quarta-feira, maio 30, 2018

A mata negra, de Rodrigo Aragão ***1/2


Os primeiros filmes do diretor capixaba Rodrigo Aragão são marcados por uma certa precariedade de recursos de produção, típicos de produções independentes. Isso não quer dizer, entretanto, que tais trabalhos caíram no amadorismo trash. Muito pelo contrário. Aragão demonstrou em filmes antológicos como “Mangue negro” (2008) e “A noite do chupa-cabra” (2011) um considerável domínio narrativo e fortes traços autorais em determinados elementos estéticos e temáticos. O formalismo oscila de forma desconcertante entre o sórdido e sujo até um requinte plástico que beira o barroquismo. Tentando resumir, é algo como se aquele Peter Jackson em seus filmes iniciais de horror, naquela síntese enlouquecida de humor negro e grafismo escatológico, tivesse surgido dentro de um contexto regionalista do Espírito Santo. Nessa estranha fórmula artística, sobressaem-se detalhes como a trilha sonora que combina temas incidentais tradicionais com marcantes melodias e ritmos folclóricos, as atuações intensas de boa parte do elenco, os efeitos especiais artesanais de sensorialismo imagético desconcertante e as insanas e escrotas atmosferas de tensão sobrenatural. Todas essas qualidades se mostram ainda indeléveis em “A mata negra” (2018), primeiro longa-metragem de Aragão que contou com um orçamento bem mais generoso originário de uma lei de incentivo. É claro que os efeitos digitais dão uma cara mais palatável para o filme, mas o que fica na memória mesmo do espectador é a forma com que elementos convencionais do gênero horror são apresentados sem que caiam na caricatura e na mesmice. Em uma trama envolvendo magia negra, satanismo e sordidez humana, “A mata negra” se configura como um trabalho de momentos efetivamente assustadores e que não cai na assepsia previsível daquelas franquias de terror que grassam nos multiplexes da vida. Seus momentos cômicos não são apenas um alívio cênico diante de jorro de sangue e negativismo que brotam constantemente da tela – na verdade, acentuam ainda mais o caráter perturbador do filme. E mesmo o gancho para uma possível continuação que aparece na conclusão da história se mostra mais como um desdobramento natural do que simples oportunismo mercadológico.

terça-feira, maio 29, 2018

O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker ****


Considero que o melhor equivalente artístico-existencial para o documentário “O fundo do ar é vermelho” (1977) é a o ensaio histórico-literário “Rumo à Estação Finlândia”. Ambas as obras procuram traçar um amplo panorama sobre a evolução do pensamento socialista no mundo, bem como as suas concepções teóricas acabaram se cristalizando em ações. Se o livro de Edmund Wilson é marcado pelo rigor intelectual e filosófico, o filme de Chris Marker estrutura sua narrativa como se fosse um atordoante fluxo sensorial e poético, em que a ordem linear dos fatos e ideias não se constrói de forma exatamente clássica e acadêmica. O espectador entra em um vórtice de trechos audiovisuais de origens diversas, de reportagens para a televisão a registros amadores. A narrativa pode parecer por vezes caótica e aleatória, mas essa impressão é enganadora – de maneira sutil, há sempre o senso de unidade e coerência na direção de Marker. Essa sua formatação desconcertante na realidade procura obedecer ao forte caráter emocional e ideológico que a torrente de imagens e depoimentos extravasa com fúria e paixão, sem que se perca, entretanto, uma lúcida visão sobre os rumos conturbados dos indivíduos e seus ideais. Dento de tal concepção artística e temática, por vezes as sensações se avolumam como uma montanha russa, variando da sincera admiração e carinho por pessoas e suas convicções e atitudes até a melancolia pelas suas várias derrotas e repressões sofridas – nesse último caso, tal percepção se aprofunda de maneira dolorosa no terço final da narrativa. Apesar disso, “O fundo do ar é vermelho” está muito longe do óbvio pessimismo ou da “desilusão” hipócrita. O vigor da narrativa e dos ideais humanistas expostos é aquilo que fica efetivamente gravado em nosso imaginário. A força das imagens finais e o belo discurso que as acompanha reforçam esse caráter desafiador e poético do documentário de Marker.

quarta-feira, maio 23, 2018

Guarnieri, de Francisco Guarnieri ***1/2


Nos anos 60, os atores Paulo José e Gianfrancesco Guarnieri contracenaram juntos em peças importantes da história do teatro brasileiro. Por uma dessas coincidências da vida, “Todos os paulos do mundo” (2018) e “Guarnieri” (2017), documentários que focam a vida desses dois artistas, acabaram tendo estreia nacional nos cinemas praticamente na mesma época. Mas enquanto o primeiro filme tem um enfoque primordial na figura de seu protagonista como homem de cinema, na obra dirigida por Francisco Guarnieri, neto do cinebiografado em questão, o conceito é outro. Logo no início da narrativa, é estabelecida a relação entre o Gianfrancesco Guarnieri ator/diretor/dramaturgo/letrista/ativista político com a contraparte desse mesmo homem como pai de família. No desenvolvimento do filme, sutilmente, essa ideia sempre estará presente. Nos primeiros momentos, há uma percepção de um certo ressentimento emocional por parte do diretor pelo fato de Gianfrancesco nunca ter correspondido a um certo padrão idealizado do que deveria ser um pai e avô ativo e presente. Aos poucos entretanto, a partir de uma concepção artística que beira o dialético na forma com que vários trechos de imagens de arquivo de peças, filmes, novelas e entrevistas que trazem Gianfrancesco em cena se entrecruzam com os depoimentos dos filhos Paulo e Flávio, essa visão de mágoa familiar vai se esvanecendo, principalmente na constatação natural e fluida que se passa a ter da tremenda riqueza cultural e pessoal que irradiava da figura de tal patriarca. A vida e obra de Gianfrancesco Guarnieri refletiam não apenas alguns dos mais relevantes episódios artísticos do Brasil da década de 50 até hoje, como também alguns dos mais emblemáticos dilemas sócio-políticos da nação que reverberam ainda na atualidade. Diante da efervescência de um cenário como esse e da própria postura humanista de Gianfrancesco, fica claro para o neto cineasta, filhos e o espectador de que tentar encaixar tal indivíduo a partir de critérios moralistas e maniqueístas seria simplista e vazio. O próprio personagem principal do documentário afirma em um determinado momento que não consegue se encaixar nesse tipo de definições. O ponto mais fascinante de “Guarnieri” está justamente na forma com que uma inquietação intimista acaba se convertendo de maneira sensível e precisa na exposição contundente e apaixonada do enorme legado artístico e existencial de um homem singular.

segunda-feira, maio 21, 2018

Todos os paulos do mundo, de Gustavo Ribeiro e Rodrigo Oliveira ***


Para o documentário “Todos os paulos do mundo” (2018) há um ponto primordial a ser expor em sua narrativa: a de mostrar a trajetória do ator Paulo José como homem de cinema. Sua fase inicial no teatro, de relevante papel histórico e existencial na sua formação dramática, é evidenciada como um preparativo para aquilo que desenvolveria em sua plenitude na grande tela. Seus trabalhos na televisão dão a impressão de uma circunstância profissional necessária em períodos que o cinema nacional se encontrava em dificuldades. Mesmo a vida pessoal não chega a ser detalhada de maneira minuciosa, limitando-se com sensibilidade a oferecer pequenos e expressivos recortes sobre romances, amizades e outros tipos de afetos. Em termos formais e narrativos, os diretores Gustavo Ribeiro e Rodrigo Oliveira usam recursos simples e eficazes, juntando uma ágil edição a expor trechos antológicos de alguns dos principais filmes em que Paulo José atuou, sem se apegar a um sentido linear cronológico, com textos de impressões e reminiscências pessoais escritas pelo próprio ator e narrados por ele e convidados. Esse conjunto estético-temático acaba construindo um contundente panorama não somente da vida de seu protagonista como do próprio cinema nacional e de seus principais realizadores nos últimos 50 anos, indo de obras-primas de Domingos de Oliveira e Joaquim Pedro de Andrade, passando por produções expressivas de Luís Sérgio Person e Murilo Salles, abarcando mesmo a retomada dos trabalhos nativos na década de 90 e chegando a filmes nacionais desse século. Por vezes essa fórmula narrativa chegar a soar cansativa e acomodada, caindo até para um certo sentimentalismo excessivo, mas ainda assim “Todos os paulos do mundo” consegue oferecer um retrato fiel e entusiasmado de um artista inquieto e também de algumas das principais realizações culturais brasileiras nas últimas décadas.

sexta-feira, maio 18, 2018

Viagem fantástica, de Richard Fleischer ***1/2


Há uma diferença fundamental entre o anacrônico e o clássico? Um filme como “Viagem fantástica” (1966) acaba suscitando esse tipo de dúvida. Dentro do gênero aventura fantástica, a produção dirigida por Richard Fleischer se formata por elementos praticamente em desuso no cenário contemporâneo. O ritmo da narrativa parece quase contemplativo diante da dinâmica frenética, por exemplo, dos filmes de super-heróis da Marvel ou da DC, as trucagens baseadas em coloridos cenários e seres de isopor e afins estão distantes do hiper-realismo dos efeitos digitais proeminentes nos dias de hoje e a encenação tem um caráter entre o canastrão e o ingênuo que nada lembra o naturalismo exacerbado daquilo que é considerado “moderno” pelos lançamentos do mês. No conjunto geral de tais escolhas artísticas, entretanto, há um considerável grau de encanto sensorial que faz com o espectador até se sinta dentro de uma espécie de nostálgico delírio onírico. Por mais que algumas ideias do roteiro e mesmo da concepção visual do filme possam parecer estapafúrdias, quase infantis, há um toque de elegância e sobriedade na direção de Fleischer que dá à “Viagem fantástica” uma notável coerência artística-existencial.

quarta-feira, maio 16, 2018

Desejo de matar, de Eli Roth **1/2


De certa forma, pode-se dizer que a refilmagem de “Desejo de matar” (2018) é bastante daquilo que se poderia esperar da junção das pessoas e elementos envolvidos na produção. Há o viés fortemente conservador do roteiro na defesa do cidadão que se arma e faz justiça com as próprias, o gosto pela plasticidade brutalista explícita beirando o gore que o diretor Eli Roth tanto aprecia, a propensão de Bruce Willis para papéis de durão (ele até tenta capengamente no início dar alguma densidade dramática para o protagonista, mas só engrena mesmo quando reencarna o John McClane de “Duro de matar”). E é claro que essa combinação casca-grossa recebe um verniz de “modernidade” em termos narrativos e estéticos para deixar tudo mais palatável para as plateias contemporâneas. Ou seja, ao invés da atmosfera e formalismo sóbrios e quase reflexivos do filme original de 1974, há aquele ritmo frenético e ambientação barulhenta típicos da escola “Velozes e furiosos”. O real problema dessa nova versão não está propriamente na tentativa de atualização ou mesmo no caráter ostensivamente fascista e maniqueísta com que expõe suas convicções e dilemas. O que impede que a obra atinja um patamar artístico parecido com o clássico de Michael Winner é simplesmente o fato de que todos os elementos que eram para serem renovadores ou que pretensamente tinham um viés de insólito ou mesmo original não são efetivamente desenvolvidos e trabalhados até o fim. Tudo fica pelo meio do caminho. Tanto que as melhores cenas são aquelas em que Roth faz lembrar o violento barroquismo gráfico da franquia “O albergue” (ainda o seu grande momento criativo nas telas). No restante, o novo “Desejo de matar” soa genérico como um tanto de produções no gênero que aparecem com considerável frequência nos multiplexes da vida.

terça-feira, maio 15, 2018

Raw, de Julia Ducornau **1/2


A diretora Julia Ducornau busca em “Raw” (2016) uma aproximação ao terror antropológico repleto de simbologias, mas procurando aproveitar alguns preceitos narrativos tradicionais do gênero horror. Algumas ideias do roteiro são interessantes, relacionando o canibalismo da protagonista Justine (Garance Marillier) com fundamentos atávicos e mesmo a toques de feminismo. Essa pretensão de crítica à sociedade patriarcal, entretanto, acaba se diluindo em uma abordagem narrativa e estética marcada por um certo tom “clean”. Há algumas sequências dominadas por uma interessante plasticidade brutal e sangrenta. Ou seja, os melhores momentos do filme é quando afunda o pé na jaca do terror gore. Quando envereda pelo lado do suspense psicológico é que as coisas descambam – nesse último quesito, faltou uma caracterização de situações e personagens mais aprofundada e menos superficial em termos de densidade dramática.

segunda-feira, maio 14, 2018

O presente, de Joel Edgerton **


Você já viu esse filme diversas vezes, e em algumas oportunidades ele era bem melhor... Talvez o certo destaque que “O presente” (2015) ganhou venha do fato de ser a estreia na direção de um longa do ator Joel Edgerton, daí como ele seguiu direitinho o manual do suspense contemporâneo acabou gerando uma boa impressão. Há até uns bons sustos em alguns momentos, mas o filme não vai muito além do óbvio e previsível. As viradas dramáticas do roteiro obedecem a uma mecânica engessada, a encenação nada se afasta do naturalismo sem graça e a atmosfera e concepção visual são marcadas pela assepsia. Por vezes, há uma sugestão de leve “transgressão” por apresentar uma discreta crítica ao superficialismo e arrivismo existenciais do homem branco ocidental. Mesmo isso, entretanto, perde-se em uma conclusão moralista e machista. Para quem se interessa pelo gênero e temática cinematográficos em questão, recomenda-se a versão porrada de Martin Scorsese para “Cabo do medo” (1991), um exercício brutal, exagerado e brilhante de suspense no cinema.

sexta-feira, maio 11, 2018

Morrer aos trinta anos, de Romain Goupil ****


A temática relativa ao maio de 1968 é um ponto em comum entre os documentários “Morrer aos trinta anos” (1982) e “No intenso agora” (2017). Tanto que esse último cita explicitamente em imagens o primeiro. Mas há fortes diferenças existenciais e artísticas entre tais produções. Se na brilhante obra brasileira dirigida por João Moreira Salles a narrativa se baseia exclusivamente em imagens de arquivo filmadas por terceiro e apresenta um olhar desencantado e subtexto sutilmente conservador, no filme francês dirigido por Romain Goupil o enfoque é praticamente o oposto – grande parte do que é mostrando em termos de imagens vem de filmagens próprias de Goupil e sua visão pessoal sobre os eventos tem expressivos traços melancólicos, mas sem perder uma certa verve de entusiasmo e carinho por todos aqueles fatos nos quais teve uma participação direta. E aí está justamente um dos grandes pontos de fascínio em seu longa-metragem, em que o intimismo e a ambientação sócio-política parecem se entrelaçar como se fosse uma coisa só. A dinâmica dos fatos mostrados em tela não tem apenas o caráter histórico de situações que estão congelados hoje em dia no tempo e no espaço para estudos. Na concepção de Goupil toda aquela engrenagem ainda está em movimento, ou melhor, já estava em franco desenvolvimento antes mesmo do maio de 1968. Assim, “Morrer aos trinta anos” não é um simples relato histórico. Também é a expressão, mista de emotividade e racionalismo, de uma série de sentimentos, desejos, utopias e frustrações, elementos esses que se configuram intensamente na trajetória pessoal de Michel Recanati, o real protagonista do documentário, agente ativo do maio de 68 e seus desdobramentos ao longo dos anos e que teve um fim precoce ao cometer suicídio. Na obra-prima de Goupil, não cabe explicações prontas para as atitudes de Recanati e seus companheiros ou precisos julgamentos morais para os fatos mostrados na tela. No final das contas, o que resta para o imaginário do espectador é o fascínio e o mistério diante de personagens que desafiaram um ordenamento sócio-político marcado pela opressão e pragmatismo desumanos.

quinta-feira, maio 10, 2018

Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans ****


Se em “A vizinhança do tigre” (2014) o diretor Affonso Uchoa criava uma fascinante síntese entre o documental e a encenação, em “Arábia” (2017), codirigido com João Dumans, ele parte para uma concepção narrativa aparentemente mais tradicional, que se formata como drama ficcional. Ainda assim, é uma obra que ainda se vincula a um conceito de “cinema verdade”, afinal boa parte do roteiro é diretamente inspirada nas memórias do ator Aristides de Souza, ator que dá vida a Cristiano, protagonista da obra em questão. Esse filme mais recente parece continuar de onde o anterior parou – se “A vizinhança do tigre” era um flagrante do cotidiano de brincadeiras e contravenções de um bando de garotos da cidade mineira de Contagem, em “Arábia”, um jovem delinquente desiste da vida de pequenos crimes na mesma cidadezinha e resolve percorrer o interior de Minas Gerais em busca de trabalho e de alguma estabilidade social e emocional em sua vida. Os caminhos estéticos e textuais de Uchoa e Dumans para narrar esse pequeno conto existencial até obedecem a critérios de linearidade e atmosfera realista, mas apresentam alguns desvios marcados pelo insólito, pela sutileza e pelo mistério. O verdadeiro começo da trama vem na exposição de uma rotina de privações econômicas e emocionais de um garoto (Murilo Caliari) que por acaso descobre o diário de Cristiano, falecido recentemente. A partir desse momento, a narrativa é conduzida pela voz do protagonista a ler o seu diário a expor diversos percalços e poucas alegrias e paz de espírito. O ritmo da narrativa é sóbrio, sem sobressaltos, dando a impressão da marcha inexorável rumo a um fim melancólico. Na jornada de Cristiano, está presente tudo aquilo que é comum na biografia de milhões de semelhantes ao personagem principal – exploração sócio-econômica, invisibilidade perante a uma sociedade alienada, o progressivo embrutecimento e desesperança. “Arábia” não cai no discurso e nas armadilhas do sentimentalismo fácil. Subtexto e recursos narrativos realçam mais o lado de surda revolta e desilusão perante um sistema que vende a ilusão de uma sociedade que permite a ascensão de todos pelos próprios méritos, quando na verdade massacra impiedosamente os despossuídos e qualquer um que ouse se rebelar contra a perversidade e hipocrisia de tal status quo. A dureza nas constatações do filme, entretanto, não impede que se evidencie uma pungência comovente na sua abordagem artística.

quarta-feira, maio 09, 2018

Vingadores: Guerra infinita, de Joe e Anthony Russo ***1/2


A forte mortandade de personagens em “Vingadores: Guerra infinita” (2018) pode impressionar os neófitos do Universo Marvel nos quadrinhos. Afinal, nas histórias originais das HQs, alguns dos principais heróis, vilões e coadjuvantes importantes sucumbirem de forma dramática não chega a ser algo exatamente raro. Mesmo porque é bastante provável que algumas edições depois de tais “mortes” as mesmas figuras apareçam ressuscitadas mediante explicações estapafúrdias. Então, é quase certo que na continuação a ser lançada em 2019 todo mundo que morreu reapareça vivinho sem maiores consequências. Isso, entretanto, retira os méritos dessa obra mais recente dos estúdios Marvel? A resposta é não. E até pelo contrário. Talvez o mais fascinante nesse filme dirigido pelos irmãos Russo esteja na capacidade de envolver o espectador em sua narrativa frenética mesmo que abuse de certo clichês temáticos e formais. O fato de ter de conciliar várias tramas paralelas na mesma narrativa por vezes torna o ritmo dessa um tanto irregular, além do roteiro ser claudicante em qualquer cena que envolva uma atmosfera, digamos, mais intimista (com exceção para a dinâmica que se estabelece entre Thanos e Zamora). Tirando tais deslizes compreensíveis, afinal se trata de um blockbuster que obedece a uma fórmula criativa bem delimitada pelo estúdio e até pelo mercado consumidor, “Vingadores: Guerra infinita” consegue reproduzir com fidelidade e convicção boa parte dos encantos que as sagas espaciais dos Vingadores traziam em alguns de seus maiores clássicos (incluindo aí também algumas histórias escritas pelo mestre Jim Starlin para Capitão Marvel, Warlock e Thanos). A combinação entre aventura épica e tiradas humorísticas é bem dosada, gerando algumas sequências de ação memoráveis (nesse sentido, destaque absoluto para as cenas protagonizadas pela trinca Thor, Rocket Raccoon e Groot). E Thanos (Josh Brolin) tem uma caracterização impressionante em termos imagéticos e de densidade psicológica, disparado o melhor vilão no universo fílmico da Marvel. Para quem tinha se decepcionado com o brochante “Era de Ultron” (2015), “Guerra infinita” representa uma bela retomada criativa para a franquia e dá um considerável gostinho de quero mais para a continuação.

terça-feira, maio 08, 2018

O roubo da taça, de Caito Ortiz ***


É interessante como às vezes um filme aparentemente despretensioso e escapista pode ser muito mais revelador do espírito de uma época do que muitas produções ditas sérias. Esse é justamente o caso de “O roubo da taça” (2016). A trama ficcional usa elementos de fatos reais, principalmente ligados ao célebre roubo da taça Jules Rimet no início dos anos 80, tendo uma narrativa que remete a clássicos elementos de comédias de erro e chanchadas, abordagem essa que é ainda mais acentuada pela ótima e debochada atuação de Paulo Tiefenthaler no papel do protagonista Peralta. A atmosfera do filme tem um forte caráter caricatural, até em excesso em algumas situações, mas consegue evidenciar um dos lados mais tenebrosos do período da ditadura militar no Brasil – a síntese de bagunça, brutalidade e completo desrespeito ao estado de direito por parte do conjunto militares, policiais e demais colaboradores do regime. A simples falta de método e ordem para investigar um crime, usando como critérios únicos a violência e a ocasional sorte, reflete um país que parecia resistir a qualquer custo a ter como base elementos essenciais para qualquer nação como o humanismo e o racionalismo. Os azares e equívocos de Peralta em meio a um ambiente marcado pelo absurdo político-existencial que beira o kafkaniano tem algo de tragicômico, e que de certa forma dá uma impressão ainda mais perturbadora para o espectador quando esse percebe que as coisas não mudaram muito nos dias presentes.

segunda-feira, maio 07, 2018

Psicopata americano, de Mary Harron ***


O grande mérito de “Psicopata americano” (2000) é o fato dele sair do lugar-comum ao tratar de sua temática – ao invés da típica formatação dos gêneros suspense e horror a versarem sobre assassinos seriais, a produção dirigida por Mary Harron prefere a abordagem de uma comédia de humor negro em tons algo delirantes e repleta de simbologias sobre as relações de poder na sociedade contemporânea. Por vezes, essa carga de metáforas visuais e textuais se mostra um tanto óbvia e explícita na forma com que relaciona o desejo insaciável por violentos homicídios do protagonista Patrick Bateman (Christian Bale) com a sua rotina competitiva e vazia em termos existenciais como executivo bem-sucedido financeiramente e frequentador das altas rodas sociais na vida noturna nova-iorquina. O fato da trama se situar nos anos 80, período de ascensão e auge dos yuppies, acentua ainda mais esse lado de crítica ao consumismo desumano e desenfreado a se refletir no sadismo sem limites do personagem principal. Esse lado de fábula moral previsível, entretanto, é compensado por algumas sequências memoráveis na sua síntese de comicidade insólita e exagerada brutalidade gráfica. A atuação de Bale é outro ponto alto, conciliando fúria alucinada e senso de humor canastrão com uma naturalidade admirável.

sexta-feira, maio 04, 2018

O melhor lance, de Giuseppe Tornatore *


A filmografia do diretor italiano Giuseppe Tornatore sempre andou em um frágil equilíbrio entre um respeitável academicismo formal-narrativo e uma atmosfera mista de solene e banal, com roteiros com forte tendência para o novelesco sentimental. Por vezes, tal concepção artística rendeu alguns bons filmes sem grandes sobressaltos criativos (“Cinema Paradiso”, “Estamos todos bens”), mas nos últimos tempos ela vinha desandando em uma série de obras esquecíveis. “O melhor lance” (2013) é o fundo do poço para Tornatore. Todos aqueles preceitos estéticos e temáticos que por vezes soavam incômodos em trabalhos anteriores agora soam simplesmente odiosos. Tornatore aparentemente domina uma técnica, mas de maneira estéril, sem vida, às vezes até resvalando no rococó ridículo. O tom operístico da narrativa tem a pretensão de uma grandiosidade barroca – no resultado final, o que fica na cabeça do espectador é uma narrativa marcada por uma opulência brega e vazia. Se o diretor tivesse conduzido o filme como uma intencional grande paródia megalomaníaca talvez pudesse criar algum ponto de interesse para o espectador minimamente exigente. O problema é que ele faz tudo a sério mesmo, inclusive querendo dar uma patética dimensão épica para um roteiro ridículo e descerebrado. Nem a novela mexicana mais vagabunda seria tão equivocada.

quinta-feira, maio 03, 2018

Gênios do crime, de Jared Hess ***


O diretor norte-americano Jared Hess conseguiu um feito considerável ao mostrar uma concepção narrativa renovadora para o gênero comédia nos filmes “Napoleon Dynamite” (2004) e “Nacho Libre” (2006). Em “Gênios do crime” (2016), ele se mostra mais adaptado a convenções em termos formais e temáticos, mas ainda assim consegue oferecer uma produção acima da média. Sua encenação tem uma fluidez notável, principalmente em termos de interação entre os personagens, valorizando as nuances entre o sórdido e o cômico presentes no roteiro. É claro que os tradicionais clichês narrativos desse tipo de produção estão presentes. Contudo, eles por vezes até são pervertidos em nome de uma visão ácida sobre a breguice e o arrivismo de uma parte expressiva da sociedade norte-americana, além da propensão para o humor negro e algo escatológico de algumas sequências. Hess extrai ainda boas atuações de seu elenco (mesmo os habituais exageros pretensamente cômicos de Zach Galifianakis se mostram eficientes em cena). Nesse contexto geral, “Gênios do crime” acaba soando como uma paródia escrota do melhor que os irmãos Coen fizeram dentro daquela síntese entre comédia e suspense. E isso é um elogio!

quarta-feira, maio 02, 2018

Mecânica das sombras, de Thomas Kruithof ***


Em termos formais e temáticos, não há nada de especialmente original na produção franco-belga “Mecânica das sombras” (2016). Não quer dizer, entretanto, que o filme dirigido por Thomas Kruithof não tenha os seus atrativos. É um eficiente thriller que se destaca pela sua sóbria narrativa, as boas composições dramáticas do elenco e pelo pertinente subtexto sócio-político de seu roteiro. No meio das triviais reviravoltas da trama, a figura do protagonista Duval (François Cluzet) sintetiza com sensibilidade a figura do cidadão europeu de meia-idade contemporâneo, assombrado pelo fantasma do desemprego e pelas estruturas alienantes e kafkanianas do poder repressivo e tecnocrático – nesse último quesito, o sombrio personagem Clément (Denis Podalydès) também carrega um forte sentido simbólico.