O que mais tenho ouvido falar sobre “O Império dos Sonhos”, obra mais recente de David Lynch, é que o espectador não deveria se preocupar em encontrar lógica no filme, pois o mesmo seria propositadamente desprovido de sentido, estando ele vinculado a preceitos oníricos. É claro que um filme é passível de receber as mais variadas interpretações, mas reduzir essa genial trabalho de Lynch simplesmente a um devaneio originado de sonhos seria um equívoco. É claro que o cineasta, ao longo da trama, por vários momentos rompe com estruturas narrativas lineares e apresenta os fatos de forma desconexa e desvinculados da “realidade” normal das coisas. Um olhar mais atento, entretanto, faz com que se perceba que no desenrolar da história Lynch vai jogando na tela situações, personagens e pistas que se agrupam aos poucos difusamente. É claro que não dá para dizer que no final o espectador irá entender tudo que viu/ouviu/sentiu, mas ao mesmo tempo há a noção de uma espécie de quebra-cabeças cuja intenção é nunca se completar.
Acredito também que assistir apenas uma vez a “O Império dos Sonhos” é insuficiente. Não digo isso no sentido de que seriam necessárias revisões para entender o “sentido” do filme, mas sim por questões de poder apreciar o mesmo melhor. Pode ocorrer do espectador ficar simplesmente seduzido pelas imagens de beleza perturbadora e se deixar levar pelas mesmas, não dando muita bola para quantidade gigantesca de referências que surgem sucessivamente na tela. E pode acontecer também que “O Império dos Sonhos” faça com que se pense em várias teorias e conceitos ao mesmo tempo, tamanha a gama de informações e estranhas simbologias que abundam ao longo do filme. Lynch parece brincar com metalinguagem, experiências xamânicas e noções sobre a flexibilidade do tempo e espaço como se fossem as coisas mais normais do mundo. E revela também uma série de referências cinematográficas nada óbvias: a fúria surreal de Luis Buñuel, a simbologia sem concessões de Alejandro Jodorowsk, o horror climático e fortemente estilizado de Mario Bava, a violência sensorial de Dario Argento.
Essenciais também na realização de “O Império dos Sonhos” são as colaborações preciosas de Angelo Badalamenti e Laura Dern. Badalamenti providencia aqueles já conhecidos, mas sempre perfeitos, temas musicais cheios de climas sombrios e delirantes que casam à perfeição com as imagens transtornadas concebidas por Lynch. Vale destacar que na trilha sonora do filme há também a presença de insólitas canções obscuras que se combinam sinuosamente com a trilha composta por Badalamenti, indo de uma canção melancólica do sempre inquieto Beck até músicas latinas com percussões enlouquecidas, como aquela que serve de tema para a brilhante seqüência de créditos finais. Já Laura Dern apresenta umas das mais estonteantes atuações dramáticas femininas dos últimos anos, compondo uma personagem que se fragmenta em outras personalidades, mas que no final se recompõe de forma extraordinária.
É impossível assistir “O Império dos Sonhos” e não pensar na trajetória de Lynch como cineasta. Se em “Veludo Azul” (1986), “Coração Selvagem” (1990) e “Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer” (1992) podiam ser vislumbradas narrativas quase moldadas em modelos clássicos entremeadas de seqüências de pura esquisitice, a partir de “A Estrada Perdida” (1997) o cineasta começa a partir para uma radicalização formal que se acentua e aperfeiçoa em “Cidade dos Sonhos” (2001) e atinge o ponto de ruptura total em “O Império dos Sonhos”. Lynch já não encara mais o cinema simplesmente como uma arte de “contar uma boa história”, sendo que vê na arte cinematográfica uma forma de experiência sensorial de possibilidades quase infinitas. “O Império dos Sonhos” é uma tempestade de sons e imagens, em que a “boa história” é apenas mais um elemento, e não a essência. E para embarcar nessa viagem, é apenas necessário um pouco de disposição para contemplação...