Em um primeiro momento, a narrativa de “No coração do mundo”
(2019) parece se configurar como uma sóbria junção de elementos de drama
intimista e crônica social, com uma trama que mostra as insatisfações
econômicas e existenciais de um grupo de personagens na periferia da cidade
mineira de Contagem (o mesmo cenário, aliás, dos memoráveis “A vizinhança do
tigre” e “Temporada”). O roteiro é bem delineado e aprofunda de maneira madura
os desejos e dilemas de seus personagens, impressão essa que se acentua pela
encenação que investe em um naturalismo de notável desenvoltura e que por vezes
evoca trejeitos documentais. Nesse sentido, é de se valorizar também um ótimo
trabalho de direção de elenco que valoriza tanto a espontaneidade amadora de
alguns atores quanto a precisão dramática de uma artista poderosa como Grace
Passô. De maneira sutil e coerente, entretanto, a narrativa vai se convertendo
ainda em um tenso thriller policial. O tradicional formato “planejamento de um
roubo perfeito” se insere com naturalidade na ambientação da trama e vai dando
para o filme uma atmosfera cada vez mais sufocante. De certa forma, é como se a
linhagem formal-temática do clássico cinema noir norte-americano e as trucagens
estéticas de Michael Mann se incorporassem de maneira mais que convincente
nesse contemporâneo cinema nacional de forte teor sócio-político. Essas
escolhas criativas, situada naquela zona limite entre a tradição e a
originalidade, se cristalizam de forma vigorosa no ato final de “No coração do
mundo”, em uma bela síntese entre ação cinematográfica, tensão dramática e
melancolia.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, setembro 13, 2019
sábado, setembro 07, 2019
Vermelho sol, de Benjamin Naishtat ***1/2
O cineasta argentino vem construindo sua filmografia a
partir de um olhar bastante singular dentro do gênero do cinema político. Se em
“Bem perto de Buenos Aires” (2014) a narrativa partia de uma abordagem
intimista para chegar em uma ácida visão sobre os conflitos de classe e em “O
movimento” (2015) a aventura de época se convertia com sutileza demolidora no
retrato de um atavismo da opressão social, na obra mais recente do diretor, “Vermelho
sol” (2018), a estruturação de suspense traz em seu âmago uma recriação
assustadora e impiedosa da Argentina de meados dos anos 70 prestes a ser tomada
de vez por uma ditadura militar. A concepção formal/existencial de Naishtat
para o seu filme é cirúrgica – a narrativa se constrói aos poucos de maneira
sóbria, sem apelações. Nesse sentido, encenação e direção de fotografia compõem
uma obra de atmosfera sufocante, em que a impressão perturbadora de uma força
repressora a pairar sobre as relações humanas é constante. O roteiro de “Vermelho
sol” também se distancia dos meros maniqueísmos fáceis, ao evidenciar que as
ações totalitárias não partem simplesmente “de cima para baixo”, mas também são
corroboradas por uma classe média hipócrita, obscurantista e arrivista, o que
pode ser atestada na sinistra sequência de abertura do filme. Aliás, não muito
diferente do que acontece na sociedade brasileira atual governada pela besta
fera.
quinta-feira, setembro 05, 2019
O homem que matou Don Quixote, de Terry Gillian **
Todas as histórias e mitos que
envolveram a conturbada realização da particular visão do diretor Terry Gillian
sobre o personagem mais célebre da literatura ocidental estiveram por décadas
nos imaginários não só dos admiradores do cineasta em questão como dos
cinéfilos em geral – algumas delas, inclusive, acaram rendendo o extraordinário
documentário “Lost in La Mancha” (2002). Todos pensavam nas várias
possibilidades criativas que a recriação da figura de Don Quixote poderia
render nas mãos do artista que concebeu obras delirantes e antológicas como “Brazil
– O filme” (1985), “O barão de Munchausen” (1988), “Os doze macacos” (1995) e “Medo
e delírio em Las Vegas” (1998). Pois agora que finalmente a produção tão
desejada por Gilian e um considerável público se concretizou, a pergunta que
fica é: valeu a pena tanta espera e alarde? Diante do resultado final de “O
homem que matou Don Quixote” (2018), a resposta é um frustrante não. Não chega
a ser exatamente um filme ruim – é até pior que isso, pois a impressão
constante durante boa parte da narrativa é de um trabalho anódino, previsível,
sem graça. Toda aquela lógica estética-temática marcada por uma ligação
insólita entre o real e a fantasia que caracterizou boa parte do melhor da
filmografia de Gillian se sujeita e diminui a um barroquismo estéril e a uma
atmosfera de excessivo sentimentalismo. A impressão geral é a de releitura
equivocada do clássico de Cervantes por um viés desajeitado de realismo
fantástico típico de Garcia Marquez pela severa perspectiva anglo-saxã de
Gillian (aliás, nem parece que se trata de um ex-Monty Python). Ou seja,
Gillian realizou seu sonho, mas para boa parte da plateia é capaz que a lenda
de uma possível obra-prima que nunca se concretizou por infortúnios do destino seja
bem mais atraente.
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