O fato de David Gordon Green ser o diretor responsável pela
retomada do universo original da franquia “Halloween” não é gratuito. O
cineasta norte-americano em questão tem uma espécie de norte criativo em boa
parte da sua filmografia que é uma abordagem estética marcada pelo classicismo
típico das décadas de 70 e 80 e na revitalização de gêneros proeminentes
naquela época. Nessa concepção artística, ele dirigiu alguns filmes memoráveis
em vertentes diversas: melodrama (“Prova de amor”), policial (“Contra corrente”),
comédias entre o juvenil e o escrachado (“Segurando as pontas”, “O babá(ca)”) e
até a fantasia medieval (“Sua alteza?”). Assim, nada mais natural que ele
resolvesse reciclar o horror slasher em “Halloween” (2018). Mais do que mero
oportunismo mercadológico, entretanto, Green demonstra notável sobriedade
narrativa na forma com que conduz mais esse capítulo na saga do psicopata Michael
Myers. O roteiro por vezes até se perde um pouco entre exageros e
inconsistências, mas isso tudo se compensa por uma encenação precisa tanto na
interação dramática entre os personagens quanto no perturbador detalhismo
gráfico das sequências de forte teor gore. E por mais que se saiba que a
história se passe nos dias atuais, a direção de fotografia repleta de nuances e
o sereno ritmo da montagem dão à produção uma fascinante atmosfera de
atemporalidade. Nesse bem delineado formalismo de “Halloween” se revela com
sutileza uma carinhosa homenagem de Green ao estilo muito particular de filmar
do grande John Carpenter.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, outubro 31, 2018
terça-feira, outubro 30, 2018
Sobrenatural, de James Wan **
O diretor James Wan pode ser considerado como o nome mais
expressivo do horror cinematográfico mainstream contemporâneo, pelo menos em
termos comerciais. A milionária franquia “Invocação do mal” e seus derivados
são provas enfáticas dessa constatação. Se formos pensar no lado artístico
disso, entretanto, pode-se ver que ele está muito mais para um esforçado
reciclador de clichês narrativos do que para um cineasta de evidente marca
autoral ou mesmo com uma pegada mais criativa, ainda que por vezes ele se
mostre eficaz nessa sua abordagem mais convencional. “Sobrenatural” (2010) é um
exemplar esclarecedor dessa tendência estética-temática de Wan. Todos os artifícios
narrativos são puro deja vu de coisas que o espectador já viu diversas vezes em
produções do gênero: o roteiro que sintetiza “O exorcista” com filmes de casa
mal-assombrada, trucagens digitais um tanto assépticas, encenação e
enquadramentos que obedecem as fórmulas de sustos fáceis e óbvios. Ok, pode-se dizer
que parte do público desse tipo de filme espera isso mesmo e nesse sentido o
filme de Wan entrega até com alguma eficiência esse arsenal de truques baratos.
É fato também, entretanto, que a previsibilidade formal-textual de “Sobrenatural”
tira muito da tensão dramática da obra, fazendo com que aquelas sequências que
deveriam ser efetivamente assustadoras acabem tendo um impacto sensorial
irrelevante. Ou seja, o filme até pode distrair por uma hora e meia, mas no
final das contas é uma experiência audiovisual banal e pouco memorável.
segunda-feira, outubro 29, 2018
Viajar é preciso, de David Wain **
No gênero comédia, o diretor norte-americano David Wain
provou que pode ir da paródia constrangedora (“Encontros e desencontros do amor”)
até a ótima sátira (“Mais um verão americano”). Em “Viajar é preciso” (2012) ele
prova que pode também ficar no meio do caminho. O filme tem até um terço
inicial promissor, ao fazer uma espécie de cômica crônica de costumes narrando
a história de um típico casal nova-iorquino pequeno-burguês que acaba arruinado
economicamente e meio por acidente passa a viver em uma comunidade hippie no
interior. Há boas piadas e mesmo um certo teor crítico no filme, mas aos poucos
tudo vai se amoldando de maneira cômoda e sem maiores inspirações em um formato
de conto moral conservador e previsível. Não chega a ser especialmente ruim
como obra cinematográfica, mas também está bem longe de ser considerável
memorável.
sexta-feira, outubro 26, 2018
Tratamento de choque, de Peter Segal **1/2
A figura do sujeito reprimido que ao não saber expressar
suas emoções acaba entrando em uma relação conturbada com aqueles que o cercam
já havia sido interpretada, de certa forma, pelo mesmo Adam Sandler em “Embriagados
de amor” (2002). Mas enquanto no filme de Paul Thomas Anderson a abordagem
artística-existencial era menos óbvia e mais complexa e desconcertante, em “Tratamento
de choque” (2003) as soluções criativas encontradas pelo diretor Peter Segal em
termos temáticos e estéticos descambam para o moralismo fácil e para uma
narrativa frouxa e despersonalizada. Sandler até procura dar alguma
consistência cômica e dramática para o seu personagem e mesmo a presença de um
Jack Nicholson exagerado e caricatural dá um certo peso para o filme, principalmente
nos embates cênicos marcados pelo grotesco entre os dois atores. Ainda assim, a
insistência de Segal pelo convencionalismo formal e por um roteiro quadradinho
acabam tirando muito do vigor que a produção poderia ter.
quinta-feira, outubro 25, 2018
Fandango, de Kevin Reynolds ****
Confesso que não consegui assistir à “Fandango” (1985) sem
fazer relações com conturbado e cenário sócio-político brasileiro atual, ainda
mais a poucos dias da eleição presidencial que provavelmente confirmará um
indivíduo de extrema-direita como nosso líder republicano pelos próximos e
funestos quatro anos. O espectro temporal é algo que paira sobre toda a
narrativa do belo filme dirigido por Kevin Reynolds – uma produção oitentista
cuja trama foca um grupo de jovens recém-formados em uma cidadezinha do
interior norte-americano no início dos anos 70, recém convocados para lutarem
no Vietnã, e que já se sentem nostálgicos em relação à própria juventude que
viveram na década de 1960. É mais uma obra a versar sobre a transição da
inocência para uma certa maturidade, com o fato de que boa parte da ação se
desenvolver na estrada já evidencia esse simbolismo sobre ritos de passagem.
Por mais que esses elementos façam sugerir caminhos temáticos e estéticos já
bastante explorados no cinema norte-americano, a verdade é que a direção repleta
de nuances carinhosas e irônicas de Reynolds oferece um encantador frescor para
o filme, vide acertos memoráveis como a preciosa encenação, a direção de fotografia
de talhe clássico, a trilha sonora que combina com precisão clássicas canções
de rock e pop sessentistas e expressivos temas incidentais e o elenco com
algumas atuações memoráveis (grande destaque para Kevin Costner em
interpretação de raras sensibilidade e carisma). Como cereja do bolo, o roteiro
é um verdadeiro achado na sua síntese de crônica saudosista e sutil crítica aos
valores hipócritas da sociedade ocidental (nesse sentido, impossível não fazer
a conexão do ufanismo opressor do jovem Phil, louco para “servir o país” no
Vietnã, com o fascista discurso patriótico de Bolsonaro e seguidores).
Posteriormente, Reynolds até dirigiu alguns bons filmes como “Robin Hood – O príncipe
dos ladrões” (1991) e “Waterworld – O segredo das águas” (1995), mas nada que
chegasse perto do brilho criativo de “Fandango”.
terça-feira, outubro 23, 2018
Floresta maldita, de Jason Zada *1/2
Depois de se assistir a filmes como “A bruxa” (2015) e “As
boas maneiras” (2017), obras do gênero horror que recriam as convenções dessa
linhagem de produções sob uma ótica artística contestadora e libertária, fica
difícil encarar um negócio tão previsível e medíocre como “Floresta Maldita”
(2016), longa que recicla sem criatividade ou mesmo convicção clichês e truques
baratos do gênero.
segunda-feira, outubro 22, 2018
Bancando o águia, de Buster Keaton ****
Ver um filme de Buster Keaton no auge da forma artística
continua a ser uma experiência desconcertante, mesmo em pleno século XXI. “Bancando
o águia” (1924) é prova enfática dessa constatação. A uma encantadora comicidade
ingênua, com uma trama flertando por vezes com o melodrama, soma-se um afiado senso
cênico e uma concepção visual-narrativa que envereda de maneira fluente para o
onírico e o delirante. As coreografias de quiproquós e perseguições tem um
detalhismo gráfico impressionante e são executadas com precisão assustadoras,
fazendo com que várias sequências desse média-metragem grudem no nosso
imaginário. As criativas trucagens e o roteiro a juntar elementos de comédia de
costumes, policial e fantasia ajudam também a compor uma obra que discorre
sobre as inúmeras possibilidades artísticas da própria arte cinematográfica.
Poucas vezes uma produção versou sobre o universo do cinema com tanta maestria
e sensibilidade.
quinta-feira, outubro 18, 2018
Venom, de Ruben Fleischer **
No Universo Marvel dos quadrinhos, Venom é um dos
supervilões mais importantes nas histórias do Homem-Aranha. Nesse sentido,
talvez o mais relevante antagonista do herói aracnídeo que não foi criado por
Stan Lee. Como levar a sério um filme sobre o personagem, dessa forma, em que
ele é um super-herói e o Homem-Aranha não aparece em instante algum e sequer é
mencionado? “Venom” (2018) é um reflexo perfeito do que está acontecendo em
Hollywood na atualidade: na pressa em lucrar de qualquer maneira para
aproveitar essa onda benfazeja de produções no gênero aventura de super-heróis,
os estúdios por vezes fazem os seus filmes meio de qualquer jeito e procurando
emular os principais preceitos narrativos e temáticos do que se tem feito na
área nos últimos anos. No caso da produção dirigida por Ruben Fleischer,
recicla-se os diálogos repleto de piadinhas bestas da franquia Homem de Ferro,
o humor gráfico escroto e escatológico dos filmes de Deadpool, uma certa
atmosfera sombria das obras protagonizadas por Wolverine. O resultado final dessa
maçaroca de influências é uma apressada e despersonalizada adaptação dos
quadrinhos. Não chega a ser exatamente algo mal feito, mas apenas executado sem
maiores inspirações criativa e incapaz de efetivamente causar algum impacto
para o espectador. E o patético gancho explícito para uma continuação expresso
na inevitável cena pós-crédito mais acentua essa impressão de “Venom” ser um
produto oportunista do que uma obra de alguma coerência artística,
característica essa, por exemplo, que é marcante na grande maioria das
produções originárias dos Estúdios Marvel.
quarta-feira, outubro 17, 2018
Nasce uma estrela, de Bradley Cooper ***1/2
Megaconcertos de rock, daqueles realizados em imensas arenas
e afins, guardam uma espécie de parentesco com o fascismo. O artista diz um “yeah”
qualquer e uma imensa massa responde urrando de aprovação e os sistemas de som
propagam um volume sonoro ensurdecedor estimulando uma resposta sensorial do público
ainda mais tonitruante. Em eventos como esse, a contemplação e reflexão não
encontram muito espaço – grande parte das pessoas está lá para urrar e pular em
troca do caro ingresso que elas pagaram. Diante de um quadro como esse, é mais
que compreensível a considerável quantidade de vaias que Roger Waters angariou em
terras brasileiras ao mostrar uma postura crítica em relação à ascensão do fascismo
bolsonarista no país. Por mais que essa postura de desafio seja coerente com a
própria trajetória artística de Waters, a verdade é que essa situação é
sintomática da própria condição contraditória e anacrônica do rock and roll em
pleno século XXI. Aquilo que começou como uma revolução musical e
comportamental em meados da década de 1950 como reação à postura moralista,
hipócrita e racista da sociedade ocidental da época se transformou na trilha
sonora de pessoas que hoje em dia adotam essa mesma postura.
A nova versão de “Nasce uma estrela” (2018) é mais uma prova
enfática dessa melancólica decadência existencial do rock and roll. Logo no
início do filme, há uma memorável sequência em que o rock star Jackson Maine
(Bradley Cooper) toma uns aditivos nos bastidores de um show e quando entra em
cena logo dispara riffs e solos faiscantes de guitarra diante de uma imensa e
barulhenta plateia. A música é um intenso southern rock, pleno de rusticidade e
melodia, mas também com um certo ar datado. De maneira simbólica, essa cena
sintetiza com sutileza o subtexto da obra – por maior que seja a beleza e a
espontaneidade da arte de Maine, a realidade é que ele é um dinossauro à beira
da extinção. Mais do que seu comportamento autodestrutivo e a inconstância do
seu temperamento, seu definitivo algoz, ainda que de maneira involuntária, é a
cantora pop Ally (Lady Gaga) – Maine a descobre acidentalmente, acolhe-a e a
transforma em esposa e parceira e por fim é suplantado por ela de forma
avassaladora. O genuíno talento de Ally, bruto e cortante quando descoberto por
Maine, aos poucos é lapidado e estilizado de acordo com os preceitos comerciais
da indústria da música atual. O paralelo que se estabelece entre os dois
personagens é direto e algo exagerado, mas altamente eficaz e perturbador – a ascensão
como diva pop de Ally corresponde à amarga e fulminante derrocada de Maine.
Basicamente, a trama dessa revisão de “Nasce uma estrela” é
a mesma das três versões cinematográficas anteriores. O grande mérito de
Bradley Cooper na direção é repetir a história e a enquadrá-la sob um contexto
histórico-existencial diferente e também em um formato narrativo e cênico de
forte frescor criativo. Em termos de estilo, Cooper faz lembrar muito alguns
trabalhos marcantes de Clint Eastwood na direção – narrativa e encenação seguem
um classicismo muito bem delineado, a atmosfera dramática é marcada pela sobriedade,
o elenco apresenta seguras e convincentes atuações. Além disso, é de se
destacar o vigor cênico dos números musicais da produção e que valoriza com
sensibilidade a beleza das canções originais da trilha sonora. Nessa afiada
concepção formal e temática, o filme apresenta algumas antológicas sequências:
Ally no centro do palco na premiação do Grammy enquanto Maine está atirado
bêbado na escada de acesso ao palco, o doloroso rito de morte do artista que
remete ao suicídio de Kurt Cobain e a sensacional sequência final em que uma
versão grandiosa e plastificada de uma canção de Maine interpretada por Ally se
contrapõe a um cortante flashback dele mesmo interpretando cruamente a música
ao piano. E a conexão com Eastwood é tão forte que por vezes o filme faz
lembrar uma das mais estimadas obras do veterano cineasta, a cinebiografia
musical “Bird” (1988), que marcava justamente a conturbada substituição do jazz
clássico pelo rock and roll no imaginário cultural norte-americano.
terça-feira, outubro 16, 2018
A chefa, de Ben Falcone **
No primeiro terço de sua narrativa, “A chefa” (2016) até
insinua algo como uma crítica irônica a aspectos machistas e desumanos da
sociedade capitalista-consumista ocidental. Esse direcionamento, digamos, mais
ousado do filme, entretanto, logo é suplantado em nome de uma adequação aos
cânones mais comportados da comédia norte-americana contemporânea. Há até
algumas sequências engraçadas, principalmente quando o direto Ben Falcone deixa
aflorar um lado mais grotesco na encenação, mas o que prevalece mesmo é uma
lógica artística-temática conservadora e previsível. A própria atuação de Melissa
McCarthy parece uma extensão dessa abordagem, com a atriz repisando maneirismos
que haviam se mostrado mais eficazes em produções anteriores.
segunda-feira, outubro 15, 2018
Mortdecai - A arte da trapaça, de David Koepp *1/2
A combinação de comédia farsesca e aventura de “Mortdecai –
A arte da trapaça” (2015) poderia ter resultado em uma experiência
cinematográfica interessante. Uma direção menos previsível e com alguma
sutileza em termos de encenação teria chances de entregar um resultado final
memorável na linha do divertido (e subestimado) “Hudson Hawk – O falcão está à
solta” (1991) ou mesmo de alguns exemplares antológicos da franquia da Pantera
Cor de Rosa. A forma com que o cineasta David Koepp conduz a narrativa,
entretanto, é tão mão pesada e despersonalizada que o máximo que consegue é
induzir o sono ao espectador. Faltam vigor para as cenas de ação, alguma graça
para os momentos pretensamente mais espirituosos e ousadia na concepção visual,
além das atuações do elenco principal caírem em um tom caricatural frágil e
banal.
quinta-feira, outubro 11, 2018
A outra mulher, de Daniel Auteuil ***
A premissa inicial da trama de “A outra mulher” (2018), em
um primeiro momento, parece até bem batida: ao conhecer a nova namorada bem
mais jovem de um amigo, o protagonista Daniel (Daniel Auteuil) vê a suas
concepções pequeno-burguesas de um casamento estável e uma vida estruturada se
abalarem ao também se apaixonar pela tal garota. O que torna esse filme
dirigido por Auteuil uma obra divertida e algo inquietante é a encenação repleta
de interessantes nuances dramáticas e cômicas. De maneira sutil e irônica,
Auteil consegue estabelecer uma criativa narrativa que se alterna de maneira
fluida o espaço temporal da trama e que também insere um toque entre o onírico
e o delirante, sem que tudo pareça necessariamente confuso. O quarteto
principal de atores tem atuações expressivas e que valorizam os espirituosos
diálogos e as situações de quiproquós do roteiro. Nesse contexto geral, “A
outra mulher” está mais para uma comédia ligeira a abordar a questão dos
relacionamentos amorosos do que para um trabalho mais profundo e instigante a
fustigar o mesmo tema, mas envereda por esse lado mais leve com razoável
competência narrativa.
quarta-feira, outubro 10, 2018
As herdeiras, de Marcelo Martinessi ***
A construção narrativa da produção paraguaia “As herdeiras”
(2018) é baseada em um conceito minimalista. A ação é desenvolvida sem
atropelos, o roteiro mais sugere os dilemas de suas personagens do que os fixa
de forma definitiva ou ostensiva, não há música a pontuar a dramaticidade das
cenas. A concepção artística do diretor Marcelo Martinessi é tão rigorosa na
secura e contenção de seus elementos estéticos-temáticos que mesmo situações da
trama e personagens que poderiam complementar a obra são limados sem concessão.
Esse direcionamento por vezes pode tornar a obra um tanto árida, mas aos poucos
vai se mostrando eficaz na maneira como cria tensão dramática e dá uma
contundente dimensão existencial para as principais figuras da história. O
roteiro foca de maneira preponderante o universo feminino que gira em torno de um
casal maduro de lésbicas. Quando homens entram em cena, sempre é de longe,
distante, como se fossem uma opressora e difusa sombra patriarcal sobre as
personagens. Nesse sentido, novamente a forma minimalista de Martinesse filmar
consegue ressaltar com sutileza essa crítica a uma sociedade machista, além de
evocar aquela atmosfera de um atraente mundo particular da série Peanuts – é de
se lembrar que no ambiente de Charlie Brown e sua turma os adultos nunca são
mostrados de forma direta. Nesse formato narrativo, “As herdeiras” não é filme
de grandes arroubos formais. A coerência de seu direcionamento artístico,
entretanto, torna a obra estranhamente envolvente e sensual em seus
desdobramentos, impressão essa ainda mais acentuada pela intensa interpretação
de Ana Brum.
terça-feira, outubro 09, 2018
Mais um verão americano, de David Wain ***1/2
O diretor norte-americano David Wain tem uma queda para fazer pastiches/homenagens a determinados subgêneros cinematográficos. Se em “Encontros e desencontros do amor” (2014) a sua paródia de comédia romântica se mostra mal-ajambrada e sem graça, na reciclagem perversa que faz das comédias oitentistas de acampamento em “Mais um verão americano” (2001) o resultado final se mostra bem mais satisfatório. Estão lá todos os clichês narrativos e temáticos típicos desse tipo de produção devidamente atualizados por um olhar mais irônico, mas que também revela um certo viés carinhoso e libertário. Tudo no filme soa bastante estilizado: as atuações exageradas de atores adultos emulando adolescentes estereotipados, a direção de arte a emular uma atmosfera algo idealizada imaginária dos anos 80, o roteiro que trafega entre o caricatural e o grotesco. Wain consegue dar uma considerável unidade artística para tais elementos e fazer com que a narrativa se mostre funcional e divertida, além de evidenciar personagens memoráveis e passagens da trama efetivamente antológicas (os monitores que vão para uma cidadezinha para vandalizar e se drogar, o surreal show de talentos no terço final do filme).
segunda-feira, outubro 08, 2018
Tarde para la ira, de Raúl Arévalo **
A produção espanhola “Tarde para la ira” (2016) busca
narrativa e encenação de caráter mais realista dentro do já manjado subgênero “filmes
de vingança”. A ação se desenvolve num bairro popular, com momentos importantes
da trama se situando também em periferias barra-pesadas. A forma com que o
diretor Raúl Avéralo conduz a narrativa é tão desprovida de vigor e criatividade,
entretanto, que o resultado final está muito para mais novela mexicana com alguma
violência gráfica mais brutal em sequencias pontuais do que um filme na linha
policial/suspense. Faltou maior consistência dramática, atuações menos
caricaturais do elenco e uma concepção estética-visual um pouco mais ousada
para afastar a obra do meramente derivativo e esquecível.
sexta-feira, outubro 05, 2018
Bad day for the cut, de Chris Baugh **1/2
Filmes de vingança têm um certo charme para parte do
público. Tanto que viraram praticamente um subgênero dentro da linhagem
policial-suspense. A produção britânica “Bad day for the cut” (2017) é mais uma
obra voltada para essa temática e está bem longe de apresentar algo de
especialmente transcendente em termos artísticos, mas também é verdade que é
eficiente dentro de sua narrativa formulaica. A abordagem estética do diretor
Chris Baugh é interessante, enveredando por um lado mais naturalista. O roteiro
apresenta alguns elementos interessantes, principalmente por trazer à tona um
submundo irlandês envolvido com tráfico de mulheres do leste europeu. A
encenação é econômica e objetiva, valorizando as sequências graficamente mais
violentas ao expor espancamento brutais e sangrentos com certo detalhismo,
dispensando a assepsia visual. E mesmo o ator Nigel O’Neil chama atenção
positivamente pela sua contida composição dramática do protagonista Donal, um
fazendeiro solteirão e taciturno que parte numa desajeitada e furiosa jornada de
revanche contra aqueles que mataram sua mãe. Ainda que por vezes envolvente
para o espectador, é evidente também que esse conjunto formal-temáticol é
derivativo e pouco memorável. É aquela coisa: fácil de ver numa noite
preguiçosa em frente à TV, também fácil de esquecer.
quinta-feira, outubro 04, 2018
A moça do calendário, de Helena Ignêz ***
Helena Ignêz cada vez mais se revela como legítima herdeira
artística-existencial de Rogério Sganzerla. “A moça do calendário” (2017) é
prova enfática desse seu direcionamento. Há uma linha tênue de narrativa que
vincula o filme a uma recriação do gênero comédia romântica – não ligada às
produções mais contemporâneas dessa linhagem cinematográfica, mas mais voltada
para aquelas produções clássicas de Billy Wilder, Frank Capra e Ernest
Lubitsch. É claro, entretanto, que a abordagem de Ignêz não é das mais
convencionais. Ela pega algumas arestas tradicionais e as perverte sob uma
ótima poética, libertária e até mesmo panfletária. Assim, a narrativa se
desenvolve como um grande fluxo onírico e simbolista em que a realidade e o
delirante se casam de maneira bizarra e fluente. Discursos sócio-políticos de
naturezas ideológicas diversas, diálogos entre o absurdo e a mais cortante
lucidez, encenação que atira para vários lados, referências e citações culturais
que se incorporam de maneira contundente na trama (com direito, inclusive, a
menções explícitas a filmes de Sganzerla). Se por vezes a junção de todos esses
elementos estéticos e temáticos tornam a narrativa um tanto irregular, é
verdade também que jogam o espectador em um universo sensorial lúdico e
perturbador repleto de lirismo, ironia e melancolia. No saldo final, há uma
leveza sardônica e humanista em “A moça do calendário” que até serve como uma
espécie de breve alívio em tempos tão opressores...
quarta-feira, outubro 03, 2018
Missão 115, de Silvio Da-Rin **1/2
Há uma conexão temática evidente entre os documentários “Hércules
56” (2006) e “Missão 115” (2018), ambos dirigido por Silvio Da-Rin – as duas
obras tratam de episódios relativos ao período da ditadura militar no Brasil.
Se na época do lançamento do primeiro filme havia uma impressão de que a
narrativa abordava fatos de um passado atribulado e que dificilmente poderiam
se repetir no presente, na produção documental mais recente a sensação é que
passado, presente e futuro estão entrelaçados de maneira intrínseca e
perturbadora. Ainda fazendo a comparação entre os dois documentários, “Missão
115” se mostra com um viés mais pessoal, ainda que mantenha a linha didática
histórica do trabalho anterior de Da-Rin. Tanto que o próprio diretor se coloca
como personagem logo no início da narrativa por ter sido preso político na
época da ditadura. A maioria dos depoimentos vem em um tom professoral e detalhista;
ainda que bastante informativas e esclarecedoras, tais entrevistas dão uma
formatação um tanto cansativa para o filme, fazendo com que por vezes tudo
pareça mais uma grande reportagem, carecendo assim de uma abordagem estética
mais ousada. Provavelmente, diante das circunstâncias sócio-políticas atuais,
em que há fortes possibilidades de que país venha a ser governado por um
ultradireitista raivoso ou mesmo sofra um novo golpe militar, as verdadeiras
intenções artísticas-existenciais de Da-Rin estejam no caráter
panfletário-informativo de “Missão 115” do que em alguma grande elaboração
criativa em termos de linguagem cinematográfica. Olhando sob esse ângulo, dá
para dizer que o documentário em questão se mostra uma experiência cultural e
sensorial até bem-sucedida, pois consegue estabelecer uma ligação de coerência
e profundidade entre as ações de terrorismo de Estado no crepúsculo da ditadura
com os arroubos de autoritarismo e hipocrisia que levaram ao golpe parlamentar
de 2016 e à nova ascensão do pensamento reacionário-fascista na sociedade
contemporânea.
terça-feira, outubro 02, 2018
The Cloverfield Paradox, de Julius Onah **
Nas produções audiovisuais ligadas ao universo Cloverfield,
há uma curiosa variação de gêneros. Se em “Cloverfield” (2008) a narrativa se
vinculava aos filmes de monstros na linha Godzilla, em “Rua Cloverfield, 10”
(2016) predominava a linha do thriller psicológico. No mais recente “The
Cloverfield Paradox” (2018), o que se tem é uma ficção-científica propriamente
dita. Dentro dos cânones típicos dessa linhagem de produções, a obra de Julius
Onah tem alguns pontos promissores – o roteiro aborda com razoável profundidade
a questão de universos paralelos, além de fazer interessantes especulações
sobre o futuro geopolítico do mundo. A direção de arte apresenta um certo grau
de realismo, no sentido de que a ambientação tecnológica-científica pareça verossímil
para o espectador. Essas boas impressões iniciais, entretanto, sucumbem a uma
narrativa e encenação pouco imaginativas e a uma concepção estética asséptica
em demasia. A impressão constante é a de uma obra de ficção científica que foi
excessivamente lapidada para um público pouco afeito ao gênero. Ainda que “Rua
Cloverfield, 10” tenha sido uma boa surpresa, com esse “The Cloverfield Paradox”
fica ainda a impressão, no cômputo geral, que as boas possibilidades criativas
do universo Cloverfield continuam subaproveitadas.
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