Dá para dizer que “Linha de ação” (2013) é uma tentativa de
modernização de cinema noir. Tirando o fato da produção ser colorida, está lá
boa parte dos preceitos narrativos e temáticos que marcaram alguns dos
principais clássicos policiais sombrios dos anos 40 e 50. Mas como foi dito no
início desse texto, o filme do diretor Allen Hughes é apenas uma tentativa, e
bem insatisfatória por sinal. Ao invés de realizar uma recriação autoral como, por
exemplo, Roman Polanski e os irmãos Coen fizeram, respectivamente, nos
brilhantes “Chinatown” (1974) e “O homen que não estava lá” (2001), Hughes se
contentou apenas em ficar acumulando de forma mecânica e pouco inspirada
clichês formais e textuais, tendo como resultado final uma obra
despersonalizada e asséptica.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, fevereiro 28, 2018
terça-feira, fevereiro 27, 2018
Lady Bird - A hora de voar, de Greta Gerwig **1/2
Em um primeiro momento, é fácil simpatizar com “Lady Bird –
A hora de voar” (2017). A trama do filme se estrutura como um “romance de
formação”, mostrando fatos da adolescência da rebelde Christine McPherson
(Saoirse Ronan) que acabam criando algum vínculo de empatia com a plateia no
sentido de identificação. Alguns desses episódios de equívocos e revoltas
juvenis são engraçados, levantando um certo tom de contestação sócio-cultural
por parte da protagonista diante do caretismo de sua escola católica e dos
costumes provincianos da cidadezinha interiorana onde vive. Além disso, o
elenco apresenta algumas atuações carismáticas, principalmente por parte da ala
feminina. Assim como é fácil de assistir ao filme da diretora Greta Gerwig, entretanto,
também é fácil de esquecê-lo. Parece que a preocupação no registro das
banalidades do cotidiano acabou contaminando a abordagem narrativa e formal da
obra – é tudo tão quadradinho e esquemático na forma com que as coisas se
desenrolam na tela que por vezes a produção cai no enfadonho. A impressão
constante é de que já vimos esse filme várias vezes, e que em algumas outras
oportunidades ele era bem melhor. E mesmo o roteiro, que talvez devesse ser o
principal trunfo de “Lady Bird”, vai se revelando ao longo da narrativa cada
vez mais previsível e conservador, vide a conclusão moralista que exalta os
valores familiares e católicos que marcaram a juventude da personagem
principal, os mesmos que a reprimiram por boa parte nessa etapa de sua vida.
segunda-feira, fevereiro 26, 2018
Trama fantasma, de Paul Thomas Anderson ****
A música composta por Jonny Greenwood para a trilha sonora
de “Trama fantasma” (2017) é o perfeito reflexo do que é a própria concepção
estética-existencial do filme dirigido por Paul Thomas Anderson – nos primeiros
momentos da narrativa, os temas incidentais são solenes, requintados, de doces
melodias que evocam algo de tradicional. Aos poucos e de maneira sutil, a
música vai ganhando uma conotação mais dissonante, por vezes estridente, quase
maníaca. Pois o filme de Anderson é justamente isso. Se em seus momentos
iniciais a obra sugere algo de um convencional drama de época, de requintado acabamento
formal, aos poucos essa impressão vai se dissipando e a narrativa se converte
em um conto gótico repleto de insólito humor negro e uma perturbadora carga de simbologia
psicanalítica dotada de perversidade e toques incestuosos. A precisa encenação,
a edição que alterna de maneira desconcertante tanto planos temporais quanto de
realidade e a direção de fotografia de pictórica textura de imagens e enquadramentos
repletos de nuances imagéticas não se configuram apenas em meros detalhes de
virtuosismo técnico, mas também dão um vigoroso sentido de atmosfera dramática
e ambientação algo delirante para o complexo roteiro que alterna irônicos exageros
românticos, metáforas edipianas e uma delicada construção psicológica de
personagens. Nesse último aspecto, dá para dizer que Daniel Day-Lewis capta o
espírito da obra com perfeição no papel do protagonista Reynolds Woodcock,
oscilando com naturalidade perturbadora um lado sedutor e sofisticado e outro
marcado por um comportamento patético beirando o francamente ridículo. E a
composição dramática de Vicky Krieps é um notável achado, em uma caracterização
que vai do inocente e etéreo até o deliciosamente maquiavélico.
sexta-feira, fevereiro 23, 2018
Gatinhas e gatões, de John Hughes ****
“Curtindo a vida adoidado” (1986) pode ser o mais famoso e “O
clube dos cinco” (1985) tem uma maior densidade dramática, mas “Gatinhas e
gatões” (1984) é o filme que representa a quintessência do particular estilo de
filmar do cineasta norte-americano John Hughes. Nessa obra de estreia como
diretor, pode-se perceber uma certa crueza formal típica de um filme de início
de carreira e é justamente aí que reside um dos grandes charmes artísticos da
produção. Hughes sempre preserva no filme um forte e compacto senso de
narrativa, em que nenhuma cena ou diálogo se revelam supérfluos. Há um forte
aspecto na obra do gênero comédia física, vide as sequências antológicas de
festinhas juvenis de arromba ou as engraçadas e histriônicas cenas com o nerd
metido a conquistador interpretado por Anthony Michael Hall. Nesse tipo de
abordagem, o filme faz lembrar uma de suas prováveis grandes fontes de
inspiração, a obra-prima “O clube dos cafajestes” (1978). Esse lado de comédia
de pastelão convive em notável harmonia com um dos traços mais característicos
da filmografia de Hughes que é aquela síntese narrativa-existencial de afiados
diálogos bem-humorados, atmosfera de sóbrio romantismo e subtexto de sutil teor
de análise comportamental de uma juventude entre a ingenuidade e a malícia. O
diretor recorre a pequenos truques estéticos e temáticos que podem até soar
baratos em um primeiro momento, mas que dentro de uma encenação tão enxuta e
fluente se revelam genialmente eficazes. Nesse contexto, Hughes consegue
extrair de maneira natural interpretações memoráveis mesmo do exagerado Hall e
do canastrão Michael Schoeffling, além de fazer de Molly Ringwald uma
protagonista de magnética presença cênica. Mais que mero exercício de nostalgia
oitentista, assistir à “Gatinhas e gatões” é uma verdadeira aula de narrativa e
linguagem cinematográficas.
quinta-feira, fevereiro 22, 2018
Simon assassino, de Antonio Campos ***
No gênero suspense, a força narrativa capaz de intrigar e
envolver o espectador está justamente naquilo que não se mostra em cena e que
nunca está suficiente claro na trama. Esse princípio é seguido de maneira bastante
eficaz pelo diretor Antonio Campos em “Simon assassino” (2018). Durante todo o
filme as motivações e intenções do protagonista Simon (Brady Corbet) são
marcadas por um caráter difuso. Pelo roteiro, são jogados alguns poucos
elementos de certeza sobre o personagem – sabe-se que é um jovem
norte-americano recém-saído da faculdade que foi passar um tempo em Paris, com
a ajuda financeira da mãe e que teve um final de relacionamento bastante
conturbado com uma ex-namorada. E se tem conhecimento também que o sujeito é um
tremendo mentiroso. A partir disso, os fatos se sucedem dentro de uma atmosfera
de forte tensão e de uma encenação repleta de expressivas nuances dramáticas,
em que a mitomania do personagem principal vai criando situações sem saída
tanto para ele quando para outros indivíduos que aparecem pelo seu caminho. A
narrativa varia com naturalidade entre ambientações que vão do sensual ao
sórdido. Nesse sentido, a Paris noturna é o cenário ideal para essa história
marcada por golpes, sexo e violência, indo de sequências de luminosidade
ofuscante até outras marcadas por um tom sombrio decadente.
quarta-feira, fevereiro 21, 2018
Pantera Negra, de Ryan Coogler ***
Os méritos de “Pantera Negra” (2018) vão muito além do
meramente politicamente correto. As nuances culturais e existenciais de fazer grande
parte da ação se situar em um fictício país africano não se limitam ao simples
exotismo, com o roteiro sabendo explorar com sensibilidade alguns dilemas e
contradições inerentes a esse contexto local e histórico e os inserir com
razoável coerência dentro da ambientação típica de uma produção de aventura.
Mais que isso: o discurso conciliatório que fica claro no subtexto da trama se
mostra em sintonia com a visão política-existencial sugerida em grande parte
das obras que saíram dos estúdios Marvel, ou seja, a de que por mais injusto ou
mesmo corrupto que seja o status quo ocidental, o primordial é sempre manter a
ordem ao invés de recorrer a radicalismos ou a ações criminosas. Em termos
estéticos e narrativo, a produção dirigida por Ryan Coogler também não foge do
padrão estabelecido nos demais filmes dos estúdios Marvel, sendo que por vezes
algumas sequências de ação parecem reciclar tomadas parecidas de outras obras “marvetes”.
Ainda que tal recriação seja feita com competência, causa uma certa frustração
que “Pantera Negra” não apresente os mesmos graus de ousadia e criatividade
artísticas que foram a tônica em “Thor: Ragnarok” (2017). Ainda assim, é um
trabalho bem divertido e envolvente em termos de dinâmica narrativa, tem seus
momentos memoráveis e o elenco evidencia algumas composições dramáticas
carismáticas (o vilão interpretado por Michael B. Jordan, especialmente, é um
dos melhores dentro desse universo cinematográfico da Marvel). Para aqueles que
ainda podem achar pouco tudo isso, é bom lembrar que “Pantera Negra” é léguas
de distância melhor que porcarias como “Esquadrão Suicida” (2016), “Batman vs.
Superman: A origem da justiça” (2016) e “Liga da Justiça” (2017) oriundas da
parceria DC/Warner.
terça-feira, fevereiro 20, 2018
Três anúncios para um crime, de Martin McDonagh ***
Uma coisa fica muito evidente ao se assistir a “Três
anúncios para um crime” (2017) – o diretor Martin McDonagh deve gostar muito da
filmografia dos irmãos Coen. Seu filme junta dois aspectos recorrentes na obra
dos Coen: o gosto pela recriação dos preceitos narrativos de faroestes
clássicos (“Onde os fracos não têm vez”, “Bravura indômita”) e roteiro repleto
de elementos de humor negro (“Fargo”, “Queime depois de ler”). A presença como
protagonista de Frances McDormand, atriz que já colaborou diversas vezes com os
Coen, acentua essa impressão. O problema é que a sombra dessa influência
escancarada por vezes acaba atrapalhando pela questão de comparações
inevitáveis que acabam aparecendo. Nessa perspectiva, a produção dirigida por
McDonagh está bem longe da classe estética e das tramas bem lapidadas do melhor
que os célebres irmãos já fizeram em sua carreira. Ainda assim, “Três anúncios
para um crime” é uma obra que tem os seus méritos. Sua narrativa tem um ritmo
envolvente, além da encenação conciliar por vezes com bastante eficácia
tragédia e comédia, resultando em algumas sequências efetivamente muito
engraçadas. A direção de fotografia tem um talhe clássico, fazendo com que
algumas cenas a mostrar cenários pitorescos de cidadezinhas interioranas, bares
de beira-de-estrada e ambientações rurais de grandes campos abertos evoquem uma
homenagem estilizada a alguns dos principais filmes de John Ford e de outros
mestres do western. McDormand e Woody Harrelson apresentam seguras composições
dramáticas, e mesmo a atuação caricatural de Sam Rockwell revela algumas
nuances inspiradas. O roteiro cai em algumas simplificações e incongruências
excessivas, mas tem o seu lado instigante ao evidenciar um caráter fortemente
simbólicos das contradições e dilemas sócio-políticos que marcam o panorama
contemporâneo da sociedade norte-americana, principalmente no que diz respeito
ao questionamento de opressivos valores patriarcais e preconceito raciais.
segunda-feira, fevereiro 19, 2018
Antes do fim, de Cristiano Burlan ***1/2
Se em “Fome” (2015), o anterior longa-metragem da parceria
entre o diretor Cristiano Burlan e o crítico/roteirista/ator Jean- Claude
Bernardet, evidenciava uma intrigante síntese entre ficção e elementos “reais”,
em “Antes do fim” (2017) a particular concepção artística engendrada pela dupla
se torna ainda mais ampla e complexa. Há algo que se pode definir como um fio
de história, em que um homem idoso (Bernardet) procura convencer sua parceira
(Helena Ignez) a praticar um suicídio duplo. A partir dessa trama, Burlan
articula uma narrativa que joga na tela uma série de obsessões estéticas e
existenciais tanto suas quanto de Bernardet e Ignez. E o que no início aparenta
um certo tom aleatório e instintivo na forma com que as cenas se sucedem e
encaixam, aos poucos vai revelando um insólito rigor conceitual e formal.
Técnicas documentais são incorporadas no ficcional, formando uma narrativa
híbrida de desconcertante coerência. Na narrativa, há trechos fílmicos de uma
Helena no auge da juventude e beleza em plena ação dentro do cinema
underground, passagens de marcação teatral, monólogos de Bernardet filosofando
ou interpretando (ou as duas coisas ao mesmo tempo) com sedutora naturalidade,
conversas entre o casual e o estilizado de forte teor humanista e libertário entre
o casal protagonista, algumas sequências de balé de delicada desenvoltura, carinhosos
exercícios de estilos cinematográficos remetendo ao cinema mudo, além de um
notável senso plástico da direção de fotografia. No conjunto geral, uma
memorável viagem sensorial.
sexta-feira, fevereiro 16, 2018
Branco como a neve, de Cristophe Blanc **1/2
Nomes atrativos em seu elenco como François Cluzet e Olivier
Gourmet podem fazer com que as expectativas em relação ao policial “Branco como
a neve” (2010) sejam altas. E mesmo os primeiros movimentos da trama, sugerindo
um cruzamento entre irônico comentário sócio-comportamental e suspense, sugerem
algo de promissor. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, o que prevalece
mesmo no filme do diretor Christophe Blanc é uma pálida reciclagem de produções
clássicas norte-americanas no gênero, principalmente de alguns filmes dos
irmãos Coen. Não chega a ser exatamente ruim, mas também está bem longe de se poder
considerar um trabalho memorável.
quinta-feira, fevereiro 15, 2018
O destino de uma nação, de Joe Wright ***
Gary Oldman se tornou conhecido inicialmente em sua carreira
como ator interpretando duas figuras reais em cinebiografias: o mártir do punk
rock Sid Vicious em “Sid & Nancy” (1986) e o libertário dramaturgo
homossexual Joe Morton em “O amor não tem sexo” (1987). Não deixa de ser
curioso, e também bastante sintomático, que agora esteja muito bem cotado para
ganhar um Oscar interpretando outro personagem histórico, só que bem mais “respeitável”,
o estadista britânico Winston Churchill. Em “O destino de uma nação” (2017), a
parte mais significativa da narrativa se concentra justamente na atuação de
Oldman. Ainda assim, não dá para dizer que o ator carrega o filme nas costas e
nem que essa produção caia na vala comum de obras academicistas a versarem
sobre grandes episódios históricos. O diretor Joe Wright consegue impregnar no
seu trabalho algum traço artístico mais distinto e mesmo com um certo caráter
insólito em sua abordagem estética. A ação se concentra basicamente em austeros
espaços fechados – o palácio real, a mansão do protagonista, o parlamento, o
bunker onde traça estratégias e decisões relativas à entrada, ou não, da
Inglaterra na Segunda Guerra. Assim, predomina no filme uma atmosfera
claustrofóbica, opressiva, com uma encenação que por vezes parece remeter ao
teatral. Tal opção narrativa de Wright não é gratuita, pois o subtexto do
roteiro tem como uma de suas sutis diretrizes a exposição dos mecanismos de
poder na política, principalmente no que diz respeito a uma alienação daqueles
que detém o poder perante os reais desejos e necessidades daqueles que governam.
Desse modo, o filme incorpora os discursos de Churchill na narrativa com
naturalidade e coerência, oferecendo uma efetiva ideia do forte conteúdo
humanista de tais textos. É claro que por vezes “O destino de uma nação”
resvala em um certo ufanismo ingênuo ou na grandiloquência sentimental
inerentes a esse tipo de obra. Mesmo assim, não cai no superficialismo vazio de
“The post” (2017) e consegue apresentar alguns momentos memoráveis capazes de
se fixar no imaginário do espectador.
quarta-feira, fevereiro 14, 2018
Sem amor, de Andrey Zvyagintsev **1/2
Em “Leviatã” (2014), o diretor russo Andrey Zvyagintsev
mostrava a desintegração existencial de seu país através de uma história
envolvendo o massacre econômico e moral de um indivíduo promovido por poderosos
grupos financeiros em uma aldeia. “Sem amor” (2017), obra mais recente do
cineasta, dá prosseguimento nessa dissecação da Mãe Rússia diante da realidade
de capitalismo selvagem após o fim da era do socialismo soviético, só que agora
tendo como história principal o processo de desagregação de uma família que
culmina no desaparecimento do filho adolescente. Na teoria, essa ideia de
subtexto em que intimismo e política se confundem é interessante e até bastante
pertinente, isso sem contar que a rigorosa abordagem estética habitual de
Zvyagintsev impediria que o filme caísse no mero sentimentalismo. Na prática,
contudo, as coisas desandam de maneira fragorosa em “Sem amor”. Em sua crítica
aos hábitos consumistas e desumanizados da sociedade russa contemporânea, a
produção investe em truques narrativos e textuais que cansam pela repetição e
obviedade, além de evidenciar um roteiro que peca por uma lógica moralista
simplória. É de se reparar, por exemplo, que logo após duas sequências de sexo
extraconjugal envolvendo o casal de protagonista, em encenações que beira a
estilização, é que ocorre o fato principal da trama, ou seja, o desaparecimento
do garoto Alyosha (Matvey Novikov). Não que a elaboração de uma narrativa em
formato de conto moral seja um pecado imperdoável – diretores extraordinários
como Eric Rohmer e Robert Bresson criaram obras-primas enveredando por esse
tipo de narrativa. O problema é que as soluções formais e de roteiros
encontradas por Zvyagintsev redundam em um resultado final marcado pelo enfado
e pelo banal.
quinta-feira, fevereiro 08, 2018
Sonata de Tóquio, de Kiyoshi Kurosawa ***1/2
O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa é mais conhecido por
atuar dentro do gênero fantástico. Dessa forma, pode causar um certo
estranhamente ao vê-lo enveredar pelo melodrama familiar em “Sonata de Tóquio”
(2008). Com o desenrolar da narrativa do filme, entretanto, pode-se perceber
que a sua habitual abordagem artística está ali presente, ainda que em outro
contexto. Em uma trama que tem como premissa principal a desagregação
psicológica-moral de uma família de classe média a partir da demissão e longo período
de desemprego do pai, o cineasta constrói uma obra de sombria atmosfera e de
encenação repleta de sóbrias nuances dramáticas. De certa forma, é como se
Kurosawa reconstruísse o universo estético e temático das principais produções
dirigidas por Yasujiro Ozu, sempre centralizadas em famílias disfuncionais, sob
um prisma mais sinistro e pessimista, em que atitudes e gestos dos personagens
e a caracterização de situações do roteiro evocassem um caráter insólito e
tenebroso. O cineasta deixa claro que a crueldade da realidade sócio-econômica
da sociedade capitalista e seu consequente vazio existencial é mais apavorante
do que qualquer monstro repulsivo ou outro elemento de terror sobrenatural.
quarta-feira, fevereiro 07, 2018
Inspetor Lavardin, de Claude Chabrol ***
Boa parte de diretores e críticos de cinema franceses sempre
dedicou um carinho especial para o mestre do suspense Alfred Hitchcock. Se
François Truffaut se notabilizou por incensar o cineasta inglês em artigos e
até mesmo em um célebre livro de entrevistas, Claude Chabrol preferiu dedicar
uma fatia considerável de sua filmografia a uma recriação muito particular dos
maneirismos narrativos e temáticos de Hitchcock. “Inspetor Lavardin” (1986) é
um exemplar evidente dessa tendência do diretor francês. A trama do filme se
vale de alguns dos truques mais expressivos das principais produções
hitchcockianas, além daquela atmosfera que mistura sóbrio suspense e uma certa
ironia sardônica. Entretanto, Chabrol consegue inserir algumas inquietações
artísticas próprias, principalmente em termos de um sofisticado subtexto
histórico-político. No final das contas, “Inspetor Lavardin” não chega a ser um
dos trabalhos fundamentais na carreira de Chabrol, mas ainda assim revela uma
elegância narrativa e refinado senso de humor que o tornam uma experiência
cinematográfica memorável.
terça-feira, fevereiro 06, 2018
Corpo e alma, de Ildikó Enyedi **1/2
Há elementos nas sequências iniciais da produção húngara “Corpo
e alma” (2017) que sugerem algo de promissor. A narrativa tem como pano de
fundo as rotinas de trabalho e as desagregadas relações humanas em uma
indústria de abate e comércio de gado. Assim, o frio e desumano processo de sacrifício
de vacas, filmado com realismo perturbador, deveria servir como uma espécie de
simbologia dos jogos de domínio social e mesmo sexual no ambiente da empresa.
Há um certo rigor estético na forma sóbria com que o diretor Ildikó Enyedi
desenvolve a trama do filme, além de uma aparente ousadia em inserir toques
oníricos na narrativa. Falta para o filme, entretanto, uma pegada formal mais
contundente e uma encenação de maior desenvoltura para que todos esses aspectos
insólitos destacados ganhassem uma dimensão artística e humana de real impacto
para o espectador. A obra dá a constante impressão de se utilizar de truques
dramáticos e recursos narrativos um tanto mofados, que já seriam manjados
algumas décadas atrás, parecendo mais um cruzamento incômodo de um pretenso
cerebralismo na linha Krzystof Kieslowski com o exotismo visual pueril de
Jean-Pierre Jeunet.
segunda-feira, fevereiro 05, 2018
A forma da água, de Guillermo Del Toro ***1/2
O cinema do diretor mexicano Guillermo Del Toro passa por
uma espécie de filtro de recriação de preceitos estéticos e temáticos do gênero
fantástico em suas diversas vertentes (horror, ficção científica, fantasia),
além de trazer em seu subtexto um sutil comentário sócio-político. “A forma da
água” (2017) é um exemplar enfático dessa concepção artística do cineasta. Em
termos de conceitos visuais e estrutura de narrativa, o filme remete a
clássicos do horror cinematográfico, principalmente as produções de monstros da
Universal nos anos 30 e 40. Há fortes doses de uma doce fantasia romântica,
principalmente no que diz respeito à caracterização da protagonista Eliza
(Sally Hawkins) e seu envolvimento amoroso com uma misteriosa criatura marinha
(Doug Jones). Além disso, a ambientação em um sombrio centro de pesquisas e o
aspecto histórico (início dos anos 60 a marcar o auge da guerra fria) faz
lembrar aqueles filmes paranoicos de ficção científica dos anos 50. Tais
referências e citações, entretanto, perpassam por uma linguagem cinematográfica
e uma visão existencial bastante particulares por parte de Del Toro. Nesse
sentido, é de se reparar que violência e erotismo se manifestam de maneira bem
mais gráfica, fazendo com que “A forma da água” oscile de maneira notável entre
o encantador e o perturbador. Além disso, a carga de simbologia do roteiro
talvez seja a mais direta e contundente da filmografia de Del Toro – o que
dizer de uma trama em que o vilão representa o arquétipo de idealização da
sociedade ocidental patriarcal (homem, branco, herói de guerra e pai de
família) e o grupo de “mocinhos” antagonistas é formado por aqueles que a
sociedade considera como “minorias” (uma muda, uma negra, um gay, um comunista
e até um ser inumano)? Mas o que dá a efetiva liga para a reciclagem de clichês
narrativos do fantástico e para esse discurso político é a eficaz conjunção
engendrada por Del Toro entre formalismo estilizado e uma encenação de dinâmica
admirável, resultando em um criativo conjunto artístico que também sabe
valorizar as ótimas interpretações icônicas de seu elenco.
quinta-feira, fevereiro 01, 2018
120 batimentos por minuto, de Robin Campillo ***1/2
Nas várias sequências da produção francesa “120 batimentos
por minuto” (2017) que envolvem as reuniões de discussões do grupo ativista Act
Up, o tema mais premente é a urgência de soluções, atitudes, combates e
posicionamentos relativos à luta contra a proliferação desenfreada da AIDS no
início dos anos 90. Esse sentimento de urgência passa também para a própria
concepção artística e narrativa do filme dirigido por Robin Campillo. Nesse
sentido, encenação e montagem se entrelaçam de maneira contundente e poética –
é de se reparar na forma com que o teor fortemente realista da obra,
principalmente em termos de roteiro e atmosfera, por vezes cede espaço para
delicados toques oníricos e delirantes. As tensas e naturalistas cenas que se
desenvolvem nas reuniões do grupo e nas suas ações performáticas de protestos,
que sintetizam de maneira equilibrada uma verborragia fascinante com uma
eletrizante dinâmica na equação fotografia-montagem, alternam-se com hedonistas
e estilizadas tomadas de festas e até insólitas sequências de animação (como a
o perturbador “balé” do vírus no organismo afetado). Nessa alternância de
abordagens e atmosferas, é fascinante também como os tempos presente e passado
se reúnem na mesma dimensão narrativa, vide a passagem em que Sean (Nahuel
Pérez Biscayart) se recorda de quando foi contaminado: na mesma cama em que recorda
esse fato junto com o seu atual namorado Nathan (Arnaud Valois) aparece o
antigo amante que lhe transmitiu a doença, em um recurso em que a passagem de
tempo se efetiva sem corte de edição. Por mais que a temática transpareça
revolta e amargura diante da inoperância e hipocrisia moral por parte de
agências do Estado e da indústria farmacêutica, Campillo não perde o rigor e a
serenidade no controle estético e narrativo da sua obra, sabendo ainda realçar
outros fundamentais detalhes artísticos como as viscerais composições
dramáticas de seu elenco e os pulsantes temas eletrônicos da trilha sonora. E
se boa parte das soluções formais de “120 batimentos por minuto” remete a “Entre
os muros da escola” (2008), tal lembrança não se configura como mera
coincidência quando se fica sabendo que Campillo foi montador e roteirista da
obra-prima dirigida por Laurent Cantet.
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