Talvez em tempos mais tranquilos e
menos brutalizados, um filme como “Abaixo a gravidade” (2019) poderia ser analisado
como uma obra a versar com melancolia e ironia, além de um viés surrealista,
sobre a velhice, em que a conexão com o filme mais celebrado de seu diretor, “Superoutro”
(1989), está justamente no contraponto em que este último representaria uma
explosiva manifestação estética e existencial enquanto que no longa mais
recente esse caráter de intensa anarquia artística foi filtrado por um olhar
mais sereno (ainda que igualmente desconcertante). Mas já que “Abaixo a
gravidade” foi lançado em meados de 2019, com o país dominado pelo designíos de
uma besta-fera e seus fervorosos admiradores/defensores, o trabalho de Navarro
ganho uma conotação ainda mais ampla e desafiadora. A trajetória do idoso Bené
(Everaldo Pontes) em busca de algum sentido em sua vida em meio a um caos
social e à indiferença de boa parte da sociedade se enquadra em uma narrativa
libertária e a um roteiro repleta de bizarras e poéticas simbologias. Bené busca
para sua vida uma síntese de paz interior, justiça social e possibilidade de extravasar
sua sexualidade e acaba esbarrando em mundo cada vez mais neurótico e desigual.
Na condução dessa pequena saga intimista, Navarro insere elementos de ficção
científica e algo de nonsense, sem nunca perder, entretanto, a coesão de
encenação e narrativa. Assim, aquilo que se inicia com uma abordagem realista
ao poucos se manifesta tanto como sombria fábula quanto como onirismo
encantador.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
segunda-feira, agosto 26, 2019
quinta-feira, agosto 08, 2019
Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes ****
Pode-se dizer que “Estou me guardando para quando o carnaval
chegar” (2019) tem como produção gêmea em termos artísticos/existenciais outra
obra expressiva do cinema nacional recente, a obra-prima “Arábia” (2017). Em
ambos os filmes, há uma visão humanista crítica e sutil sobre o “progresso”
sócio-econômico no Brasil deste século (e mesmo milênio) dentro de estruturas
estéticas-formais em que gêneros cinematográficos tradicionais são pervertidos
com elementos narrativos insólitos. No caso do documentário de Marcelo Gomes,
uma obra que a princípio poderia parecer uma investigação beirando o
jornalístico-histórico sobre uma cidade do interior pernambucano aos poucos se
converte em um amargo e irônico ensaio sensorial sobre os descaminhos da
sociedade capitalista contemporânea, com direito ainda a um certo viés
intimista/memorialista. O resultado final é desconcertante, principalmente no
confronto que se estabelece na visão de Gomes entre um passado idealizado e
mais humanizado e um presente marcado pela opressão mal disfarçada da busca
arrivista e incessante de ascensão sócio-econômica que automatiza e brutaliza
as individualidades. Entre os registros secos do cotidiano de trabalho manual e
mecânico constante e dos depoimentos entusiasmados daqueles que “venceram” na
vida, são inseridos na narrativa trechos reveladores de um atávico caráter
desafiador e malandro de parte dessas pessoas que ainda resistem, mesmo sem
saber, em se deixar suplantar totalmente por essa lógica conformista do “trabalho
dignificante”. Nesse sentido, o terço final da narrativa, quando a população de
Toritama desarma o seu conservador discurso “pró-trabalho eterno” e se rende a
alguns dias de diversão inconsequente no carnaval, é revelador dessa condição
de rebeldia e contestação quase involuntária que marca tanto o filme de Gomes
quanto a própria natureza de parcela do povo brasileiro.
quarta-feira, agosto 07, 2019
The mongolian connection, de Drew Thomas ***
Dentro dos cada vez mais restritivos (e obscuros) critérios
de escolhas do mercado de distribuição de filmes no Brasil, talvez o destino de
“The mongolian connection” (2019) fosse o de ser exibido por aqui em algum
serviço de streaming e olhe lá (até porque nem em DVD mais esse tipo de filme
tem chegado por aqui – afinal, ainda existe locadora disso?). Graças ao
FANTASPOA, entretanto, o espectador porto-alegrense teve a chance de ver essa
produção policial norte-americana independente na tela grande. Não há nada de
particularmente original no filme, mas é uma reciclagem bem eficaz e divertida
de clichês do gênero. As coreografias de tiroteios, porradarias e perseguições
automobilísticas são bem-feitas, encenação e caracterizações garantem alguma
densidade dramática e o roteiro até oferece exotismo ao situar grande parte da
ação na Mongólia. Ou seja, o diretor Drew Thomas pode estar distante de ser um
Michael Mann, mas pelo menos entrega um filme policial bem decente e que
sustenta o interesse do espectador por uma hora e meia. O que não deixa de ser
um feito.
segunda-feira, agosto 05, 2019
Deodato Holocaust, de Felipe Guerra ***
Quem acompanha o trabalho de Felipe Guerra sabe que ele,
além de cineasta, é um misto de admirador, incentivador e estudioso do gênero
fantástico no cinema, indo de clássicos do estilo até as mais excêntricas
obscuridades e tranqueiras do gênero. Assim, um filme como o documentário “Deodato
Holocaust” (2019) serve não apenas como uma interessante amostragem da carreira
artística do cineasta italiano Ruggero Deodato como também evidencia essas
diferentes facetas do próprio Guerra. A escolha narrativa de priorizar como fio
condutor um longo depoimento de seu protagonista é arriscada, pois poderia
fazer com que o longa tivesse um caráter estritamente histórico e jornalístico.
Guerra evita que seu filme caia nessa armadilha ao usar uma edição que sabe
conciliar com uma dinâmica inteligente trechos com declarações contundentes de
Deodato e expressivas imagens de arquivos e dos filmes mencionados pelo
diretor. Além disso, a entrevista ainda consegue evitar a simples enumeração de
fatos e datas, fazendo com que seu protagonista profira declarações que variam
entre confissões existenciais e artísticas e um misto de ironia e desafio na
forma com que Deodato enfrenta os pontos mais polêmicos levantados nas
perguntas feitas por Guerra e equipe (principalmente no que diz respeito à toda
controvérsia que envolveu a realização e lançamento de “Canibal holocausto”). E
no que era para ser um simples documentário biográfico de um diretor, a obra
destaca de maneira sutil um subtexto que faz o retrato de uma geração de
artistas que desenvolveram seus trabalhos dentro dos ditames comerciais e
estéticos da época (anos 60 e 70 e primeira metade dos 80), mas que preservaram
um senso artístico particular, herdeiro da influência de alguns mestres que os
antecederam e com quem até mesmo trabalharam (Dario Argento, Mario Bava e
Deodato foram colaboradores, respectivamente, de Sergio Leone, Federico Fellini
e Roberto Rossellini).
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