É claro que Clint Eastwood já dirigiu filmes muito melhores
que “A mula” (2018). Mas não deixa de ser um alívio que esse filme mais recente
não seja um equívoco das proporções do lamentável “15h17 – Trem para Paris”
(2018). “A mula” tem aquele tom crepuscular de “Gran Torino” (2008), em que a
velha persona de durão de Eastwood está desgastada pelo passar dos anos e
também pelas mudanças comportamentais e sociais que o mundo passou nas últimas
décadas. Assim, o protagonista Leo Sharp (Eastwood) se move em cena quase como
um dinossauro cansado, mas que ainda se permite algumas diversões e
transgressões. As velhas distinções entre o bem e o mal se mostram bem mais
nebulosas. Assim, o ato do personagem principal em colaborar com traficantes de
drogas tem conotações bastante ambíguas – sabe-se da violência e sordidez que
envolve esse “comércio”, mas para alguém que já está nos anos finais da
existência, o que interessa é conseguir uma grana para ajudar amigos e
familiares e ainda usufruir um pouco dos prazeres da vida. As consequências
sombrias do crime são previsíveis, mas Leo aceita o seu destino com resignação
e até dignidade. Em um país que boa parte dos cidadãos tem suas vidas
arruinadas pelos interesses do mercado, traficar alguns quilos de drogas não se
mostra um crime tão horrível assim. Uma constatação assim até surpreende quando
se pensa que Eastwood é um velho republicano convicto, mas é perfeitamente
coerente para o diretor que realizou filmes de forte complexidade moral como “Os
imperdoáveis” (1992) e “American sniper” (2015). Ainda que o roteiro de “A mula”
tenha algumas inconsistências e se volte por vezes para o melodrama excessivo,
a narrativa de talhe clássico e a encenação serena concebidas por Eastwood
tornam a obra uma experiência cativante e memorável.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, fevereiro 28, 2019
quarta-feira, fevereiro 27, 2019
Guerra fria, de Pawel Pawlikowski ***
Os primeiros 20 minutos de “Guerra fria” (2018) são bem
interessantes e fazem valer o ingresso para ver o filme: na Polônia do início
da década de 50, dois musicistas percorrem o interior do país registrando
cantos folclóricos, selecionando jovens cantores e dançarinos e por fim
montando espetáculos tendo por base o cancioneiro que colheram. A fotografia e
a narrativa que evocam um certo tom documental, a beleza bruta da música e a
ótima fotografia compõem um todo sedutor. Depois, o filme se converte em um
melodrama romântico previsível e beirando o banal, além de trazer uma abordagem
muito estereotipada e conservadora dos conflitos políticos e ideológicos da
época. De qualquer forma, a plasticidade extrema conferida pelo diretor Pawel
Pawlikowski acaba deixando as coisas agradáveis de se ver (mesmo a sujeira e
violência de algumas passagens se mostram quase palatáveis). Assim, apesar de
todo o anacronismo estético-existencial e a impressão constante de se assistir
a um “Casablanca” (1942) reciclado, “Guerra fria” não deixa de ser uma obra
curiosa (principalmente, vale a pena reforçar, por aquelas sequencias
iniciais).
terça-feira, fevereiro 26, 2019
Bom trabalho, de Claire Denis ****
As relações de poder hierárquico, os intensos exercícios
físicos e os episódios de camaradagem dentro de um ordenamento militar são
vistos por muitos como inerentes e sintomáticos do espírito de disciplina e
moralidade desse tipo de instituição. No âmbito da produção francesa “Bom
trabalho” (1999), entretanto, tais aspectos são reveladores de um mal
disfarçado jogo de intrigas e de um homoerotismo latente. Nessa concepção
existencial, a diretora Claire Denis não busca o choque gratuito ou algum
sensacionalismo barato. O teor sexual que se estabelece em um pelotão da Legião
Estrangeira em uma cidade exótica e de calor escaldante no interior da África é
um misto desconcertante de intensidade e sutileza. Denis explora de maneira
sensível e engenhosa cada nuance imagética e existencial do seu texto e cenário.
Os diálogos obscuros, os exercícios militares e a vida noturna dos recrutas,
praças e oficiais nas noites de danças e flertes da cidade que ocupam trazem em
suas entrelinhas tanto difusos aspectos intimistas dessas vidas quanto um
contundente teor sócio-político na exposição da conturbada relação da França
com as suas ex-colônias. Discurso e temática intrincados recebem um tratamento
estético em plena sintonia no seu detalhismo cênico e narrativo. O filme por
vezes se afasta do linear e espalha seus elementos como um quebra-cabeça
intrigante, fazendo com que a encenação tenha uma marcação que beira a tragédia
grega, ainda que sempre marcada por uma atmosfera rarefeita e irônica. A
direção de fotografia não se limita a um mero registro “cartão postal” das
paisagens naturais exóticas – pelo contrário, enfatiza nuances como as luzes estouradas
solares e artificiais e a imagem desfocada e granulada de algumas passagens.
Dentro de tal abordagem visual, o realismo inicia por vezes ganha ares de uma
incursão em uma dimensão paralela, impressão essa acentuada por uma trilha
sonora que se alterna com maestria entre o tom operístico, dançantes temas
étnicos e rocks climáticos.
segunda-feira, fevereiro 25, 2019
A favorita, de Yórgos Lánthimos ***
Vire e mexe e as coisas se repetem de maneira que beira o
manjado – quase que anualmente aparece algum drama inglês de fundo histórico
falando sobre uma rainha britânica de algumas décadas ou séculos atrás com uma
abordagem entre o realismo e o farsesco sempre abusando de uma direção de arte
caprichada e um elenco de nomes competentes. Por seu rigor formal o tal do
filme chama atenção de parcela expressiva da crítica e conquista alguma
indicações ao Oscar e premiações afins. “A favorita” (2018) é o caso mais
recente desse processo mercadológico-artístico. É claro que não chega a ser
ruim, pois há realmente um esmerado cuidado estético, as atuações da trinca
protagonistas têm os seus momentos expressivos (principalmente por parte de
Olívia Colman) e o diretor Yórgos Lánthimos consegue extrair algumas memoráveis
sequências de humor bizarro e erotismo perverso. Mas também não justifica tanto
estardalhaço de “novidade” como vem se propagando por aí.
sexta-feira, fevereiro 22, 2019
Uma aventura lego 2, de Mike Michell
Se “Uma aventura Lego 2” (2019) não chega a ser uma decepção
como “WiFi Ralph – Detonando a internet” (2018), também não chega a ser tão
empolgante e divertido como “Lego Batman: O filme” (2017). O filme pouco avança
em relação ao que já havia sido apresentado em “Uma aventura Lego” (2014), mas,
mesmo assim, ainda consegue se manter como uma animação acima da média. Há boas
sacadas em termos visuais e de ideias de roteiro – nesse último aspecto, acaba
fazendo algumas ironias ácidas contra a tendência apocalíptica e sombria “fake”
e apelativa de alguns blockbusters norte-americanos mais recentes. A forma com
que o universo fantástico dos bonecos e o mundo “real” dos humanos convivem
também tem um interessante teor de criatividade. O subtexto até apresenta
algumas ousadias ao fugir de uma tendência mais conservadora e evocar valores
como tolerância e respeito em relação ao diferente. É claro que o lado de
narrativa de aventura e grafismo detalhista e exuberante são fatores bastante
atraentes para o público, assim como os diálogos e situações da trama que
aludem a referências de cultura pop são prato cheio para o público nerd. No
final das contas, entretanto, o que torna o filme de Mike Michell como uma
produção memorável é essa tendência na valorização do humanismo em suas
soluções temáticas.
quinta-feira, fevereiro 21, 2019
Adyós, general, de Omar de Barros Filho ****
No panorama histórico-estético do cinema gaúcho, “Adyós,
general” (1986) é uma obra completamente fora da curva – não se liga a nenhum
movimento, escola ou qualquer outro tipo de linhagem que se configurou no
Estado. Bem, talvez dê para pensar no recente e extraordinário “A cidade dos
piratas” (2018), de Otto Guerra (aliás, Guerra é responsável pela animação dos
créditos de abertura de “Adyós, genera”, numa bizarra coincidência. Ou não?). A
origem da obra dirigida por Omar de Barros Filho já é característica da sua
natureza estranha – um jornalista com grande experiência na imprensa
alternativa e de esquerda resolve fazer um filme de ficção para narrar fatos
que presenciou ao cobrir os conflitos armados entre as forças do governo e a
guerrilha em El Salvador nos anos 80. O grande diferencial, entretanto, é que o
cineasta/repórter filtra essa trama histórica-biográfica sob uma bizarra e
inventiva perspectiva narrativa-estética, fazendo um cruzamento delirante e
genial de preceitos de Cinema Novo e Cinema Underground e mais alguns toques de
referências documentais. Encenação, direção de fotografia e edição se fundem
sob um formalismo de forte caráter libertário. A narrativa vai se tornando cada
vez mais alegórica e intrincada, baseada em diálogos/discursos repletos de
expressivas nuances políticas/filosóficas e em um grafismo brutal baseado em
violência e sexo que por vezes envereda sem cerimônias no escatológico. Ainda
que toda essa concepção artística possa ser chocante para boa parte da
audiência, em seu subtexto há um forte teor humanista e poético que só encontra
paralelo talvez com a obra-prima extrema de Pasolini, “Saló – Os 120 dias de sodoma”
(1975). O grito de Omar de Barros Filho contra a opressão e a hipocrisia das forças
reacionárias é feroz na sua indignação e sarcasmo e só poderia mesmo se
concretizar por meios de uma linguagem cinematográfica tão desafiadora e
criativa quando essa apresentada em “Adyós, general”. Os encantos (e perturbações)
do filme se mostram atemporais, vide a forma coerente com que a obra se
relaciona com o atual cenário sócio-político brasileiro e mundial, tomados por
uma ascensão desmedida de governos autoritários de direita.
quarta-feira, fevereiro 20, 2019
Clímax, de Gaspar Noé ****
Mas, afinal, o que é “Clímax” (2018)? Por vezes, o filme
mais recente de Gaspar Noé parece uma versão do inferno do clássico “O baile”
(1983). Se a obra-prima de Ettore Scola é um painel artístico-histórico do
século XX que se configura em diversas coreografias que se desenvolvem ao longo
de décadas no mesmo espaço físico de um salão de dança, a produção de Noé é um
panorama estético-existencial sobre o estado político-mental de uma Europa em
desagregação no final do mesmo século (e antecipando os tempos ainda mais
conturbados do século XXI) em que toda a ação se cristaliza em uma hora e meia
regada a sexo, drogas, violência, morte e muitas performances (individuais e
coletivas) ao som da uma magnífica trilha sonora regada a temas eletrônicos/dançantes
antológicos dos anos 80 e 90. Essa junção improvável de musical, horror e
melodrama recebe um tratamento narrativo e formal em perfeita sintonia com essa
síntese de delírio, sordidez e fragmentação – há um senso de virtuosismo
barroco que paira sobre a narrativa, vide vertiginosos planos-sequências e uma
rigorosa marcação cênica na movimentação de uma ampla gama de personagens e nas
enlouquecidas e vibrantes coreografias, mas que sempre é marcado por momentos
de descontinuidades tanto em cortes bruscos como nos próprios créditos do filme
que irrompem em momentos dos mais inesperados (a referência de que o próprio
filme está chapado como seus personagens é óbvia, mas inegavelmente engenhosa e
eficaz). Em meio a esse grafismo brutal e à aparente desordem imagética/sonora
de “Clímax”, Noé, assim como já tinha feito em “Irreversível” (2002) e “Enter
the void” (2009), desconcerta o espectador diante dessa fúria sensorial que ao
mesmo tempo empolga pela sua exuberância audiovisual e perturba por uma visão
sombria e desencantada da humanidade do novo milênio.
terça-feira, fevereiro 19, 2019
Creed 2, de Steven Caple Jr. **
Se o primeiro “Creed” (2015) representou um vigoroso frescor
de renovação para o universo do lutador Rocky Balboa, “Creed 2” (2018) é
exatamente o lado oposto – parece um compêndio sem inspiração dos mais gastos
clichês narrativos e temáticos dos piores momentos da franquia “Rocky”. É claro
que para alguns nostálgicos tudo poderá parecer uma homenagem à mitologia da
série cinematográfica – ou seja, o mesmo papo furado a justificar os novos
capítulos sem pé nem cabeça de “Star Wars”. De uma certa forma, é como se tivéssemos
assistindo a uma refilmagem da divertida picaretagem “Rocky 4” (1985), mas se
levando bem mais a sério (ainda que não tenha toda aquele grau de ufanismo
patriótico, pois daí seria queimação de filme em excesso).
segunda-feira, fevereiro 18, 2019
Vice, de Adam McKay ***
Em seus primeiros longas-metragens, em colaboração com o
ator Will Ferrell, o diretor Adam McKay praticamente redefiniu alguns
parâmetros da comédia cinematográfica. Depois, mudou seu interesse temático
para outra área, ainda que preservasse alguns maneirismos cômicos de suas
produções iniciais. Nessa fase mais recente, McKay se mostra mais focado em
fazer um inventário histórico-artístico-existencial do panorama sócio-político
dos Estados Unidos do século XXI, ainda que sabendo que a situação atual do
país é fruto de uma série de fatos decisivos do século passado. Se “A grande
aposta” (2015) era uma visão sombria e irônica sobre a crise econômica que
assolou o seu país e o mundo em 2008, “Vice” (2018) volta a sua atenção para a
trajetória do político Dick Cheney (Christian Bale), vice-presidente na era
George W. Bush, e sua nefasta influência sobre diversas áreas da sociedade
norte-americana nas últimas décadas. McKay ousa ao se afastar de alguns clichês
narrativos tradicionais do gênero cinebiografia, preferindo enveredar para o
lado do farsesco. Ainda que o roteiro seja bastante informativo e marcado por
uma ácida lucidez, a encenação recorra a interessantes recursos de
metalinguagem e quebra da quarta parede e a edição repleta de eficientes
truques tenha um expressivo dinamismo, falta para o filme por vezes uma
densidade dramática mais convincente – os excessos caricaturais e a grande
quantidade de fatos expostos na trama deixam por vezes o trabalho de McKay
marcado pela superficialidade. O equilíbrio entre o lado intimista da obra e o
seu viés sócio-político também não apresentam uma harmonia mais constante, em
que uma tentativa de humanização do protagonista faz com que em alguns momentos
a compreensão sobre a efetiva dimensão de alguns de seus atos mais escabrosos
seja atenuada. Ainda assim, no saldo geral, “Vice” é um filme inquietante e em
algumas passagens até mesmo perturbador na maneira com que disseca a hipocrisia
e desfaçatez da direita e reacionários afins na forma com que ditam os rumos
políticos e econômicos do mundo ocidental. A análise em forma fílmica de McKay
é bem mais esclarecedora sobre o mundo que vivemos do que a visão alienante do
Jornal Nacional, Veja e outros bastões “oficiais” do jornalismo. E apenas
decepciona um pouco porque como filme não tem o mesmo equilíbrio
narrativo-temático de “A grande aposta”.
sexta-feira, fevereiro 15, 2019
Amigos filmam amigos, de Gabriel Carneiro, Alê Rodrigues, Diomédio Piskator e Ricardo Alexandre Corsetti **
Não dá para dizer que “Amigos filmam amigos” (2018) seja
propriamente um documentário de longa-metragem. Está mais para uma ação de
amigos e admiradores do cinema da Boca do Lixo paulista que fizeram uma espécie
de homenagem fílmica a alguns dos principais profissionais daquele cenário e
época. São cinco episódios conduzidos cada um por diretores diferentes e com
resultados artísticos igualmente diversos. Se a parte que focaliza o ator José
Lopes (o Índio) peca pelo excesso de sentimentalismo, aquelas protagonizadas
pelo diretor de fotografia Virgílio Roveda, o ator Satã e o cineasta Tony
Ciambra são apenas corretas, ou seja, informativos e bastante convencionais (o
que não deixa de ter seus atrativos para aqueles interessados na história do
cinema nacional). O melhor episódio disparado é o dedicado ao diretor José
Miziara, responsável por alguns grandes sucessos comerciais nos anos 80. Gabriel
Carneiro, diretor responsável por esse segmento, vai muito além do didático,
conseguindo fazer um retrato contundente e melancólico sobre um talentoso
artista amargurando um ostracismo devido aos impiedosos ditames da indústria
cultural contemporânea.
quinta-feira, fevereiro 14, 2019
A misteriosa morte de Pérola, de Guto Parente ***1/2
Em um primeiro momento, a primeira referência que pode vir à
mente quando se assiste a “A misteriosa morte de Pérola” (2014) é a filmografia
de David Lynch. Estão lá na narrativa do filme de Guto Parente uma série de
recursos narrativos que o genial cineasta norte-americano usou com recorrência
em seus trabalhos – a trama que se divide em dois momentos distintos que possuem
uma obscura inter-relação entre eles, uma atmosfera que trafega sem maiores
cerimônias entre a realidade e o delírio, a encenação que também varia entre o
naturalismo e a estilização. Apesar de tais elementos familiares, Parente ainda
assim consegue ter um traço de originalidade em suas concepções artísticas e
demonstra saber manter a atenção do espectador mediante uma forte tensão
dramática na manipulação do ritmo narrativo e do rigor imagético da direção de
fotografia. Não se tem uma produção no gênero suspense “puro”, pois há uma
carga intimista/psicológica densa tanto na exposição minuciosa do desolado cotidiano
e do processo de fragmentação psíquica de Pérola (Ticiana Augusto Lima) em seu
autoexílio em um apartamento no interior da França quanto na visita que o seu
namorado faz ao apartamento depois da morte da garota. Parente acentua e
harmoniza essa perturbadora combinação entre suspense e drama a partir de
algumas elegantes nuances formais, vide a contraposição entre a sua judiciosa
encenação e a inserção de falsos e “amadores” trechos documentais e o uso de
uma trilha sonora repleta de temas musicais dissonantes.
quarta-feira, fevereiro 13, 2019
Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes ****
Logo no início da narrativa em “Infernino” (2018),
ambientação e encenação remetem ao clássico do cineasta alemão Rainer Werner
Fassbinder, “Querelle” (1982) – em um misto de estilização e sordidez, um
boteco de beira de cais caindo aos pedaços abriga um atendente vestido de
coelho, uma cantora de cabaret-brega, um tecladista clone de Beethoven e uma
clientela composta basicamente de desajustados vestidos de refugos de cultura
pop. O grande mérito dos diretores Guto Parente e Pedro Diógenes é fazer com
que o filme fuja da paródia besta e se configure como uma alegoria ácida e pungente
sobre os conturbados dias atuais. Para isso, a obra se vale de uma original
reciclagem de melodrama sórdido aos moldes do já citado Fassbinder e de um
realismo neon herdeiro da obra-prima “O fundo do coração” (1981). A síntese de
referências e citações sempre se mostra empolgante e filtrada por uma
particular visão estética e temática. Parente e Diógenes se valem de truques visuais
simples e de grande eficácia imagética. Nesse sentido, as sequências mais
oníricas e delirantes encantam pela sutileza entre o naif e o sofisticado de
suas trucagens baratas. E mesmo os momentos mais naturalistas são perpassados
por um requintado barroquismo artesanal e repleto de nuances. Ou seja, a partir
de parcos recursos de produção os diretores extraem o máximo em um formalismo
que demonstra rigor e criatividade, sabendo ainda aproveitar com sensibilidade
os demais elementos narrativos, com destaque para os ótimos temas originais da
trilha sonora e algumas intensas atuações de seu elenco (com grande destaque
para Yuri Yamamoto e Démick Lopes).
terça-feira, fevereiro 12, 2019
Singapore Sling, de Nikos Nikolaidis ****
Em sua época áurea, nas décadas de 1940 e 1950, o cinema
noir era marcado por uma fascinante ambiguidade artística – influenciado esteticamente
pela literatura policial “pulp” e pelo expressionismo alemão, toda a
perversidade e sordidez presente em seu subtexto tinha que se adaptar aos
moldes narrativos tradicionais do cinema comercial norte-americano da época e,
principalmente, aos padrões morais dos códigos de condutas dos grandes
estúdios. A produção grega “Singapore Sling” (1990) parte de um pressuposto
artístico inquietante – se não houvesse essas limitações da época em que se
desenvolveu, como seria o cinema noir? A resposta oferecida pelo resultado final
do filme dirigido por Nikos Nikolaidis pode parecer puramente especulativa, mas
também oferece alguns momentos memoráveis na sua síntese entre clichês
narrativos de filme policial clássico, toques de exploitation e forte teor
experimental. Roteiro e encenação deixam aflorar de maneira impiedosa
escatologia, incesto, ostensivo brutalismo gráfico, despudorada sexualidade e
um doentio senso de humor, tudo filtrado dentro de uma concepção formal de
forte rigor plástico e perpassado por uma atmosfera entre o melancólico e o
poético. No todo, é uma obra inclassificável e desconcertante, o que ajuda
explicar porque foi proibida em alguns países ou simplesmente nem foi exibida
comercialmente em outros mercados (inclusive o Brasil). É necessário,
entretanto, que apreciadores de um cinema que vá além das grandes bilheterias
ou de premiações do Oscar corram atrás dessa pérola de insólita beleza.
segunda-feira, fevereiro 11, 2019
A casa do cemitério, de Lucio Fulci ****
O horror cinematográfico concebido pelo diretor italiano
Lucio Fulci parece habitar um universo paralelo dentro do próprio gênero. Por
mais que suas obras flertem com temas e truques narrativos bastante
característicos de outros filmes dessa linhagem, a encenação e atmosfera
rarefeitas e o teor imagético doentio constantes em sua filmografia marcam uma
diferenciação perturbadora e contundente para o seu público. “A casa do
cemitério” (1981) é um comprovante enfático do ideário artístico muito
particular de Fulci. O roteiro gira em torno da velha premissa de uma casa
mal-assombrada, mas isso é apenas um detalhe/pretexto para uma tenebrosa viagem
sensorial, vide a combinação desconcertante entre fotografia e direção de arte
que sintetizam climas góticos e puro gore escatológico, com direito a muitos
vermes saindo de ferimentos e mortes atrozes à base de perfurações, lacerações
e afins. Ainda que brutalidade gráfica seja muito presente, Fulci consegue
preservar um teor muito original de suspense, principalmente pelo fato de que a
origem do horror vem de fontes incertas ou mal-explicadas (na verdade, para
Fulci explicações plausíveis para o mal constante que paira nas tramas de seus
filmes são completamente dispensáveis – o que vale é simplesmente a
consequência desse mal). Se para os apreciadores do horror asséptico das
franquias cinematográficas norte-americanas do gênero na atualidade assistir a “A
casa do cemitério “ pode ser uma experiência indigesta, para os demais
apreciadores do terror cinematográfico essa obra-prima de Fulci é um verdadeiro
prato-cheio estético/existencial.
sexta-feira, fevereiro 08, 2019
Assunto de família, de Hirokazu Kore-eda ***1/2
Em termos temáticos, o cinema do diretor Hirokazu Kore-eda
gira em torno das relações familiares. Sua abordagem artística-existencial,
contudo, não se vincula a fazer loas sobre tal matéria. Pelo contrário – os
conturbados relacionamentos entre pais, filhos e demais parentes servem como
uma espécie de reflexo das relações humanas em si no mundo contemporâneo. Nesse
sentido, “Assunto de família” (2018) é uma das obras mais agudas de Kore-eda. A
“família” que acolhe Yuri, uma pequena garota fugitiva de um lar de classe
média alta onde sofre maus-tratos, está mais para um grupo de deserdados que se
uniu quase que por caso fortuito. Ainda que a relação entre tais pessoas seja
marcada por uma certa fragilidade sócio-econômica, e que mesmo algumas delas
pratiquem pequenos crimes e contravenções para custear a sobrevivência, o
vínculo sentimental entre elas vai se mostrando cada vez mais pungente. A
mensagem do subtexto da trama é sutil e clara – em uma sociedade de consumo
marcada pela assepsia emocional e por valores mercantilistas, a instituição da
família biológica tradicional deixou de ser garantia de estabilidade emocional
para os seus membros. Mesmo que de maneira inconsciente, o novo agrupamento em
que Yuri se insere é marcado por uma espontaneidade e solidariedade que os
coloca em atitude de desafio perante o ordenamento social vigente. Por isso
mesmo, a harmonia “familiar” estabelecida entre eles é de existência precária e
previsivelmente se desfaz quando confrontada com a forças de segurança institucionais.
Na nova vida que cada um deles ganha dentro dos padrões oficializados, o afeto
e generosidade que recebem são falhos e insuficientes. Kore-eda concebe uma
narrativa serena e melancólica carregada de poesia visual para essa saga
intimista e fatalista, em um formalismo sóbrio que se revela sempre preciso
para a sutil e cortante carga dramática do roteiro.
quinta-feira, fevereiro 07, 2019
Praça pública, de Agnès Jaoui ***
A verborragia intensa e irônica sempre foi uma marca
característica de grande parte do cinema francês. Exemplo claro disso é a
filmografia da diretora Agnès Jaoui. Nas duas últimas décadas, ela construiu uma
sólida obra baseada na prolixidade de diálogos e em um senso cômico sutil e
afiado. “Praça pública” (2018) continua nessa levada e tem alguns momentos bem
interessantes, ainda que Jaoui nada inove no seu estilo e não tenha grandes
arroubos criativos estéticos. Seu roteiro parte de uma premissa temática bem
manjada, a de uma grande festa numa casa de campo que reúne personagens de todos
os tipos em que apresentam uma série de quiproquós e conflitos sociais e
sentimentais. Apesar de tal previsibilidade, Jaoui dirige com verve e
segurança, extraindo algumas ótimas performances de seu elenco e momentos
efetivamente bem engraçados. A narrativa tem uma dinâmica envolvente e faz com
que o subtexto da trama aflore com eficácia, principalmente no sentido de
ridicularizar uma classe média alta arrogante que se atribui uma importância
intelectual elevada quando na verdade se compraze em frivolidades até bem
mundanas. Mesmo o eterno conflito entre valores de direita e esquerda recebe um
tratamento engenhoso e lúcido. Ou seja, no conjunto geral, um belo panorama da
sociedade francesa contemporânea realizado com classe formal e temática acima
da média.
quarta-feira, fevereiro 06, 2019
Vidro, de M. Night Shyamalan ***1/2
Muito se falou que “Corpo fechado” (2000) seria a releitura
particular do diretor M. Night Shyamalan sobre a mitologia do super-herói,
ainda que o filme estivesse mais para um melodrama fantástico do que para o gênero
aventura. Já em “Fragmentado” (2017) essa recriação se evidenciava mais
palpável e convincente, principalmente porque os elementos do suspense e da
ação se mostravam bem mais presentes. “Vidro” (2019), conclusão da trilogia,
demonstra que a tal releitura finalmente se cristaliza da maneira mais
descabelada e vigorosa possível. É uma obra que se liga plenamente à linhagem
de aventura de super-herói, mas que também consegue trazer uma atmosfera muito
própria do melhor da filmografia de Shyamalan. Ao contrário daquela preservação
de conceitos de permanência e fidelidade a um determinado universo,
característico das versões para o cinema dos quadrinhos originais da Marvel e
DC, “Vidro” é bem mais radical em suas soluções estéticas e temáticas. O filme
aposta em um grafismo mais brutal e em uma ambientação marcada pelo sombrio e o
bizarro, além de uma encenação que sintetiza com notável fluidez o cartunesco
violento e a densidade psicológica/dramática. O roteiro é até marcado por
algumas inconsistências e mesmo por um confuso subtexto sócio-político, mas
sabe oferecer momentos de impacto para o espectador, principalmente no terço
final da narrativa, repleto de destruição, morte e alguns desenlaces
surpreendentes. O elenco entra de cabeça de no espírito algo maníaco do filme,
com destaque para as composições dramáticas exageradas de Samuel L. Jackson e
Sarah Paulson, o impressionante trabalho expressivo corporal de James McAvoy e
mesmo a altivez serena e melancólica Bruce Willis (aliás, mérito para Shyamalan
extrair uma interpretação decente de Willis depois de alguns anos de atuações
no piloto automático).
terça-feira, fevereiro 05, 2019
Temporada, de André Novais Oliveira ***1/2
Assim como em sua obra anterior, “Ela volta na quinta”
(2015), o diretor André Novais Oliveira volta o olhar da sua câmera para um
registro do cotidiano utilizando um estilo narrativo que evoca trejeitos
documentais em “Temporada” (2018). Apesar da aparente secura de tal abordagem,
aos poucos seu filme vai revelando uma subjetividade ímpar que envolve sutilmente
o espectador. Na história da protagonista Juliana (Grace Passô) que busca reiniciar
a vida em um emprego público de baixa remuneração e de contato diário com as
ruas da periferia da cidade mineira de Contagem há todos as durezas e privações
típicas do proletariado brasileiro no conturbado cenário sócio-econômico
brasileiro dos últimos anos (aliás, vale dizer de um proletariado que de
maneira regressiva vai ser convertendo em um precariado). Ainda assim, o
cineasta vai contaminando sua narrativa com um pungente viés intimista/humanista,
em que a rotina da personagem principal repleta de agruras também ganha uma
perspectiva otimista a partir de um rico panorama de conversas, camaradagens, flertes
e pequenas conquistas do dia-a-dia. Mesmo uma cidade aparentemente tão
desprovidas de encantos como Contagem por vezes ganha belos contornos
imagéticos (a sequência em que Juliana e um amigo conversam sentados diante de
um pequeno lago contaminado por esgoto, por exemplo, tem uma insólita dimensão
poética) – faz lembrar aquele inesquecível trecho de canção dos Racionais MC’s,
“até no lixão nasce flor”. Tais achados narrativos afloram a partir de uma
concepção artística/existencial rigorosa e coerente por parte de Novais
Oliveira, em que uma estética que sabe extrair rudeza e plasticidade nas
medidas certas de seus cenários convive com notável sintonia com um roteiro muito
bem delineado no desenvolvimento de seus personagens e situações.
segunda-feira, fevereiro 04, 2019
Asako I & II, de Ryusuke Hamaquchi ***
O melodrama é um gênero cinematográfico complicado. As
produções realizadas nesse estilo sempre andarão em uma fronteira tênue entre a
sobriedade narrativa e o novelesco “mexicano”. Essa linha divisória é frágil e fazer
com que um filme não descambe para o equívoco artístico exige um senso cênico e
textual marcado pela sutileza e precisão. E esse é justamente o caso do longa
japonês “Asako I & II” (2018). A história da protagonista-título que se
envolve em momentos diversos de sua vida com dois homens iguais fisicamente e
de personalidades opostas pode até aparentar em um primeiro momento um caráter
rocambolesco e exagerado digno dos romances água-com-açucar estilo “Sabrina”. A
concepção estética-temática do diretor Ryusuke Hamaquchi é decisiva para que essa
trama ganhe consistência e interesse. O fluxo da narrativa é sereno e
melancólico, valorizando detalhes visuais marcados pela simplicidade, fatos
banais do cotidiano, gestos e silêncios dos personagens e diálogos repletos de
pequenas nuances dramáticas, compondo um todo formal-existencial que seduz de
maneira quase imperceptível o espectador. Dentro de tal direcionamento artístico,
mesmo as situações de potencial mais exagerado do terço final da narrativa
acabam ganhando uma naturalidade desconcertante e bastante pungente.
sexta-feira, fevereiro 01, 2019
Green book - O guia, de Peter Farrelly **
É provável que vários textos críticos sobre “Green book – O guia”
(2018) tenham dito que o filme parece uma variação de “Conduzindo Miss Daisy”
(1989). E o caso é exatamente esse, só que a obra dirigida por Peter Farrelly é
bem menos inspirada que a produção oscarizada de Bruce Beresford. Enquanto essa
última era um melodrama marcado por uma sobriedade narrativa e mesmo uma leveza
na encenação e interpretação de seus protagonistas, o que fazia com que o seu subtexto
sobre racismo se mostrasse mais afiado, em “Green book” qualquer traço de
sutileza em termos formais e temáticos é suprimido em nome de uma abordagem
artística/existencial óbvia e equivocada. É o tipo de filme que não deixa o
espectador respirar ou pensar – há música melosa e ostensiva sublinhando todos
os momentos edificantes e a cada cinco minutos há um personagem discursando
sobre preconceito racial. A embalagem estética acaba sendo o complemento exato
diante dessa concepção narrativa-textual, com fotografia e direção de arte
marcadas por uma assepsia visual digna de cartão postal. Todas essas soluções
narrativas de Farrelly levam o seu filme para uma conclusão conciliatória de
caráter conservador e hipócrita, fazendo com que “Green book” se mostre bem
menos impactante e memorável do que outras obras lançadas em 2018 que trataram
de maneira mais contundente sobre a questão do racismo como “Infiltrado na Klan”
e “Roma”.
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