terça-feira, maio 31, 2016

Ponto zero, de José Pedro Goulart ***1/2

As ambições do diretor gaúcho José Pedro Goulart para “Ponto zero” (2015) são grandes – a obra é uma espécie de épico existencialista que faz o espectador entrar na mente de um confuso adolescente, além de estabelecer uma dissecação dos valores pequeno-burgueses não só de uma típica família classe média quanto da própria sociedade a qual ela pertence. Para isso, Goulart constrói uma narrativa carregada de pungência e simbologias clássicas, valendo-se de influências e referências diversas como o cinema metafísico de Andrei Tarkovski e os intrincados recursos estéticos de Terrence Malick, além de citações explícitas a “Taxi driver” (na sequência em que um motorista de ônibus tem um ataque de fúria verbal) e “Os incompreendidos” (nas longas tomadas em que o protagonista Ênio corre desesperado pelas ruas de Porto Alegre à noite). Tais elementos, entretanto, não reduzem “Ponto zero” a um mero acúmulo de truques alheios, pois Goulart consegue dar uma cara própria para a sua concepção artística e a coloca em prática com um apurado acabamento formal e narrativo e transbordando sensibilidade à flor-da-pele. Os conflitos da trama podem até parecer manjados em um primeiro momento – estão lá os típicos temas de histórias de famílias disfuncionais (discussões acaloradas entre marido e mulher, indiferença, alienação, adultério, incesto platônico). Tudo isso, entretanto, é esmiuçado com profundidade e de maneira visceral e pouco óbvia. O fato de que boa parte do que se vê na tela vem da perspectiva de Ênio (Sandro Aliprandini) faz com que a encenação ganhe um marcante caráter icônico, em que algumas situações do cotidiano que beiram o corriqueiro acabem ganhando uma dimensão grandiosa e trágica. Nesse sentido, é de se reparar como dentro de uma abordagem naturalista há nuances de delírios e onirismo que se encaixam com notável coerência. Na metade final de “Ponto Zero”, em que uma escapada noturna de Ênio pelo submundo da cidade resulta numa verdadeira descida ao inferno para o personagem, as aludidas características da narrativa se exasperam ainda mais, resultando tanto na expiação psicológica e moral do protagonista quanto numa contundente e ácida crítica aos mecanismos de estratificação social do mundo ocidental contemporâneo.

segunda-feira, maio 30, 2016

Através da sombra, de Walter Lima Jr. ***

O cinema do diretor brasileiro Walter Lima Jr. sempre foi marcado por um tom passadista, algo como um estilo que funde literatura, memorialismo e mesmo um anacronismo de estranho encanto. “Através das sombras” (2015) é um título bem sintomático do particular viés artístico do cineasta. Adaptando o clássico literário fantástico “A volta do parafuso”, escrito por Henry James, Lima Jr. situa a obra no interior de São Paulo do início do século XX, mas mantém a essência gótica do livro original. O filme trabalha com elementos narrativos tradicionais, como direção de arte requintada, sutil atmosfera de terror psicológico e atuações sóbrias do elenco. Por outro lado, tais aspectos formais e temáticos não conseguem formar um todo narrativo convincente no sentido de que a obra consiga produzir uma tensão efetiva capaz de gerar para o espectador aquela síntese entre atração e repulsa necessária para o gênero fantástico. Faltou uma pegada mais contundente e ousada, que fazia, por exemplo, com que “A ostra e o vento” (1997), extraordinária produção de cunho fantástico dirigida por Lima Jr., fosse uma obra tão memorável e perturbadora. Ainda assim, “Através da sombra” é um trabalho de peso no atual panorama do cinema nacional e mantém a coerência autoral de qualidade de seu diretor.

segunda-feira, maio 23, 2016

Truman, de Cesc Gay ***

É claro que existem razões aparentes que fazem com que “Truman” (2015) desperte algum ceticismo sobre suas qualidades. Afinal, a trama versa sobre dois amigos que se reencontram devido ao fato de que para um deles restam apenas alguns poucos meses de vida. Logo se pode pensar em vários momentos lacrimogêneos e edificantes, com direito a todos os truques de manipulação emocional habitualmente adotados por melodramas derramados. Ocorre, entretanto, que tais previsões pessimistas não se concretizam, pois há uma sobriedade formal e mesmo sentimental na condução narrativa efetivada pelo diretor espanhol Cesc Gay que faz com que o filme evite boa parte das soluções fáceis e formulaicas que esse tipo de produção poderia apresentar. Predomina uma atmosfera de melancolia resignada e mesmo discreta comicidade, além de uma elegância estética, sendo que esse tratamento artístico sereno faz com que a carga emocional afete de maneira muito mais eficaz e memorável o espectador. Nesse sentido, de se destacar pelos uma sequência antológica, aquela em que uma relação sexual serve para catarse para sentimentos de frustração e perda.

quinta-feira, maio 19, 2016

Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência, de Roy Andersson ***1/2

Numa primeira impressão, dá para dizer que “Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência” (2014) faz pensar num insólito cruzamento do rigor estético e cerebralismo de Ingmar Bergman com o gosto pelo surrealismo irônico de Luis Buñuel. Tal mistura pode parecer indigesta para os desavisados, mas o diretor sueco Roy Andersson consegue dar uma unidade formal e temática expressiva para o seu filme. Mesmo a estrutura narrativa, composta basicamente de episódios cômicos e/ou delirantes filmados em planos-sequência fixos, aparenta um certo tom aleatório. Aos poucos, entretanto, surge uma espécie de encadeamento existencial entre tais sketches, compondo uma obra de coerência artística notável. Andersson se livra sempre das facilidades emotivas e estéticas, primando de maneira constante pelo distanciamento sentimental, por uma composição cênica que se alterna habilmente entre a austeridade e o barroco e a atmosfera melancólica e sardônica. Nesses elementos narrativos, aflora uma particular visão humanista sobre a sociedade ocidental contemporânea, colocando Andersson num patamar autoral diferenciado no atual panorama cinematográfico.

segunda-feira, maio 16, 2016

O décimo homem, de Daniel Burman ***

Talvez a melhor palavra que possa definir “O décimo homem” (2015) seja ambiguidade. O filme começa em Nova Iorque, em ambientes assépticos e ordenados, com o protagonista Ariel (Alan Sabbagh) prestes a voltar ao seu pais natal, a Argentina, para o que seria uma breve visita. Quando chega em um caótico bairro popular em Buenos Aires, o mesmo local onde passou a infância e a adolescência, o personagem parece entrar em uma espécie de misto de pesadelo kafkaniano e viagem de volta ao passado. Cético e ateu, Ariel vai se enredando cada vez mais na rotina e no universo de indivíduos e situações  que cerca o seu pai, Usher, líder da comunidade judaica do bairro, onde é responsável por questões diversas como alimentação, saúde e ate mesmo a vida sentimental das pessoas. O caráter das ações das principais figuras da trama são sempre nebulosas, não se sabendo precisar o que é legitimo interesse altruísta ou mero interesse comercial. No final das contas, é como tudo se confundisse. E esse é um dos aspectos nos quais a ambigüidade de “O decimo homem” se manifesta. Num sentido geral, daria para dizer que a obra teria uma configuração de conto moral, a mostrar Ariel se obrigando a abrir os olhos para as sua raízes judaicas e para o seu dever junto ao seu povo. Há também, entretanto, uma estranha e sufocante atmosfera de pressão social sobre o protagonista, em que sua individualidade e razão vão sendo reprimidos por ortodoxias místicas e costumes tradicionais. Mesmo na conclusão do filme não fica claro do que se tratou efetivamente a jornada de Ariel. E provável que esse mistério seja um dos fatores que faz de “O décimo homem” uma experiência cinematográfica perturbadora e memorável.

sexta-feira, maio 13, 2016

A assassina, de Hou Hsiao-Hsine ****

O wuchia, espécie de junção dos gêneros aventuras e artes marciais repleto de trucagens para simular golpes e malabarismos que vão além do realismo, é um estilo cinematográfico característico da China e que nos últimos anos vem recebendo um tratamento formal e temático que o torne mais “artístico” e palatável para as plateias ocidentais. Dentro dessa abordagem, houve obras que se destacaram nesse revisionismo estético e se tornaram referências, como “O tigre e o dragão” (2000), “Herói” (2002) e “O clã das adagas voadoras” (2003). Se tais filmes mostraram uma grande profusão de coreografias espetaculares de lutas e tramas marcadas por um certo dramatismo mais derramado, “A assassina” (2015) trafega por caminhos diferenciados nessa releitura do wuchia. O diretor Hou Hsiao-Hsine adota uma abordagem mais sutil e reflexiva, em que as cenas de ação são mais econômicas na quantidade em que aparecem na trama, mas sempre com uma beleza plástica e violência gráfica memoráveis. Além disso, o cineasta valoriza bastante a atmosfera e a composição cênica das sequências intimistas. Nesse sentido, é de se reparar o uso frequente de planos-sequências fixos, com a câmera filmando sob véus ou pelas frestas de portas e janelas, dando ao filme um caráter entre o irreal e o onírico. Mesmo o roteiro apresenta detalhes insólitos, em que a trama repleta de intrigas de poder ganha uma conotação metafísica e repleta de simbolismos fascinantes. Todos esses detalhes narrativos fazem de “A assassina” uma obra de estranho encanto e que leva o wuchia por caminhos autorais bem distantes dos padrões habituais do cinema de ação contemporâneo.

quinta-feira, maio 12, 2016

Descompensada, de Judd Apatow ***

Amy Schumer é um dos nomes mais interessantes que despontaram nos últimos anos na comédia norte-americana. Seu programa para a televisão traz alguns sketches hilários na sua bem azeitada combinação de crônica comportamental, ironia ácida, grosseria e mesmo um pouco de escatologia, fazendo um retrato mordaz do universo feminino no século XXI. Um dos grandes méritos de “Descompensada” (2015), longa-metragem escrito e protagonizado por Schurmer, é justamente preservar a particular concepção artística da autora/atriz dentro de um tradicional modelo de comédia romântica. Não à toa, o diretor do filme é Judd Apatow, um dos diretores mais expressivos no gênero da atualidade, vide alguns trabalhos memoráveis como “O virgem de 40 anos” (2005) e “Tá rindo de quê?” (2008). O roteiro de “Descompensada” traz situações que permitem a Schurmer desfiar sua habitual verve cáustica sobre a superficialidade e inconstância das relações sentimentais contemporâneas, mas sem fazer com que tais momentos pareçam uma obra à parte dentro da trama principal do filme. Pelo contrário – tais sequências cômicas se encaixam com naturalidade dentro da estrutura de crônica familiar moral do filme. Nesse contexto, as soluções finais da história podem soar um tanto conservadoras para os padrões de Schurmer, mas ainda assim por vezes soam até efetivamente engraçadas. No mais, Apatow consegue extrair alguns desempenhos antológicos de seu elenco, com destaque para Tilda Swinton e a própria Schurmer.

quarta-feira, maio 11, 2016

Cordilheiras do mar: A fúria do fogo bárbaro, de Geneton Moraes Neto ***

Glauber Rocha não é exatamente uma unanimidade. Ainda que tenha vários apreciadores de seus filmes, há um número considerável de detratores que o consideram pretensiosa, chato e superestimado. No meio dessa divergência de opiniões, entretanto, é inegável que o cineasta baiano seja um dos nomes mais relevantes da história do cinema nacional, pelo menos em termos artísticos e existenciais. Isso fica evidente, por exemplo, nos vários documentários tendo ele como protagonista que foram lançados após a sua morte. “Cordilheiras do mar: A fúria do fogo bárbaro” (2014) é mais um exemplar dessa tendência, mas está longe de ser apenas mais um dentro dessa lista. Isso porque Glauber Rocha, além de cineasta personalíssimo, foi também pensador e orador brilhante, com visões e discursos versando com grande desenvoltura e conhecimento de causa sobre cinema, cultura e política. E é justamente nesse último ponto que se concentra o foco principal do documentário concebido por Geneton Moraes Neto. A produção dá vazão ao particular olhar de Glauber sobre o contexto histórico-político em que o Brasil estava inserido entre meados dos anos 70 e início dos anos 80, em pleno processo da “abertura gradual” promovida pelos generais Geisel e Golbery, mostrando ainda as duras consequências que ele sofreu ao emitir suas inesperadas declarações de simpatia às atitudes dos militares mencionados. A complexidade dessa situação é abordada com criatividade e sensibilidade por parte de Geneton, que combina de maneira eficiente depoimentos, imagens de arquivos e encenações vigorosas de textos de Glauber, fazendo com que o espectador seja jogado dentro do perturbador turbilhão de ideias e conceitos que era a mente do genial cineasta.

terça-feira, maio 10, 2016

O abutre, de Dan Gilroy ***

Num primeiro momento, “O abutre” (2014) pode gerar expectativas maiores a partir da temática que se delineia em suas sequências iniciais. Ao mostrar a ascensão do marginal psicótico Lou Bloom (Jake Gyllenhaal) como “repórter” de fatos a retratar um mundo cão, a trama evoca a questão da ética no jornalismo em tempos de acelerados avanços tecnológicos e a proliferação de sensacionalismo em programas televisivos. No desenvolver da narrativa, entretanto, essas boas expectativas acabam se frustrando devido à abordagem mais superficial do diretor Dan Gilroy. Dessa forma, talvez a melhor forma de encarar o filme seria a de um suspense tradicional. E nesse viés, até que a obra de Gilroy é bem eficiente, principalmente na construção de uma incômoda e constante atmosfera tensa e sombria e na caracterização forte e expressiva de Gyllenhaal. Ainda que as soluções finais do roteiro sejam previsíveis, é inegável que revelam uma perturbadora coerência e guardem um considerável impacto para o espectador.

segunda-feira, maio 09, 2016

Mr. Turner, de Mike Leigh ***1/2

O que se tem em “Mr. Turner” (2014) não é uma simples cinebiografia tradicional do pintor britânico J.M.W. Turner (Timothy Spall). Os caminhos narrativos adotados pelo diretor inglês Mike Leigh são bem mais profundos e inesperados. Ele se concentra nos anos finais da vida de seu protagonista, quando as idiossincrasias de seu comportamento e do seu cotidiano se acentuam. Os fatos atribulados de sua trajetória pessoal parecem se relacionar de forma intrincada com a sua própria arte, com Turner investindo numa série de pinturas perturbadoras, onde ele retrata obsessivamente sombrias paisagens marinhas tomadas por céus tempestuosos. A sensibilidade e o detalhismo imagético de seus quadros contrastam com uma personalidade difícil e nebulosa, por vezes beirando o brutal. Leigh consegue captar essa contradição existencial com notáveis complexidade e profundidade. Em termos formais, o cineasta obtém efeitos estéticos memoráveis, em que a direção de fotografia extrai uma composição visual que funde o registro visual naturalista com o pictórico das telas de Turner. No mais, destaca-se o habitual talento de Leigh na direção de elenco, evidente, principalmente, na composição dramática repleta de nuances de Timothy Spall.

sexta-feira, maio 06, 2016

O agente da U.N.C.L.E., de Guy Ritchie ***1/2

O diretor britânico Guy Ritchie parecia que tinha se tornado um diretor qualquer depois dos dois filmes de Sherlock Holmes “moderninho” que dirigiu e que se configuravam mais como veículo para o estrelismo autoindulgente de Robert Downey Jr. A impressão é que não havia mais rastro do talento que tinha gerado obras divertidas e casca-grossas como “Jogo, trapaças e dois canos fumegantes” (1998) e “Rock’n’rolla” (2008). Dessa forma, “O agente da U.N.C.L.E.” (2015) acaba sendo uma grata surpresa, revelando um cineasta que consegue recuperar sua veia autoral mesmo dentro da estrutura de uma produção de grande estúdio. Os típicos maneirismos de seus trabalhos iniciais são incorporados com naturalidade aos preceitos narrativos típicos do gênero aventura. Ao invés daquelas encenação e edição de estilo clipeiro de “Sherlock Holmes”, predomina um estilo que transita fluentemente entre o clássico e o renovado. Destacam-se uma direção de arte estilosa e retrô, cenas de ação coreografadas com detalhismo e desenvoltura, roteiro espirituoso que combina de maneira notável intriga e ironia, trilha sonora de canções e temas incidentais memoráveis e ótima direção de atores (canastrões como Henry Cavill e Armie Hammer se mostram expressivos e Alicia Vikander tem uma presença cênica encantadora). Agora é esperar que “O agente da U.N.C.L.E.” não represente apenas um eventual arroubo criativo de Ritchie e que ele mantenha esse padrão em futuras produções.

quinta-feira, maio 05, 2016

Capitão América: Guerra civil, de Anthony e Joe Russo ***

Há problemas que vêm se tornando recorrente em algumas produções dos estúdios da Marvel: o excesso de situações e diálogos inúteis na trama, abordagem melodramática em demasia de determinadas passagens, falta de foco e consistência no roteiro, intepretações over de parte do elenco. Tais equívocos voltam a aparecer em “Capitão América: Guerra civil” (2016) e por vezes quase fazem sucumbir a narrativa. Duas horas e meia de duração podem fazer pressupor que haverá uma composição dramática mais cuidadosa de personagens e situações, mas não é o que acontece. As interessantes nuances políticas e psicológicas da minissérie original “Guerra civil” feita para as HQs são suprimidas em nome de uma simplificação exagerada e pouco convincente. Isso fica evidente principalmente nas sequências finais, quando se fica sabendo das pueris motivações do vilão Barão Zemo (Daniel Brühl) – aliás, até dá para entender que nem tudo o que acontece no universo Marvel no cinema é igual ao que está nas HQs, mas transformar um dos principais antagonistas do Capitão nos quadrinhos em uma figura tão insípida chega a beirar uma heresia desnecessária e brochante. Com todos esses defeitos e mesmo com o fato de ser bem inferior na comparação com “O primeiro vingador” (2011) e “O soldado universal” (2014), “Capitão América: Guerra civil” ainda se mostra como um filme de super-heróis bem divertido. A dupla de cineastas Anthony e Joe Russo tem mão ótima para cenas de ação, promovendo algumas cenas de perseguições e pancadarias bem memoráveis. O conflito de heróis no hangar de aviões e o duelo final entre o Capitão e o Homem de ferro certamente podem entrar numa antologia de grandes momentos da Marvel nos cinemas. Além disso, alguns personagens recebem caracterizações carismáticas e bastante fiéis aos originais dos “comics”, a começar pelo próprio Capitão América (Chris Evans), cada vez mais icônico e imponente, além de Pantera negra (Chadwick Boseman), Homem formiga (Paul Rudd) e Homem-aranha (Tom Holland). Esse último, por sinal, consegue deixar ótimas expectativas para um novo filme do aracnídeo.

quarta-feira, maio 04, 2016

Fique comigo, de Samuel Benchetrit ***

O diretor francês Samuel Benchetrit consegue enquadrar “Fique comigo” (2015) dentro de uma síntese insólita que combina abordagem naturalista, realismo fantástico e comicidade agridoce. Ainda que não exatamente arrebatador, o resultado final dessa proposta é uma narrativa envolvente e que por vezes consegue surpreender o espectador por algumas inusitadas soluções de roteiro e formais. Dentro desse particular universo da obra, cabem elementos diversos que se relacionam de forma natural e convincente – a ambientação desoladora de um prédio residencial decadente, o pouso de emergência de um astronauta no condomínio em questão, o solteirão desempregado com problemas de socialização que mente que é fotógrafo internacional para uma enfermeira por quem é apaixonado, a relação inesperada entre um adolescente levemente desajustado com uma atriz decadente e deprimida. A atmosfera do filme é algo entre o bizarro e o discreto tom de conto moral, e que é bem sublinhada pelo formalismo sutil da obra. Valoriza ainda mais “Fique comigo” as delicadas composições dramáticas de Isabelle Huppert, Valeria Bruni Tedeschi e Gustave Kervem.

terça-feira, maio 03, 2016

O que eu fiz para merecer isso?, de Patrice Leconte **1/2

Por ser o realizador de obras memoráveis como “Os bronzeados” (1978) e “O marido da cabelereira” (1990), o francês Patrice Leconte é aquele tipo de diretor do qual sempre se guarda uma certa expectativa positiva. “O que eu fiz para merecer isso?” (2014), seu filme mais recente, entretanto, acaba não justificando essa espera. Não chega a ser ruim e por vezes até é divertido e agradável. Só que a premissa de seu roteiro exigia uma pegada artística bem mais consistente, coisa, aliás, que se sabe que Leconte seria capaz. Há elementos na trama que sugerem uma visão aguda da condição humana na sociedade contemporânea. A história do pequeno-burguês que encontra um disco raro num sebo e ao levá-lo para casa não consegue ouvir para uma série de intervenções externas (a esposa adúltera arrependida, o filho desajustado, a amante disposta a contar tudo para a sua família, os vizinhos que querem realizar uma festa de confraternização, o trabalhador informal que estraga o encanamento do apartamento) traz em seu subtexto um conteúdo existencial inquietante, a do homem moderno cada vez mais afundado em egocentrismo que beira a misantropia e a misoginia. A estrutura narrativa remete a uma origem teatral, o que mostra a tendência da obra para uma espécie de síntese entre realismo e absurdo. Ocorre que Leconte parece se conformar com clichês típicos de uma comédia de erros qualquer, o que faz com que o filme nunca realmente explore as suas possibilidades criativas de maneira satisfatória. Tanto que a melhor sequência da produção é a final, quando o protagonista Michel (Christian Clavier) só consegue ouvir o seu disco quando vai escutá-lo junto ao seu pai em uma clínica de repouso, sugerindo uma psicologia obscura e atávica de seus sentimentos e atos.

segunda-feira, maio 02, 2016

O preço da fama, de Xavier Breauvois ***

É perceptível na narrativa de “O preço da fama” (2013) uma sutil abordagem conceitual por parte do diretor Xavier Beauvois. Ao contar a história baseada em fatos reais de dois pés-rapados que roubaram o corpo de Charlie Chaplin poucos dias depois de seu enterro, o filme se utiliza de alguns maneirismos formais e temáticos que aludem ao universo artístico do próprio Chaplin. Além de serem inseridas na obra alguns trechos antológicos de clássicas produções estreladas pelo “Carlitos”, algumas sequências da produção evocam uma atmosfera melancólica e anacrônica típica dos melhores trabalhos de Chaplin, podendo-se perceber também sutis questionamentos sociais que por vezes o roteiro evoca. Nesse sentido, não é à toa que parte da ação se desenrola em um circo, com atenção especial para números ingênuos de palhaços. Essa ambientação nostálgica e engajada do filme revela uma conexão existencial e artística ainda com uma certa tradição da comédia italiana, principalmente referente a alguns exemplares emblemáticos dirigidos por Mario Monicelli. Talvez essa utilização de referências e citações passadistas possa parecer ter um teor datado em um primeiro momento, mas com o desenrolar da narrativa acaba revelando um caráter desafiador diante de uma sociedade contemporânea marcada pela assepsia cultural apelidada de “bom gosto” e pelo mercantilismo barato disfarçado de modernidade.