de um cartão postal ambulante. Falta aquela centelha criativa e espontânea que
tornaria “Livre” uma experiência sensorial mais efetiva.
quarta-feira, janeiro 21, 2015
Um amor em Paris, de Marc Fitoussi **1/2
O cinema francês cada vez mais se formata a padrões de
narrativa que se adaptam a um denominador comum universal, a um ponto que seus
aspectos de identidade cultural e artística fiquem difusos. Nesse sentido, “Um
amor em Paris” (2014) é uma obra emblemática de tal tendência– quantas obras
recentes da França o espectador já viu versando sobre mulheres de meia-idade
(ou mesmo na velhice) em crise existencial no casamento? Há algumas décadas,
tal temática receberia uma abordagem mais contundente por parte dos cineastas
franceses. Hoje em dia, entretanto, como no filme em questão do diretor Marc
Fitoussi, o registro é suavizado, agridoce, beirando até em termos estéticos e
textuais algumas convenções de genéricas comédias românticas norte-americanas. É
de se convir que Fitoussi não se converte totalmente para tais concepções artísticas.
Afinal, por vezes dá para se observar um cuidado formal diferenciado na
composição de algumas tomadas, além da dupla de protagonistas Isabelle Huppert
e Jean-Pierre Darroussin terem estofo dramático suficiente para darem um
impacto consistente para algumas cenas.
terça-feira, janeiro 20, 2015
Uma longa viagem, de Jonathan Teplitzky **
Ser acadêmico não é um demérito por si só para um filme. Os
filmes do diretor britânico David Lean, por exemplo, possuíam tal atributo e
nem por isso podem ser considerados produções descartáveis e sem personalidade – pelo contrário,
eram trabalhos vigorosos e memoráveis, sendo que alguns até se tornaram
verdadeiros clássicos cinematográficos. O que incomoda em um trabalho como “Uma
longa viagem” (2013) é um academicismo rançoso: tudo está no lugar direitinho,
os aspectos formais se configuram competentes em sua execução, mas não há
brilho, convicção, na forma com que o diretor Jonathan Teplitzky conduz a
narrativa. Mesmo o elenco, contando com nomes expressivos, não consegue se
salvar diante da pasmaceira das concepções estéticas de Teplitzly,
contentando-se com registros entre o apagado e o canastrão. Por vezes, até se
pode sentir o potencial da obra, principalmente nas sequências de flashback, em
que alguns momentos de brutalidade e tensão trazem alguma densidade dramática e
impacto visual para o espectador. Acaba sendo pouco, entretanto, para tirar a
produção do lugar comum e do previsível.
segunda-feira, janeiro 19, 2015
As duas faces de janeiro, de Hossein Amini ***
Os livros da escritora Patricia Highsmith costumam ser
adaptados para o cinema com relativa freqüência. Dentre tais versões cinematográficas,
destaque absoluto para as obras-primas “O sol por testemunha” (1960) e “O amigo
americano” (1977). “As duas faces de janeiro” (2014) está bem longe do padrão
de qualidade artística dos clássicos mencionados anteriormente, mas mesmo assim
é uma obra que se mostra em sintonia existencial com a essência de Highsmith.
Isso ocorre porque o diretor Hossein Amini consegue preservar com fidelidade considerável
aquela característica atmosfera de ambiguidade moral que permeia o universo da
escritora. Além disso, algumas boas sacadas da trama são bem exploradas no
desenvolvimento do roteiro– o fato da história se desenrolar na Grécia não é
gratuito, tendo em vista a narrativa ter uma dinâmica que alude a uma espécie
de conto moral típico das tragédias gregas. A relação dúbia de competição e
admiração entre os escroques Chester (Viggo Mortensen) e Rydal (Oscar Isaac)
guarda uma simbologia óbvia, mas de resultados de tensão dramática até bem
eficientes. No mais, o registro visual dos belos cenários de ruínas e cidades
históricas da Grécia não guardam apenas um caráter de “cartão postal”,
adquirindo uma função narrativa importante ao caracterizar uma ambiência de
mistério e decadência que torna o clima de suspense mais sufocante para os
personagens.
sexta-feira, janeiro 16, 2015
Cine Holliúdy, de Halder Gomes *
De certa forma, é fácil simpatizar com “Cine Holliúdy” (2012).
Há um misto de ingenuidade e honestidade tanto no roteiro do filme quanto na
forma com que o diretor Halder Gomes conduz a narrativa. Além disso, a produção
faz questão de ressaltar seu regionalismo particular, o que se evidencia nos diálogos
repletos de expressões e neologismos que configuram quase um dialeto próprio (o
que tornam necessárias legendas permanentes) e em algumas situações da trama.
Esses elementos idiossincráticos, aliados a algumas insólitas referências à
cultura pop e ao carisma natural de parte do elenco, por vezes até garantem
alguns momentos de graça espontânea para a obra, mas também são incapazes de
por si só garantirem o equilíbrio da narrativa. A encenação histriônica
elaborada pelo diretor e o excessivo tom mambembe e amadorístico da maioria das
passagens de “Cine Holliúdy” o tornam um trabalho enfadonho, reduzindo o
destino da obra a ser encarada como uma mera curiosidade exótica do cinema
nacional do que propriamente um trabalho interessante.
quinta-feira, janeiro 15, 2015
Operação Big Hero, Don Hall ***1/2
O fato de “Operação Big Hero” (2014) ser a primeira adaptação
de uma série da Marvel realizada pelos Estúdios Disney não representa apenas
uma nota informativa dispensável de release. Tal animação traz boa parte dos
ingredientes característicos do gênero aventura com super-heróis, e é de se
ressaltar que tais elementos se combinam com extraordinárias harmonia e convicção.
O detalhismo e a beleza do traço, marcado por um extraordinário misto de
realismo e estilização, impressionam pelo seu impacto imagético, sendo que
combinados com o dinâmico senso de narrativa do diretor Don Hall resultam numa
das melhores transições recentes dos comics para a tela grande. É de se
ressaltar ainda que colabora para isso um roteiro cujos motes centrais são bem
trabalhados e que cujos principais personagens são fortemente carismáticos, com
destaque especial para o robô herói Baymax, figura de um encanto notável. Talvez
“Operação Big Hero” não se enquadre naquele nível “obra-prima da animação de
aventura” de “Os incríveis” (2004) por uma questão mercadológica – o fato da
produção ser destinada também ao público infantil faz com que a trama e
narrativa não sejam tão enxutas (há situações e personagens histriônicos em
excesso), impedindo também que por vezes o filme não atinja o devido grau de
dramaticidade. Ainda sim, “Operação Big Hero” é uma obra bastante acima da média
do que tem sido feito na linha das animações infanto-juvenis e repleta de sequências
antológicas.
quarta-feira, janeiro 14, 2015
Para sempre teu Caio F., de Candé Salles *
O diretor Candé Salles tinha tudo para fazer de “Para sempre
teu Caio F.” (2014) uma cinebiografia relevante: uma temática interessante,
farto material de arquivo (tanto em fotografias quanto em audiovisuais), uma
gama considerável de artistas e personalidades interessantes para falar sobre o
biografado, recursos consideráveis de produção oriundos do Canal Brasil. Sua mão
pesada na direção e escolhas equivocadas em termos narrativos, entretanto,
fazem de seu documentário um dos piores filmes a aparecerem nos últimos anos em
nossas telas. Para começar, Salles parece sempre fazer questão de deixar claro
que é um grande admirador da obra de Caio Fernando Abreu. Tal apreço faz com
que ele cometa um equívoco gigantesco ao transformar o documentário numa
insossa hagiografia, em que inúmeros trechos de entrevistas se limitam a
exaltar a genialidade de Caio como escritor e sua gentileza como ser humano. Não
há tensão ou profundidade em tal abordagem. Para piorar, a estrutura narrativa
da produção é sem imaginação, pouco ousada mesmo, limitando-se a um tom que
oscila entre o didatismo burocrático e o sentimentalismo rasteiro, dando a tudo
uma cara de um grande vídeo institucional. Além disso, Salles recorre a alguns
truques que raramente resultam em algo memorável, desde fotogênicos e
deslocados atores e atrizes globais a proferirem de forma afetada trechos de
obras de Caio até recriações dramáticas patéticas de momentos importantes na
vida do escritor. Por que não pegar artistas viscerais como Grace Gianoukas,
efetivamente mais identificada com a obra e vida do escritor, para fazer as
referidas leituras? E por que perder tempo com recriações dramáticas pueris
quando se tem em mãos um material audiovisual tão rico com o próprio biografado
em ação? Talvez as respostas para tais indagações estejam no desejo de Salles
de ter realizado um filme para já convertidos não tão exigentes ao universo de
Caio Fernando Abreu. Afinal, do jeito que ficou “Para sempre teu Caio F.”,
dificilmente não iniciados se sentirão atraídos em procurar algum livro do
biografado em questão.
terça-feira, janeiro 13, 2015
Vizinhos, de Nicholas Stoller ***
O diretor Nicholas Stoller é um nome que merece que se
preste atenção no atual panorama das comédias. Em sua cinematografia, pode-se
perceber um discreto toque autoral, ainda que dentro de uma formatação
tradicional do estilo cômico norte-americano contemporâneo. Há os habituais
truques do gênero: pastelão, exageros, escatologias. Existe também, entretanto,
um sutil subtexto no questionamento de como as coisas funcionam em termos
intimistas e culturais na sociedade dos Estados Unidos (e, por tabela, de boa
parte da sociedade ocidental). Todos esses preceitos se cristalizam com clareza
em “Vizinhos” (2014). A trama é básica no seu conflito – um casal de classe média
na faixa dos 30 anos e com uma filha recém-nascida entra em fortes atritos com
uma fraternidade de universitários que se mudou para a casa ao lado, o que
deflagra situações que variam entre o sórdido e o francamente nojento, a maioria
delas bem divertida. Ao mesmo tempo, algumas nuances do roteiro revelam uma visão
ácida e sarcástica sobre questões prementes da sociedade moderna como a
hipocrisia social, a pretensa maturidade dos “jovens adultos” e a pressão sobre
a juventude da necessidade de ser bem sucedido economicamente. É claro que as
resoluções estéticas e temáticas de Stoller não são tão radicais, afinal se
trata de uma produção “made in Hollywood”. Ainda assim, “Vizinhos” se mostra um
trabalho muito mais afiado em termos de crítica social do que muito filme dito “sério”
ou “profundo”.
segunda-feira, janeiro 12, 2015
Acima das nuvens, de Olivier Assayas ***1/2
Quando Stanley Kubrick chamou Tom Cruise para protagonizar “De
olhos bem fechados” (1999), o estranhamento foi grande para boa parte de público
e crítica. Afinal, o que um dos maiores mestres da história do cinema queria
com um mero galã no papel principal de sua produção? A grande sacada do genial
cineasta, entretanto, estava na utilização da persona de grande astro de Cruise
como material dramático na composição da narrativa e atmosfera de seu filme. De
certa forma, o diretor francês Olivier Assayas usa um expediente semelhante em “Acima
das nuvens” (2014) – tanto a personagem da consagrada Juliette Binoche quanto a
da jovem estrela em ascensão Chloë Grace Moretz parecem reflexos das atrizes
que as interpretam, havendo uma contundente relação de contraponto entre elas.
Como mediadora, surge a figura de Valentine (Kristen Stewart), que serve como
uma espécie de consciência do filme. A atuação de Stewart é surpreendente dada
a complexidade e crueza que o papel exige – num registro desglamorizado e
contido, numa condição de observadora, ela apresenta uma visão lúcida dos
dilemas e conflitos que permeiam a trama de “Acima das nuvens”. Assayas também
adota uma abordagem estética insólita, mas que está em perfeita sintonia com a
essência de sua temática, um ácido questionamento sobre a natureza daquilo que é
considerado “arte” ou não. Nesse sentido, a estrutura narrativa evoca uma espécie
de pastiche daqueles dramas existenciais europeus – as seqüências naquela casa
de campo encravada no interior montanhoso da Suíça parecem um decalque de
alguns momentos marcantes de produções dirigidas por Ingmar Bergman. Mais que
mera reciclagem, tal formalismo tem um caráter irônico na sua intenção
iconoclasta de questionamento de ortodoxias e preconceitos artísticos.
sexta-feira, janeiro 09, 2015
O passado, de Asghar Farhadi ***
Pode-se perceber dentro das concepções estéticas e temáticas
do diretor iraniano Asghar Farhadi um padrão artístico constante. Assim como em
“A separação” (2010), “O passado” se desenvolve por uma estrutura narrativa bem
definida: vincula-se ao gênero melodrama, mas com uma abordagem formal sóbria, sem
grandes arroubos barrocos, transparecendo um distanciamento emocional na ambiência
intimista de sua trama. Nesse filme mais recente, entretanto, essa equação
acaba tendo um desenvolvimento mais irregular, culpa de um roteiro que por
vezes se perde em detalhes novelescos de suas nuances. Devido a isso,, algumas
situações e personagens apresentam uma carga dramática mais derramada. Não há
aquela síntese narrativa mais precisa e seca, beirando a crueldade, de “A
separação”. Ainda sim, “O passado” é uma produção que se reveste de interesse,
principalmente pela direção elegante de Farhadi e por algumas atuações seguras
e contidas de parte do elenco.
quinta-feira, janeiro 08, 2015
A família Bélier, de Eric Lartigau **
Parte da produção cinematográfica da França vem passando por
um processo semelhante com o que vem acontecendo com o cinema argentino: em
nome de um palatável padrão de “qualidade” artística, tais obras se
descaracterizam de uma identidade própria. Seu pretenso universalismo apenas
torna tais produções derivativas – se fossem faladas em inglês, passariam tranqüilos
como um rotineiro filme norte-americano. É o caso justamente de “A família Bélier”
(2013). É claro que os cenários campestres e alguns elementos culturais trazem
algo de diferente para a obra do diretor Eric Lartigau. Os conflitos de sua
temática, a estrutura narrativa e o seu formalismo, entretanto, evocam um
cinema genérico. Pode ser até ser agradável e divertido em alguns momentos, mas
o misto de drama de superação e comédia pastelão dá aquela impressão constante
de algo fácil de ver e de esquecer. O que é uma pena, pois mesmo com uma trama permeada
de clichês havia potencial para um resultado final mais contundente e memorável,
o que se evidencia na qualidade dramática de alguns nomes do elenco e na beleza
dos números musicais.
quarta-feira, janeiro 07, 2015
Todos os dias, de Michael Winterbottom ****
Em A festa nunca
termina (2002), obra que recriava o auge criativo e comercial da gravadora
inglesa Factory no período do final da década de 70 até a primeira metade dos
anos 90, o diretor Michael Winterbottom acabou fazendo também por tabela um
retrato de uma geração mergulhada tanto em um asfixiante vazio existencial
quanto em puro hedonismo. Já Nove
Canções (2004) se apresentava como uma espécie de espelho comportamental do
começo do novo milênio – ao contar a trajetória de um relacionamento amoroso,
em meio a seqüências de sexo explícito e de apresentações roqueiras em clubes
noturnos, a obra refletia a esterilidade emocional dos “jovens adultos” da
sociedade ocidental. Dentro dessa progressão temática, Winterbottom surpreende
com uma obra de contraponto, Todos os
dias (2012), cuja trama faz uma expressiva celebração da vida familiar.
Cabe ressaltar, entretanto, que esse elogio não se efetiva por caminhos óbvios
ou meramente moralistas. O cineasta parece tomar como principal referência
estética A árvore dos tamancos (1978),
obra-prima do realismo poético de Ermano Olmi que focava o cotidiano de
camponeses italianos ao som da música celestial de Bach. No filme de
Winterbottom, a premissa principal da trama está no dia-a-dia de uma família no
interior da Inglaterra cujo pai se encontra preso. Para enfatizar o naturalismo
de sua abordagem, o diretor filmou ao longo de cinco anos com os mesmos atores
nos principais papeis, sendo que as quatro crianças que fazem parte da família
são realmente irmãos na vida real. Tais opções de encenação de Winterbottom
acabam se revelando fundamentais para a composição dramática do filme.
Num primeiro momento, a secura do registro visual de Todos os dias, beirando o documental,
pode até sugerir um certo distanciamento emocional. Com o desenrolar do
roteiro, entretanto, a produção vai ganhando uma amplitude artística muito
maior. Winterbottom utiliza alguns truques narrativos e estéticos simples, mas
bastante eficientes. As tomadas nas prisões, tanto nas visitas dos familiares
quanto na exposição da rotina sufocante do patriarca Ian (John Simm) no
confinamento, apresentam uma perturbadora atmosfera asséptica e fria. Nas
demais cenas, a abordagem é completamente contrastante, com destaque para os
grandes planos a retratar a região rural onde a família de Ian reside. A
associação das paisagens de campos verdejantes e praias de uma beleza
melancólica, em boa parte das oportunidades permeadas de animais pastando e
crianças brincando, à impressionista música de Michael Nyman cria um efeito
sensorial que emana uma beatitude contundente. E é aí que reside um dos grandes
méritos de Todos os dias, em que a
combinação intrínseca de religiosidade e humanismo de sua história e concepção
estética não descamba para o discurso conservador obtuso e nem para uma
formatação de melodrama “água com açucar” e despersonalizado, mas sim para uma
narrativa de ritmo fluido e que de forma sutil imprime um olhar generoso e
livre de julgamentos morais. A singeleza tocante da seqüência final, com a
família enfim reunida com o pai e caminhando à beira-mar, é a síntese
extraordinária do ideário artístico e existencial que Winterbottom oferece para
a sua obra.
terça-feira, janeiro 06, 2015
Êxodo: Deuses e reis, de Ridley Scott **1/2
No estranho misto de ficção científica e conto gótico de
horror de “Prometheus” (2012) e no policial de ambiências rarefeitas “O
conselheiro do crime” (2013), o diretor Ridley Scott buscou caminhos
inesperados para o seu cinema, desviando com habilidade de boa parte dos clichês
narrativos que por vezes vinham impregnando seus filmes anteriores. Tal ousadia
rendeu alguns narizes torcidos por parte de público e crítica. Assim, “Êxodo:
Deuses e reis” (2014) é a volta de Scott a concepções formais mais digeríveis,
assim como marca o seu retorno a um gênero no qual já havia enveredado, o dos filmes
de época épicos (vide “Gladiador” e “Cruzadas”). Talvez a novidade seja que o
cineasta agora busque inspiração em episódios bíblicos. Nesse sentido, dá para
dizer que há um diferencial nessa nova versão cinematográfica da vida de Moisés
em relação ao clássico “Os dez mandamentos” (1956) de Cecil B. DeMille: Scott
realmente procurou adaptar a história para um tipo de abordagem mais contemporânea.
Assim, o Moisés (Christian Bale) dessa nova adaptação é quase um super-herói
guerreiro, uma espécie de misto do Maximus de “Gladiador” (2000) e Batman. Há
uma grande ênfase no detalhismo gráfico das cenas de batalha, caracterizações
dramáticas caricaturizadas, temas musicais ostensivos beirando o barulhento. Ou
seja, a sutileza passa longe daqui... As escolhas estéticas de Scott por vezes
são eficientes e divertem como entretenimento, mas no geral dão origem a uma
obra genérica e pouco memorável. Esse tratamento artístico acaba deixando de
lado alguns aspectos interessantes e até intrigantes de “Êxodo”. O maior deles é
a forma como Deus é retratado na trama, na figura de uma criança com rompantes
vingativos e cruéis, cujos desígnios beiram o capricho, o que provoca dúvidas
existenciais que atormentam Moisés. Scott poderia ter explorado mais esse lado
contraditório da natureza das intenções divinas e os consequentes questionamentos
de seu protagonista (guardada às devidas proporções, tal dilema faz lembrar o
cerne da obra-prima “A última tentação de Cristo” de Martin Scorsese). O
diretor preferiu, entretanto, reduzir tal dubiedade e se concentrar no simples
espetáculo moralista. Aliás, não é curioso que em 2014, ano marcado pelo maior
endurecimento da política de ocupação e repressão dos judeus em relação aos
palestinos, tenham sido lançados “Noé” e “Êxodo”, obras que enfatizam o papel
dos judeus como escolhidos de Deus?
segunda-feira, janeiro 05, 2015
Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro ***
Em “Ventos de agosto” (2014), seu primeiro longa-metragem de
ficção, o diretor Gabriel Mascaro conserva algumas influências do gênero onde
se projetou inicialmente, o documentário. Isso porque sua abordagem traz uma
certa secura na encenação, um naturalismo na forma com que filma situações e
personagens. É curioso, entretanto, que em tal concepção cinematográfica há
espaço para uma espécie de poético realismo mágico. Sem recorrer a trucagens e
se valendo de um registro visual repleto de nuances imagéticas nos seus sutis
movimentos de câmeras e enquadramentos de caráter pictórico e de uma narrativa
rarefeita, a obra de Mascaro parece se desenvolver num tom entre o aleatório e
o casual. Seus personagens se relacionam por tênues ligações ou simplesmente não
se cruzam. Aos poucos, entretanto, a narrativa vai adquirindo uma estranha coerência
estética e temática, em que os cenários e indivíduos que aparecem na tela dão a
impressão de estarem situados em um universo paralelo. A jovem catadora de
cocos que adora punk rock, seu amante obcecado por um cadáver sem identificação,
o “caçador” de ventos, uma senhora de aparência centenária que ter uma aura de
fóssil vivo, todos eles compõem uma fauna bizarra, que tanto dá a ideia de
proximidade quanto parece se situar num mundo fora do tempo e do espaço.
sexta-feira, janeiro 02, 2015
Libertem Angela Davis, de Shola Lynch **
É inegável que para todos aqueles que se interessam por história
e cultura assistir a “Libertem Angela Davis” (2011) acabe se tornando um
programa obrigatório. A importância da temática retratada, tanto pela
trajetória pessoal da figura biografada quanto pelo conturbado e complexo período
histórico retratado (o começo dos anos 70 nos Estados Unidos), faz com que a
produção tenha um grau de empatia muito forte. Há uma profusão de imagens de
arquivo bastante relevantes, além de depoimentos reveladores de figuras emblemáticas
dos fatos retratados em questão. Como narrativa cinematográfica, entretanto, o
documentário dirigido por Shola Lynch deixa bastante a desejar. A cineasta se
limita a conceber uma burocrática combinação de trechos de imagens de época com
entrevistas no tempo presente – faltam criatividade e dinâmica que ofereçam
alguma tensão dramática efetiva para o espectador. O esmiuçamento de detalhes
da fuga de Angela Davis e de seu julgamento por atos terroristas pode ser
valioso segundo critérios de estudiosos de História, mas também torna a
narrativa enfadonha e pouco atrativa para o espectador em geral. Lynch não
parece afetada pelo espírito ousado da contracultura, típica da época que
procurou retratar. Do jeito previsível e cansativo que ficou, “Libertem Angela Davis”
mais parece um vídeo institucional a ser exibido em escolas e emissoras
televisivas públicas.
Melhores filmes de 2014
1)
O
lobo de Wall Street, de Martin Scorsese
2) Garota
exemplar, de David Fincher
3) Todos
os dias, de Michael Winterbottom
4) Tudo
por justiça, de Scott Cooper
5) Era
uma vez em Nova York, de James Gray
6) Bem
vindo à Nova York, de Abel Ferrara
7) O
lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra
8) Quando
eu era vivo, de Marcos Dutra
9) Guardiões
da Galáxia, de James Gunn
10) Ninfomaníaca,
de Lars Von Trier
11) Cães
errantes, de Tsai Ming-liang
12) Jogo das
decapitações, de Sergio Bianchi
13) Nebraska,
de Alexander Payne
14) Praia do
futuro, de Karim Aïnouz
15) Educação
sentimental, de Julio Bressane
16) Capitão
América: O soldado invernal, de Anthony e Joe Russo
17) Ela, de
Spike Jonze
18) X-Men: Dias
de um futuro esquecido, de Bryan Singer
19) O Grande
Hotel Budapeste, de Wes Anderson
20) Mommy, de
Xavier Dolan
21) A grande
beleza, de Paolo Sorrentino
22) No limite
do amanhã, de Doug Liman
23) Castanha,
de Davi Pretto
24) Na neblina,
de Sergei Loznitsa
25) 12 anos de
escravidão, de Steve McQueen
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