O fato da protagonista de “O que está por vir” (2016) ser
uma professora de filosofia se relaciona de maneira sutil com a própria
estrutura narrativa da obra – a forma como a trama se desenvolve apresenta
traços de um caráter didático, por vezes beirando uma síntese entre o
esquemático e o dialético, na intenção de dissecar os meandros da vida
pequeno-burguesa de Nathalie (Isabelle Huppert). Num primeiro momento, são
expostas a contradição e a hipocrisia entre aquilo que é ensinado pela
personagem e o seu cotidiano pessoal e profissional. No segundo momento, o foco
está na dissolução dos pilares conservadores da vida de Nathalie para que ela
possa entrar em sintonia com a natureza libertária do conhecimento ao qual se
dedicou a estudar e propagar. Os truques do roteiro e sua simbologia podem até
aparentar uma certa simplicidade na sua lógica, mas a grande força do filme
está na encenação sóbria e repleta de nuances dramáticas e mesmo irônicas concebida
pela diretora Mia Hansen-Love. Não há maiores concessões sentimentais na
condução narrativa, com a cineasta se atendo a um formalismo de notáveis secura
e objetividade, sem que isso, entretanto, sacrifique o aspecto emocional, que
sempre irrompe com naturalidade e empatia. Colaboram ainda as contidas
composições dramáticas do elenco, com óbvio destaque para Huppert, e a
inteligência do roteiro que ressalta com sensibilidade a complexidade e a força
desafiadora dos principais dilemas da trama.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, dezembro 30, 2016
quinta-feira, dezembro 29, 2016
Belos sonhos, de Marco Bellocchio ****
A narrativa em “Belos sonhos” (2016) gira em torno de uma
ideia de trama aparentemente até bem simples: a maneira como a precoce morte da
mãe do protagonista Massimo (Valerio Mastandrea), quando ele ainda era criança,
marcou o restante de sua vida. Só que com o velho mestre italiano Marco
Bellocchio as coisas nunca são tão simples, com o cineasta convertendo tal
história numa espécie de parábola moral de subtexto político-existencial
fascinante. O fluxo temporal da trama corresponde a uma espécie de linha de
memória marcada por traumas e esquecimentos. A sutil desconstrução da
linearidade cronológica acentua a complexidade dos sentimentos e sensações que
afloram com crueza e mesmo alguma ironia ao longo da narrativa. O passar dos
anos para Massimo não corresponde exatamente a um amadurecimento do personagem,
e nesse conceito perpassa uma síntese entre o sentimental e o intelectual a
retratar tanto os aspectos intimistas quanto o caráter sócio-cultural do modelo
do macho ocidental – nesse sentido, é brilhante a forma com que Bellocchio
disseca na trajetória pessoal e profissional de Massimo seu envolvimento com o futebol,
a política e o poder econômico, em que tais símbolos de masculinidade e
prestígio social acabam não conseguindo esconder uma fragilidade inerente ao
personagem. O registro estético para tal saga pessoal oscila com discrição
entre a ambientação levemente estilizada do passado e a atmosfera de melodrama
clássico do presente, em que as convenções do gênero são adulteradas com uma
doce ironia perversa. Bellocchio “engana” com brilhante engenhosidade o
espectador em seus truques formais-temáticos – em determinados momentos, ele
insinua que a narrativa cairá em uma espécie de dramalhão novelesco edificante
para logo depois revelar uma verve cáustica de encenação e texto. Dentro desse
particular universo artístico, Bellocchio evidencia a sua indelével marca
autoral e de lambuja faz um contundente e emotivo retrato psico-político da
sociedade ocidental das últimas décadas.
quarta-feira, dezembro 21, 2016
Sangue do meu sangue, de Marco Bellocchio ***1/2
O diretor italiano Marco Bellocchio mostra em “Sangue do meu
sangue” (2015) que ainda é capaz de deixar as plateias desconcertadas. A trama
do filme se situa em dois planos temporais, passado e presente, e faz uma
reflexão intrincada sobre religião e poder. O viés estético e narrativo flutua
dentro de uma estranha síntese que abarca drama de época, realismo fantástico e
comicidade bufa, situando a obra numa encruzilhada artística-existencial
difícil de precisar. Por vezes, o tratamento formal é tão insólito que faz tudo
beirar o delirante. Bellocchio tem a sensibilidade de conciliar tais elementos
diversos dentro de uma concepção rigorosa de filmar – ainda que a história se
desenvolva por caminhos bastantes livres, em que ambientações solenes convivem
de maneira natural com sensualidade à flor da pele, sempre dá para perceber a
mão do cineasta dando um sentido personalíssimo para a narrativa. Dessa maneira,
alguns truques melodramáticos de determinas cenas aos poucos são envenenados
por uma atmosfera de puro absurdo, característica essa que é bem delimitada na
figura de um chefão mafioso vampiro, que simboliza de maneira sardônica e
melancólica uma certa concepção entre o irônico e o nostálgico de uma tradição
secular decadente. Nesse bizarro jogo narrativo, não importa a existência de um
final convencional que amarre todas as pontas da trama – para Bellocchio,
importa mais traduzir em audiovisual um perturbador sentimento atávico que
marca o imaginário coletivo de seu país.
terça-feira, dezembro 20, 2016
Sully - O herói do Rio Hudson, de Clint Eastwood ***
Uma expressiva parte da filmografia do diretor
norte-americano Clint Eastwood é composta de obras baseadas em fatos reais que
estabelecem uma espécie de inventário histórico e cultural dos Estados Unidos.
Em tais produções, o foco do diretor não se limita apenas a encenar eventos “verdadeiros”,
mas também a procurar traduzir uma série de conceitos e valores caros para o
país como o patriotismo, a moral e heroísmo. O processo artístico de Eastwood na
elaboração de tais trabalhos passa por uma abordagem formal sóbria e clássica e
uma visão temática madura que enfatiza a complexidade psicológica do contexto
histórico recriado. Dentro desse método, destacam-se produções brilhantes como “A
conquista da honra” (2006) e “Sniper americano” (2015). Ainda que não tenha a
mesma qualidade estética e textual dos filmes mencionados, “Sully – O herói do
Rio Hudson” (2016) dá continuidade ao projeto artístico-histórico de Eastwood
de maneira contundente. Ainda que se renda por vezes a alguns truques narrativos
melodramáticos convencionais, o filme consegue oferecer uma interessante
dimensão humanista para o insólito caso do comandante Sully (Tom Hanks), que em
uma situação de emergência, em janeiro de 2009, pousou um avião lotado em pleno Rio Hudson, em
Nova Iorque, e que devido à sua perícia fez com que não houvesse nenhuma vítima
fatal. De maneira sutil, prevalece na ambientação da trama um tom de
ambiguidade – mesmo ressaltando momentos de exaltação da coragem do
protagonista, a história se permite um certo clima de ressaca moral do cenário
pós-crise econômica de 2008. Nesse sentido, a forma com que Eastwood conduz a
narrativa e o teor sócio-político da trama evocam uma atualização do cinema de
Frank Capra, em que até a atuação de Hanks emula alguns maneirismos típicos de
James Stewart.
segunda-feira, dezembro 19, 2016
Maresia, de Marcos Guttman **1/2
Existem filmes que cativam mais pelos conceitos que procura
trabalhar do que pelo seu resultado final propriamente dito. “Maresia” (2015) é
um caso exemplar disso. Dá para perceber algumas nuances interessantes no
roteiro, principalmente no que diz respeito a relação que se estabelece entre o
especialista em arte Gaspar e o seu objeto de estudo, o pintor falecido Emilio Vega,
ambos interpretados com forte intensidade por Júlio Andrade, em que os detalhes
obscuros da vida de Vega parecem determinar os tormentos existenciais de
Gaspar. Além disso, o filme apresenta uma direção de fotografia expressiva, que
sabe valorizar tantos as belas paisagens do Rio de Janeiro quanto criar uma
atmosfera sombria. Esses elementos promissores, entretanto, não conseguem se
conciliar dentro de uma narrativa satisfatória. O roteiro se perde em viradas
novelescas, além de seu subtexto ser esmiuçado sem maiores sutilezas. O tom
contemplativo da abordagem do diretor Marcos Guttmann cai no enfadonho em
algumas sequências, faltando para o filme uma mecânica narrativa mais ágil e
contundente.
sexta-feira, dezembro 16, 2016
Elas me odeiam, mas me querem, de Spike Lee ***
Mesmo em um filme que não é dos mais expressivos de sua
carreira, o diretor Spike Lee consegue deixar uma marca autoral indelével e
capaz de suscitar alguns interessantes questionamentos artísticos e
existenciais. Isso é o que fica evidente em “Elas me odeiam, mas me querem”
(2004). A intenção do cineasta era fazer uma espécie de comédia farsesca a
satirizar preconceitos raciais e valores comportamentais e sociais típicos da
sociedade burguesa ocidental. O problema da obra, contudo, é que ela exigia uma
abordagem mais ousada na construção de uma narrativa de tons libertários e de uma
atmosfera que soubesse sintetizar erotismo e ácido sarcasmo. No geral,
prevalece uma condução mais convencional de Lee, o que faz com que por vezes o
filme caia no lugar comum. Ainda assim, o diretor consegue obter alguns bons
momentos, principalmente por um notável virtuosismo na composição imagética de
algumas cenas, no diferenciado trabalho de edição, na bela trilha sonora e em
algumas passagens memoráveis do roteiro. Nesse último quesito, destaques para as
sequências em que o protagonista Jack (Anthony Mackie) se torna um bem pago reprodutor
para filhos de lésbicas, trazendo uma bem sacada combinação de ironia perversa
e quente sensualidade (Spike Lee sempre teve ótima mão para filmar cenas de
sexo).
quinta-feira, dezembro 15, 2016
Visões do passado, de Michael Petroni ***
O roteiro de “Visões do passado” (2015) está recheado dos
clichês temáticos básicos dentro do gênero horror que sintetiza o sobrenatural
e o psicológico: almas penadas, ambientação que junta o real e o metafísico no
mesmo plano, segredos e traumas mal digeridos do passado. O diretor Michael
Petroni tem a manha de saber conciliar tais traços óbvios da trama com uma
narrativa enxuta, formalismo bem estruturado e atmosferas sombrias capazes de
gerar alguma tensão para o espectador. Além disso, conta com um bom ator (Adrien
Brody) no papel principal, dando uma certa profundidade existencial para o
protagonista. Ou seja, no geral, não apresenta novidades e nem vai entrar para
história dentro do gênero, mas é bem mais divertido e envolvente do que as
produções “modernas” de horror que tanto apelam para a câmera subjetiva para
esconder a sua incompetência narrativa.
quarta-feira, dezembro 14, 2016
Conspiração e poder, de James Vanderbilt **
Um gênero que tem cadeira cativa no cinema norte-americano
nas últimas décadas é o dos dramas históricos-políticos. De certa forma, sempre
há algum diretor com a pretensão de realizar uma obra no nível de importância
artística e temática de um clássico como “Todos os homens do presidente” (1976).
“Conspiração e poder” (2015) é mais uma produção que busca tal objetivo, ao
mostrar o polêmico caso em que o programa televisivo “60 minutes” acusou o
ex-presidente George W Bush de não servir durante a Guerra do Vietnã usando a
influência política de seu pai e que depois não conseguiu sustentar suas
alegações por falta de provas, com os jornalistas envolvidos caindo em
descrédito perante o público. O assunto é interessante e complexo, refletindo
muito do jogo de poder envolvendo a mídia e o Estado, mas o tratamento formal e
narrativo proposto pelo diretor James Vanderbilt é tão desprovido de vigor e
ousadia que acaba mais provocando uma sensação de enfado para o espectador do
que alguma tensão ou mesmo indignação. Falta dinâmica e até alguma ironia
dentro dos clichês melodramáticos nos quais o cineasta se afunda. É claro que o
filme pode despertar uma certa curiosidade pelo seu lado informativo para
aqueles que se interessam pelo cenário sócio-político contemporâneo. Como cinema,
entretanto, é uma experiência bastante frustrante.
terça-feira, dezembro 13, 2016
De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow ***1/2
A filmografia do diretor norte-americano Brian De Palma é
marcada por uma grande depuração da linguagem cinematográfica. Como ele mesmo
declara em um determinado do documentário “De Palma” (2015), para ele o roteiro
tem a função de preencher uma concepção estética e narrativa que vem em
primeiro lugar na sua mente. Os cineastas Noah Baumbach e Jake Paltrow,
realizadores da mencionada produção documental, se mostram em sintonia com tais
preceitos artísticos do seu protagonista, fazendo com que o filme se baseie
quase que exclusivamente em longos depoimentos de De Palma dissecando cada uma
das produções que dirigiu. Além do detalhar o contexto histórico de realização
delas, ele discute o seu método de trabalho, principalmente em termos de
encenação, truques estéticos e concepção visual. Impressiona a autoconsciência
que De Palma demonstra nessa entrevista em relação a sua carreira, no sentido de
como depura as suas influências, principalmente no caso de Hitchcock, e discute
com lucidez sobre a recepção de seus filmes por parte de público e crítica.
Nesse último quesito, boa parte daqueles filmes que muitos consideraram
fracassos artísticos e comerciais em suas respectivas épocas de lançamento com
o tempo mereceram uma revisão mais cuidadosa e tiveram os seus vários méritos
artísticos reconhecidos. Tal fenômeno se relaciona com a sofisticação da
abordagem formal de De Palma, cuja apreensão sensorial por parte das plateias
exige um olhar mais amplo do que o mero interesse por entretenimento rápido.
Para incrementar esse panorama artístico sobre o ato de fazer cinema, Baumbach
e Paltrow inserem trechos significativos de todos os filmes discutidos em cena,
bem como de obras que influenciaram De Palma. Assim, o espectador entra numa atordoante
viagem sensorial dentro da mente de pura lógica cinematográfica de De Palma.
segunda-feira, dezembro 12, 2016
Ninguém deseja a noite, de Isabel Coixet **1/2
No subtexto da trama de “Ninguém deseja a noite” (2015) há
um forte teor de contestação dos valores sócio-culturais do mundo ocidental. As
obsessões, caprichos e preconceitos da protagonista Joséphine (Juliette
Binoche) sintetizam os interesses mercantilistas e opressores dos países
europeus colonizadores em relação aos países explorados por tais nações, com
tais intenções de dominação sendo mascarados por hipócritas máscaras de
patriotismo, religiosidade e civilidade. O problema do filme é que a
contundência desse discurso temático acaba tendo a sua força diminuída a partir
de uma abordagem narrativa atrelada ao melodrama excessivamente convencional. A
obra da diretora espanhola Isabel Coixet até consegue apresentar algumas belas
sequências em termos plásticos diante de um conjunto eficiente de fotografia e
direção de arte, mas falta uma atmosfera de tensão e violência mais
convincente, que efetivamente consiga prender o interesse da plateia. Coixet se
contenta em enveredar por facilidades narrativas, como uma trilha sonora
pomposa e onipresente e exageros sentimentais, ao invés de apostar num registro
mais sóbrio que conseguiria reproduzir com mais verdade e paixão o eterno
embate entre o indivíduo dito “civilizado” e uma natureza inclemente que não se
rende a uma suposta meritocracia.
sexta-feira, dezembro 09, 2016
Time will burn, de Marko Panayotis e Otávio Sousa ***
Para muita gente, o rock and roll significa bandas que
vendem milhares de discos, que tem shows lotados em grandes espaços (arenas,
estádios), que são famosas em termos midiáticos e outras amenidades afins. Na
realidade, tal cenário representa uma exceção dentro da história desse gênero
musical, pois grande parte do que se já fez de melhor no rock está vinculado a
situações como a de tocar em muquifos para algumas dezenas, não ter vendagens
expressivas de suas gravações, ser ignorado pela imprensa e pelo público “normal”.
Ok, também é recorrente dizer que o rock foi absorvido pelo sistema, mas ele
sempre trará dentro de si um certo aspecto de marginalidade e contestação. Por
isso que o documentário “Time will burn” (2016) consegue ser tão cativante. O
filme retrata um recorte temporal e territorial bem delimitado – o cenário
underground de bandas paulistas e cariocas no período de 1990 a 1994 que se
aventuravam dentro um som barulhento bastante influenciado por grupos
estrangeiros como Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine e Stooges. Cantando
em inglês e desenvolvendo suas carreiras dentro de um esquema independente
envolvendo gravações em cassetes “demo” ou discos por selos alternativos, apresentações
em pequenos bares e boates e divulgação por fanzines, cartazes e flyers
xerocados, nenhuma delas atingiu o sucesso comercial ou entrou para os anais da
história “oficial” do rock and roll, mas acabaram se tornando cultuadas e
influentes para alguns de seus seguidores. Para contar essa história, os
diretores Marko Panayotis e Otávio Sousa articulam uma narrativa eficaz e
envolvente e um acabamento estético que sabe sintetizar requinte e o espírito “do
it yourself”, concentrando-se basicamente na trajetória das quatros principais
bandas desse movimento (Pin Ups, Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Second
Come) e sabendo valorizar a crueza e espontaneidade nas filmagens de
depoimentos e os impressionantes registros de época com as apresentações de
tais bandas. Além disso, o filme consegue amarrar um coerente conceito existencial
e artístico que dá a devida dimensão histórica daquele fenômeno cultural,
mostrando como ele ainda é ressonante na atualidade.
quinta-feira, dezembro 08, 2016
Animais fantásticos e onde habitam, de David Yates **1/2
É bem provável que o séquito de devotos da franquia “Harry
Potter” esteja bem satisfeito com “Animais fantásticos e ondem habitam” (2016).
Para que não houvesse muitas polêmicas, os produtores colocaram como diretor o
britânico David Yates, que foi o responsável pelos últimos capítulos da série
do jovem bruxo, para que fosse entregue justamente aquilo que o seu público
esperava. Ou seja, é mais uma produção no gênero fantasia a manter um padrão
estético/temático competente e asséptico feito para não chocar a grande maioria
da audiência. Dentro dessa previsível fórmula narrativa dá até para dizer que
há alguns destaques, como a beleza plásticas de algumas soluções visuais,
movimentadas cenas de ação que por vezes divertem e um elenco de atuações
carismáticas. Mas no geral o que predomina é uma sensação de um formalismo
pouco imaginativo e de emoções plastificadas, algo como mais uma cópia pálida
da ambientação e dos maneirismos típicos da trilogia “O senhor dos anéis”. Em
alguns momentos, a trama mostra alguns vislumbres mais sombrios e
interessantes, que até sugerem uma certa perspectiva de que a narrativa
enverede por caminhos mais ousados. Essa impressão, contudo, é logo apagada
pela pegada burocrática da direção de David Yates que retira as poucas
possibilidades de uma atmosfera de tensão que efetivamente prenda a atenção do
espectador. Pode ser que “Animais fantáticos...” renda algumas semanas de
debates e discussões entre nerds, geeks e assemelhados, mas logo cairá no
esquecimento quando entrar em cartaz
mais uma produção de “Star War”, “Jogos vorazes” ou afins. É assim as
coisas seguem...
quarta-feira, dezembro 07, 2016
O filho eterno, de Paulo Machline *1/2
O que torna “O filho eterno” (2016) uma adaptação
cinematográfica frustrante do romance original de Cristóvão Tezza não é
simplesmente o fato de tal versão não ser fiel ao livro em questão, mas o fato
de representar uma medíocre antítese da proposta artística contundente de
Tezza. Afinal, a mencionada obra literária apresenta uma engenhosa combinação
entre a ficção e o real para tratar da complexa relação entre o escritor e seu
filho com Síndrome de Down, com sutilezas narrativas da prosa que apresentam
uma carga simbólica e existencial desconcertante e que também versam sobre o
confronto do conteúdo idealista e apolíneo da arte com a crueza emocional do
cotidiano e dos sentimentos humanos. Nada disso está presente no filme de Paulo
Machline, que se contenta em enquadrar a história do original literário numa
formatação asséptica e previsível, diluindo a contundência dos conflitos e
dilemas da temática numa fórmula de soluções fáceis e edificantes, fazendo tudo
parecer uma novelinha global qualquer.
segunda-feira, dezembro 05, 2016
Amnésia, de Barbet Schroeder ***
A trama de “Amnésia” (2015) estabelece uma insólita ponte
entre a Alemanha nazista dos anos 30 e 40 com a ensolarada e hedonista praia
espanhola de Ibiza nos anos 90, simbolizada no platônico relacionamento amoroso
entre Jo (Max Riemelt), um jovem DJ, e Martha (Marthe Keller), uma retraída
senhora de 70 anos, ambos germânicos “exilados” no paradisíaco litoral. O que
poderia adquirir contornos de bizarrice melodramática ganha contornos bem mais
sóbrios e profundos a partir da sutileza da abordagem narrativa do diretor
Barbet Schroeder. A direção de fotografia valoriza com sensibilidade os belos
cenários naturais de Ibiza, mas não cai no mero registro “cartão postal”,
estabelecendo, na verdade, um inquietante contraponto entre essa ambientação
agradável com o passado obscuro de Martha e a ambiguidade de sua relação com
Jo. Outro ponto alto artístico é a maneira como a música se insere no filme,
servindo como uma espécie de elo simbólico a retratar a cumplicidade entre o
par de protagonistas e também o processo de reaproximação existencial de Martha
com o mundo. Nesse sentido, os belos temas eletrônicos da trilha sonora realçam
tanto o particular contexto cultural dos cenários da trama, afinal Ibiza é o
grande ponto de convergência mundial da música eletrônica dançante, como um
certo caráter libertário de “Amnésia” na exposição das relações humanas.
sexta-feira, dezembro 02, 2016
A chegada, de Denis Villeneuve ***1/2
Talvez o grande problema para que o canadense Denis
Villeneuve se firmasse como um dos cineastas mais promissores a surgirem nos
últimos anos é uma excessiva pretensão “autoral”. Não que ambição artística
seja um problema, mas em seus filmes dava para perceber uma boa mão na
encenação e um trabalho diferenciado na direção de atores e que por vezes
falhavam como narrativa diante de um certo tom solene e excessivamente reflexivo
que deixava o ritmo de suas histórias um tanto truncado, além dos seus respectivos
roteiros se perderem em excessos novelescos. A ficção científica “A chegada”
(2016) é o filme de Villeneuve que melhor consegue resolver esse nó criativo. Assim
como em sua produção imediatamente anterior, “Sicário” (2015), fotografia e
trilha sonora são grandes pontos altos da obra, ajudando a compor uma atmosfera
melancólica e algo metafísica para uma trama versando sobre a chegada de
alienígenas na Terra, apresentando algumas referências visuais e mesmo de
ambientação que lembram Terrence Malick e Andrei Tarkovsky. A sofisticação de
tais elementos estéticos consegue se encaixar com naturalidade dentro de uma
lógica narrativa que se liga a uma estrutura de filme de gênero, ou seja, o tom
contemplativo está em sintonia com uma dinâmica tradicional da ficção
científica contemporânea. É de se ressaltar ainda a ousada concepção imagética
dos efeitos especiais e um roteiro que consegue dosar de maneira equilibrada os
clichês habituais da aventura fantástica com a pretensão e complexidade
temáticas a envolver viagens no tempo, comentário sócio-político e utopia sci
fi.
quarta-feira, novembro 30, 2016
Creepy, de Kiyoshi Kurosawa ****
O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa tem uma forte vinculação
com o cinema de gênero, principalmente na área de interligação entre o suspense
e o horror, mas sua abordagem artística é bastante diversa daquela de produções
nipônicas como “O chamado” (1998) e derivados. Isso fica bastante evidente em
sua obra mais recente, “Creepy” (2016). Não há grandes inovações em termos
formais e temáticos, e por vezes até pode haver um certo incômodo com algumas incongruências do roteiro. O forte de Kurosawa está na construção de uma atmosfera
densa e perturbadora de tensão e terror, na caracterização bizarra de
personagens e situações, na forte e sutil simbologia da trama e numa encenação
desconcertante que varia do intimismo dramático ao puro horror gore. Os clichês
narrativos tradicionais do gênero estão presentes de maneira constante, mas uma
das grandes sacadas do cineasta está na sua criatividade e virtuosismo
estéticos em manipular tais recursos e os colocar em cena sob uma perspectiva
insólita e mesmo de caráter desafiador. Nesse sentido, a relação emocional que
se estabelece no triângulo composto pelo protagonista Takakura (Yuko Takeuchi),
sua esposa Yasuko (Hidetoshi Nishijima) e o asqueroso psicopata Nishino
(Teruyuki Kagawa) revela nuances existenciais inquietantes, principalmente na
forma com que questiona valores morais e comportamentais. A lógica e prática distorcidas
de Nishino em induzir laços emocionais estimulando o vício em drogas pesadas e
exterminar famílias parece evocar uma espécie de expiação das hipocrisias da
sociedade moderna. Por trás desse discurso ambíguo há um complemento formal de
coerência sensorial impressionante, vide a fotografia de tons sombrios, a
trilha sonora de temas efetivamente assustadores e a edição que conduz a narrativa
como se fosse um macabro conto gótico.
terça-feira, novembro 29, 2016
Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil, de Belisário Franca ***
A premissa básica do argumento de “Menino 23: Infâncias
perdidas no Brasil” (2016) pode fazer pensar até numa obra de cunho ficcional
beirando o fantástico: nos anos 30, garotos negros órfãos são levados do Rio de
Janeiro para uma grande fazenda do interior de São Paulo de propriedade de
simpatizantes do integralismo e do nazismo e lá são submetidos a condições de
escravidão. Ocorre, entretanto, que o filme dirigido por Belisário Franca é um
documentário, ou seja, mostra fatos que realmente aconteceram, o que torna tudo
ainda mais assustador e revoltante. A abordagem formal de Franca é simples e
direta, utilizando depoimentos recentes, encenação discreta e registros
audiovisuais de arquivo. A partir de tal recursos, o diretor consegue obter uma
síntese narrativa eficiente e de impacto, conciliando de maneira precisa o
aspecto histórico/didático, ao mostrar o contexto sócio-político do racismo
naquele período, com o fator intimista/dramático, dando a palavra a dois homens
que fizeram parte de tal “experimento” nefasto. A partir desse conjunto
estético-temático, “Menino 23” traça um perfil complexo e contundente da
trajetória do preconceito racial no Brasil, mostrando também como tal questão
está intrinsecamente ligada aos mecanismos de opressão para perpetuação no
poder de uma oligarquia econômica, evidenciando uma sintonia, dessa forma, com
alguns fatos bem recentes da história do nosso país.
segunda-feira, novembro 28, 2016
Snowden - Herói ou traidor?, de Oliver Stone ***1/2
Parte significativa da filmografia do diretor
norte-americano Oliver Stone é dedicada a fazer uma espécie de inventário
sócio-político-cultural da história do seu país. Dentro desse nicho, seu maior
acerto artístico foi “JFK” (1991), que apresentava uma combinação notável entre
narrativa dinâmica e envolvente e um conteúdo aprofundado e inquietante sobre a
temática que versava. Essa síntese também é o grande mérito de “Snowden – Herói
ou traidor” (2016), obra mais recente de Stone, que foca a história do
ex-agente da CIA que denunciou os mecanismos de espionagem virtual praticada
pelos Estados Unidos. Ainda que o filme se renda a alguns convencionalismos
narrativos, a noção de ação cinematográfica é muito bem trabalhada, vide a
edição que incorpora com naturalidade e coerência efeitos digitais a simularem
o mundo da virtualidade e a encenação vigorosa e bem coreografada que extrai
uma tensão perturbadora nas sequências mais cruciais em termos dramáticos. O roteiro
apresenta um certo traço panfletário, o que fica evidente na caracterização
maniqueísta de personagens e situações, mas ao mesmo tempo sabe valorizar a
complexidade dos dilemas morais e contradições de seu protagonista, além de
mostrar detalhes das operações políticas e de segurança do governo norte-americano
que geralmente são tratadas com superficialidade na mídia “oficial”. Para falar
a verdade, é até provável que a falta de escrúpulos da CIA e do NSA a
investigarem indevidamente cidadãos nativos e governos estrangeiros seja muito
mais acentuada e cruel na realidade do que na simulação de uma obra para o
cinema. E ainda que tais fatos retratados no filme sejam ainda relativamente
recentes, a abordagem de Stone traz um traço atemporal ao deixar evidente mais
um dos métodos da permanente opressão de governos e grandes corporações sobre
os indivíduos.
sexta-feira, novembro 25, 2016
BR 716, de Domingos de Oliveira ***1/2
Alguns dos filmes mais recentes do diretor Domingos de
Oliveira pecavam por um acabamento formal meio qualquer nota e um texto
autoindulgente, vide “Juventude” (2008) e “Paixão e acaso” (2012). Em “BR 716”
(2016), o cineasta corrige esse rumo criativo e entrega um dos seus trabalhos
mais expressivos e cativantes. Para começar, ele conta com uma direção de
fotografia de notável beleza plástica, num registro preto e branco que sublinha
com sensibilidade uma atmosfera mista de nostalgia e onirismo. Por se tratar de
uma obra de caráter memorialista e autobiográfica, marca de grande parte da
filmografia de Domingos, a narrativa vem marcada por algo de difuso e
exuberante, como se as lembranças viessem sob um prisma exagerado e sem um
grande compromisso com o “real”. Essa preferência pelo subjetivismo acaba
tornando o filme muito mais visceral e verdadeiro na forma com que retrata com
crueza e carinho os dilemas e contradições existenciais do protagonista Felipe
(Caio Blat), alter ego do diretor. Outro trunfo de “BR 716” é a uma encenação
que sabe unir rigor e um teor libertário, havendo um dinamismo coerente tanto
nas sutilezas dramáticas e cômicas dos momentos mais intimistas quanto na
caracterização dionisíaca das festas constantes promovidas por Felipe. Por se
tratar de um retrato geracional focado no Rio de Janeiro de 1964, há momentos
que a produção assume alguns clichês narrativos um tanto ingênuos na sua
contextualização histórica, mas isso na realidade se incorpora com naturalidade
dentro do próprio espírito de melancolia nostálgica da obra. Domingos de
Oliveira ainda acerta num dos pontos que costuma ser o seu forte, a direção de
atores, fazendo com que o seu elenco mostre algumas atuações memoráveis, como a
evocação de uma diva esfuziante de Sophie Charlotte, a caracterização alucinada
de Glauce Glima e mesmo a intepretação de Blat, que faz uma verdadeira
possessão incorporando os trejeitos e maneirismos típicos de Oliveira.
quinta-feira, novembro 24, 2016
Cinema Novo, de Eryk Rocha ***1/2
Seria um tanto incoerente fazer um documentário sobre o Cinema
Novo utilizando uma linguagem convencional e acadêmica, tendo em vista o fato
do movimento deflagrado por Glauber Rocha e outros inquietos cineastas ter
procurado justamente romper com tradicionalismos mofados dentro da ordem
cinematográfica. Por esse motivo, o cineasta Eryk Rocha adota uma via criativa
e ousada em “Cinema Novo” (2016) – ao invés de simplesmente “contar uma
história” utilizando os recursos mais óbvios nesse tipo de produção como se
fosse uma reportagem, ele preferiu fazer o espectador entrar numa viagem
sensorial dentro de um imaginário delirante e criativo para ter uma ideia do
significado artístico e existencial das principais obras daquele período e de
seus criadores. Nesse sentido, a citação visual direta de “O encouraçado
Potemkin” (2016) não é gratuita, pois o enfoque na montagem, o grande legado de
Serguei Eisenstein, é o principal mote criativo no documentário em questão.
Praticamente todo o material audiovisual é composto de trechos documentais da
época e cenas dos principais trabalhos do Cinema Novo e de obras que
influenciaram, foram influenciadas ou simplesmente tiveram alguma sintonia com
tais produções cinemanovistas. Eryk Rocha organiza as ideias sobre a sua
temática dentro de uma linha teórica delimitada com precisão e sensibilidade,
criando dessa forma uma trama sutil e complexa. Há o surgimento explosivo dos
filmes, o momento em que os cineastas discutem suas criações e o contexto
sócio-cultural que as envolvem, o impacto que os filmes causam no Brasil e no
mundo e, por fim, os motivos que levam à implosão do movimento e a dispersão de
seus principais diretores. É fascinante a forma com que o documentarista
estrutura o seu caleidoscópio narrativo dentro dessa lógica histórica, fazendo
com que um mosaico de conceitos, abordagens e discursos diversos e muito
pessoais ganhem uma coerência intrínseca na leitura que fazem do Brasil e do
cinema do passado, do presente e do futuro.
quarta-feira, novembro 23, 2016
Elle, de Paul Verhoeven ****
A produção francesa “Elle” (2016) é uma bela síntese das
concepções autorais muito particulares do cineasta holandês Paul Verhoeven,
combinando refinamento narrativo com um sensorialismo visceral. Estão lá boa
parte dos clichês básicos do gênero suspense, mas eles são manipulados com uma
elegância fenomenal e ao mesmo tempo também são pervertidos dentro de uma trama
repleta de desdobramentos insólitos e um forte conteúdo simbólico (nesse
sentido, é antológica a sequência do jantar de natal, em que a composição e
dinâmica da mesa reflete as divisões sócio-econômicas-culturais da sociedade
ocidental contemporânea). O roteiro em sua primeira metade até insinua um
formato que evoca a atmosfera de algumas obras de Alfred Hitchcock, principalmente
naquela fórmula “quem é o culpado”, mas esse direcionamento aparentemente
convencional vai se tornado cada vez mais difuso, com Verhoeven transformando a
narrativa numa espécie de perturbadora parábola moral. Os dilemas e
contradições da protagonista Michèle (Isabelle Huppert) são complexos e por
vezes até bizarros, mas exalam uma humanidade crua e contundente na forma
plural com que as diversas facetas da personagem se expõem e interagem
(sentimental/existencial/profissional). Esse contexto temático repleto de
nuances recebe um tratamento formal bastante lapidado, com destaque para a
encenação precisa na sua junção de naturalidade e detalhismo imagético, vide as
intensas cenas de sexo e violências (aliás, na melhor tradição Paul Verhoeven),
e as sequências em que os games eletrônicos se inserem na narrativa, guardando
uma correlação irônica sensacional com aquilo que se passa no mundo “real” da trama,
além da trilha sonora tensa e sedutora e o elenco de atuações antológicas
(Huppert, por sinal, num dos grandes momentos de sua expressiva carreira).
terça-feira, novembro 22, 2016
Depois da tempestade, de Hirokazu Koeeda ***
Em suas obras mais recentes, o cineasta japonês Hirokazu
Koeeda vem formatando seu estilo dentro do gênero do melodrama familiar. Nessa
vertente, ainda que não apresente nada tão contundente quando o drama
fantástico “Depois da vida” (1998) ou o suspense intimista “Ninguém pode saber”
(2003), o diretor lançou trabalhos que se afastam de uma abordagem óbvia ou do
sentimentalismo excessivo. Esse é o caso de “Depois da tempestade” (2016). A
história do escritor e detetive Ryota (Hiroshi Abe) que se sente frustrado
pelas dificuldades financeiras e pelo fracasso do casamento é enquadrada numa
narrativa sóbria e num roteiro que não abre concessões fáceis. A caracterização
de personagens e situações é delineada de maneira sensível e complexa, o que
cria tanto tensão dramática para o filme quanto empatia com o espectador. A
marca autoral de Koeeda é nítida de maneira sutil – a síntese entre formalismo
e temática tem notável coerência artística e se mostra desafiadora ao não se
adaptar às necessidades comerciais de se mostrar acessível, preservando a
crueza dos sentimentos e sensações dos personagens e dispensando um final feliz
e conciliador artificioso.
segunda-feira, novembro 21, 2016
Dr. Estranho, de Scott Derrickson ***
Por mais que haja uma coerência na forma com que os filmes
interagem dentro do seu universo e uma competente qualidade narrativa nas suas
realizações, a atual linha de produções cinematográficas da Marvel não permite
grandes variações e ousadias dentro de sua fórmula artística – claro que com
algumas honráveis exceções, como “Os guardiões da galáxia” (2014). Dentro dessa
lógica, “Dr. Estranho” (2016) é um exemplar bastante sintomático de tal
situação. Estão presentes boa parte dos preceitos formais e temáticos que já
pautaram os demais filmes das outras franquias, principalmente no que diz
respeito às obras que mostram as origens dos super-heróis, e que de certa forma
também são característicos dos próprios quadrinhos que as inspiraram. O diretor
Scott Derrickson segue tão à risca essa cartilha que por vezes temos a
impressão de se estar assistindo a refilmagem de “O homem de ferro” (2008), só
que por um prisma místico (as piadinhas bestas, por exemplo, são as mesmas).
Ainda assim, o ritmo da narrativa tem uma desenvoltura cativante e as cenas de
ação tem uma coreografia bem resolvida. E se por um lado o roteiro tem uma
mecânica um tanto previsível em excesso e falte uma efetiva tensão dramática
capaz de surpreender o espectador (culpa principalmente de um vilão sem graça, o
que é recorrente nos filmes da Marvel), há de se destacar como a questão do
misticismo é bem incorporada na trama, apresentando tanto alguns conceitos bem
interessantes quanto rendendo algumas sequências de força imagética
deslumbrante.
sexta-feira, novembro 18, 2016
Tio Bernard - Uma antilição de economia, de Richard Brouillette ****
O grande trunfo artístico de “Tio Bernard – Uma antilição de
economia” (2015) está na ligação estético-existencial que se estabelece no
discurso sócio-político-econômico do seu protagonista, Bernard Maris,
economista e editor do periódico humorístico Charlie Hebdo, com a formatação
concebida pelo diretor Richard Brouillette. A narrativa do documentário
consiste basicamente num longo depoimento do citado intelectual, dado no ano de
2000, dissecando as contradições e hipocrisias do capitalismo moderno e também
expondo os mecanismos de manipulação e opressão escondidos por trás dos
discursos edificantes de livre mercado e prosperidade propagados por grande
parte de economistas e tecnocratas. Para acompanhar tal diatribe lúcida e
desafiadora, Brouillette utiliza uma abordagem que sintetiza urgência,
contenção de recursos e um teor reflexivo sobre o seu próprio mecanismo de
realização, em que mesmo detalhes de bastidores refletem uma atmosfera de
contestação e ironia. A edição se efetiva nas trocas de rolos de película,
detalhe esse que é incorporado dentro da própria encenação como recurso
dramático-cômico (é de se reparar que nesses “intervalos”, em que a tela
escurece, tio Bernard continua a falar sem parar e até acentua a acidez de suas
tiradas). O talento oratório, a capacidade de fundamentação arguta e o carisma de
Marin são aproveitados ao máximo diante dessa linguagem cinematográfica que
combina com precisão sofisticação e fúria. Tais soluções narrativas afastam a
obra do campo da simples reportagem e a configuram como um contundente libelo
humanista-artístico contra um ordenamento social e político marcado pela
injustiça e o absurdo e ajudam a entender como uma figura como a do tio Bernard
pode perturbar tanto o status quo vigente. Não por acaso, ele estava entre as
vítimas do lamentável atentado terrorista sofrido pelo Charlie Hebdo em janeiro
de 2015.
quinta-feira, novembro 17, 2016
O plano de Maggie, de Rebecca Miller ***
A influência que talvez mais salte aos olhos ao se assistir
a “O plano de Maggie” (2015) seria a filmografia de Woody Allen. A diretora
norte-americana Rebecca Miller evoca algumas referências tanto do estilo de
filmar quanto na concepção de roteiro típicos do estilo de Allen. Estão lá a
concepção formal que por vezes emula uma espécie de documentário caseiro, o
senso de humor que sintetiza leveza e amargura, a trama repleta de situações
entre o inusitado e o embaraçoso, além de personagens confusos em termos
sentimentais e existenciais. O resultado final, contudo, está longe do mero
pastiche. Os truques dramáticos e cômicos da história são eficientes em suas
cirandas amorosas e quiproquós familiares, além de condensarem com alguma
crueza alguns dos principais dilemas e contradições de uma certa classe média
intelectual contemporânea. A encenação proposta por Miller tem naturalidade e
apresenta nuances que procuram fugir das soluções fáceis, tendência essa que é
reforçada pela trinca principal do elenco em interpretações que trazem
complexidade e ironia nas doses certas.
quarta-feira, novembro 16, 2016
Indignação, de James Schamus **1/2
Transpor o universo literário do escritor Philip Roth para o
cinema é uma tarefa penosa. A produção norte-americana “Indignação” (2016) é um
exemplo enfático de tal dificuldade. Estão lá na trama as habituais obsessões
temáticas-existenciais do autor – o questionamento dos valores éticos e morais
da sociedade norte-americana, a exposição dos preconceitos raciais e sociais,
os tormentos sexuais de personagens complexos. O problema é que tais temas são
trabalhados de forma artificial e solene tanto pelo roteiro quanto pela
encenação, retirando, dessa forma, a verve e a ironia com que Roth costuma
tratar esse material em seus romances. A linguagem literária também não consegue
se consolidar em outro tipo de narrativa – a descrição oral em primeira pessoa
do protagonista Marcus Messner (Logan Lerman) é excessiva e afetada, roubando
um espaço essencial que deveria ser ocupada pela concepção imagética do filme.
Assim, falta sutileza e uma efetiva profundidade na forma com que personagens e
situações são desenvolvidos. Ainda que a fotografia e a direção de arte
demonstrem alguma beleza visual na sua reconstituição dos anos 50 e a atuação
de Olivia Hutton apresente um interessante encanto, “Indignação” tem um
resultado final falho na sua proposta de dissecação sensorial das hipocrisias
arraigadas dos Estados Unidos devido a uma abordagem estética e textual que
carece de força e ousadia.
sexta-feira, novembro 11, 2016
Busca insaciável, de Milos Forman ****
Quando se fala na fase norte-americana da carreira do cineasta tcheco Milos Forman, logo vem à mente filme antológicos como “Um estranho no ninho” (1975), “O povo contra Larry Flynt” (1996) e “O mundo de Andy” (1999). Pouco se comenta, entretanto, sobre sua produção de estreia nos Estados Unidos, “Busca insaciável” (1971), o que é uma grande injustiça, pois se trata de uma obra que está, no mínimo, no mesmo nível artístico dos trabalhos mencionados. A formatação narrativa mantem muito da original abordagem de linguagem cinematográfica que Forman praticava em alguns de seus filmes mais marcantes realizados em seu país natal como “Os amores de uma loira” (1965) e “O baile dos bombeiros” (1967) – é de se reparar, por exemplo, que a sequência inicial de “Busca insaciável” em que vários jovens, num inventivo truque de edição, cantam a mesma música é semelhante à da jovem que canta ao violão na abertura de “Os amores de uma loira”. Assim, a visão de ironia ácida de Forman sobre os hipócritas valores sócio-culturais da sociedade norte-americana da época (e que se mantém até hoje, vide a recente eleição de Donald Trump) vem embalada por um sofisticado formalismo que combina uma direção de fotografia seca e objetiva e uma edição de cortes insólitos. A contundência de tal estética se alia a uma esquisita e sardônica atmosfera de distanciamento emocional, gerando um efeito desconcertante para o espectador – a aparente frieza da encenação esconde uma grande tiração de sarro do reacionarismo e visão obtusa do americano norte-americano médio. Nesse sentido, é particularmente brilhante a sequência em que respeitáveis pais de família fumam maconha num evento social para tentar entender os motivos dos filhos terem fugido de casa. No mais, é curiosa como essa reflexão sobre o período do flower power acaba se relacionando com outro filme de Forman que versava sobre temática semelhante, o musical “Hair” (1979), formando um expressivo e amargo panorama sobre a contracultura.
quinta-feira, novembro 10, 2016
O pecado de Hadewijch, de Bruno Dumont ***1/2
A filmografia do diretor francês Bruno Dumont é baseada numa
síntese bastante particular de preceitos artísticos e existenciais que remetem
a cineastas como Roberto Rossellini e Robert Bresson. Assim, seus filmes
abarcam uma estranha combinação de conto moral e formalismo rigoroso e
ascético, em que a exposição do mal estar e inquietações ético-religiosas da
sociedade ocidental contemporânea vem acompanhada de uma linguagem estética
contida e distanciada na configuração de seu modus operandi. “O pequeno
Quinquin” (2014) é a representação mais expressiva das concepções insólitas de
Dumont, mas “O pecado de Hadewijch” (2009) mostra que esse estilo já estava
cada vez mais delineado em suas nuances de sensibilidade e esquisitice. A
trajetória da protagonista Céline (Julie Sokolowski) em busca de redenção
espiritual e de uma aproximação mais íntima com uma divindade superior é
esmiuçada numa narrativa seca e sem concessões, em que elementos como a ironia
e a sensualidade se manifestam com discrição perversa. No meio dessa jornada
intimista, Dumont estabelece uma sutil amostragem sócio-cultural da Europa
desse século, principalmente em questões conflitantes e contraditórias como o
preconceito racial e o fanatismo religioso.
quarta-feira, novembro 09, 2016
Curumim, de Marcos Prado ***1/2
O que diferencia um documentário cinematográfico de uma
reportagem audiovisual? A pergunta pode parecer complexa e para alguns a
fronteira entre esses dois gêneros narrativos é até muito tênue, mas um filme
como “Curumim” (2016) acaba por estabelecer uma diferenciação bastante contundente.
O assunto principal de sua trama, a prisão e fuzilamento do brasileiro Marco
Archer na Indonésia por tráfico de drogas, foi bastante comentado na mídia. A
abordagem concebida pelo diretor Marcos Prado, entretanto, afasta-se do
meramente informativo, fazendo com que a sua obra seja uma viagem existencial
perturbadora tanto na mente de seu protagonista quanto nas circunstâncias
históricas e sociais do período abrangido na trajetória de Archer. Para isso,
Prado utiliza recursos diversos para compor a narrativa – filmagens próprias,
registros obtidos por Archer na prisão (onde aguardou por mais de 10 anos pela
sua execução), imagens de arquivo, depoimentos e até mesmo encenações. A edição
consegue equilibrar de maneira notável a precisão de um formalismo “profissional”
com o caráter amador de algumas tomadas, criando uma atmosfera ambígua na sua
mescla de “filme caseiro” e sóbrio retrato geracional. O formalismo criativo
articulado pelo cineasta consegue captar com sensibilidade e vigor as nuances
dramáticas da história contada, abrangendo a era de hedonismo e inocência do
Rio de Janeiro dos anos 70 e 80, a decadência de uma classe alta brasileira de
perfil aristocrático na virada do século, os “causos” movido a aventuras e
drogas do protagonista ao redor do mundo e a sua final degradação física e
mental trancafiado numa prisão fuleira nos cafundós da Ásia. Nesse relato sombrio
que se situa num ponto difuso entre o épico e o intimista, “Curumim” ainda se
permite de maneira sutil uma amarga reflexão sobre o sistema de valores
distorcidos que envolvem questões polêmicas como a pena de morte e o combate ao
tráfico de drogas. Nesse amplo espectro temático, as ambições artísticas e contestadoras
de Prado se mostram elevadas, com o cineasta dando conta de tais intenções com
a criatividade e ousadia das soluções narrativas e de conteúdo de uma produção
memorável.
terça-feira, novembro 08, 2016
A viagem de meu pai, de Philippe Le Guay ***
Dentro de uma temática já bastante abordada por outras
produções cinematográficas, a das dificuldades da velhice, “A viagem de meu pai”
(2015) não chega a ser uma obra-prima, mas ainda assim consegue apresentar
algumas surpresas positivas capazes de gerar inquietação para o espectador. A
maior delas é a forma com que o diretor Philippe Le Guay formata a sua
narrativa, que se desenvolve a partir de uma relação com a própria dinâmica do
processo gradual de senilidade do protagonista Claude Lherminier (Jean
Rochefort). Assim, as noções de tempo e realidade vão se tornando cada vez mais
difusas com o avançar da trama, ainda que a encenação evoque um tom
naturalista, fazendo com que fatos corriqueiros do cotidiano convivam em uma
estranha harmonia com toques oníricos e por vezes delirantes. É mérito também
do filme em manter uma atmosfera de sobriedade emocional, em que situações melancólicas
e mesmo cruéis não são expostas com obviedades sentimentais, prevalecendo uma
certa crueza existencial e se permitindo até em alguns momentos uma dose de
ironia. Claude não é retratado de forma simplista como uma mera vítima de sua
condição como idoso – os percalços pelos quais ele e sua família passam ganham
uma condição de inevitabilidade do destino, sugerindo-se ainda como
consequências de atos praticados pelo protagonista quando mais jovem e de seu
próprio e inato temperamento orgulhoso. Dentro dessa proposta de Le Guay, a
atuação de Rochefort ganha especial ressonância, pois sua interpretação é
repleta de notáveis nuances dramáticas e cômicas.
segunda-feira, novembro 07, 2016
Canção da volta, de Gustavo Rosa de Moura **1/2
Os conceitos estéticos e existenciais de “Canção da volta”
(2016) são consistentes e inquietantes. A trama que que trata das consequências
práticas e sentimentais provocadas pelas crises de depressão de Julia (Marina
Person) para sua família apresenta um subtexto desafiador no sentido de
questionar os preceitos comportamentais de uma classe média dita civilizada e
humanista. A concepção narrativa procura acompanhar esse caráter ousado do
roteiro, valendo-se de uma estrutura temporal que por vezes se afasta do
linear, como se mostrasse em sintonia com o caráter errático da personalidade
da protagonista. O problema central da produção dirigida por Gustavo Rosa de
Moura, entretanto, está numa encenação um tanto engessada e que não acompanha
esse espírito libertário da história que é contada. Falta uma maior
desenvoltura na interação dos atores com aquilo que é contado em cena, fruto de
uma excessiva racionalização na hora de colocar as ideias em prática. Os
melhores momentos da obra são aqueles em que a forma e o conteúdo encontram uma
síntese mais livre e espontânea, vide a sequência em que Julia entra em uma
espécie de transe e dança sozinha esbarrando pelos móveis da casa ou as tomadas
das aulas de balé da personagem – tais trechos imagéticos conseguem apresentar
uma carga simbólica forte apenas pelo vigor da ação e sintetizam melhor o
espírito contestador de “Canção da volta”. Se o diretor tivesse mantido esse
tipo de solução narrativa, talvez seu filme tivesse apresentado um resultado
artístico semelhantes a produções memoráveis que versaram sobre temática
semelhante como “Possessão” (1981) e “Melancolia” (2011).
sexta-feira, novembro 04, 2016
O contador, de Gavin O'Connor ***
A descrição de “O contador” (2016) como uma espécie de cruza
picareta entre a “Bourne” com “Gênio indomável” (1997) pode parecer um exagero
jocoso, mas também não deixa de ter a sua pertinência. Ou seja, pelo menos em
termos de premissa de trama, a produção em questão não passa de uma bobagem
escapista. Sorte que o diretor Gavin O’Connor, o mesmo do excelente “Guerreiro”
(2011), consegue oferecer um senso narrativo envolvente e faz com que o roteiro
sobre um contador autista com apurado treinamento militar que desvenda e
destrói uma conspiração corporativa consiga gerar alguma tensão e interesse
para o espectador. As cenas de ação envolvendo lutas e tiroteios são
coreografadas com clareza e filmadas com uma fotografia elegante. Esse
formalismo concebido por Gavin O’Connor é até previsível, entretanto é
executado com precisão e convicção. Até a habitual inexpressividade de Ben Affleck
consegue ser aproveitada dramaticamente tendo em vista o distúrbio do
protagonista. E é interessante também notar que mesmo uma história repleta de
inverossimilhanças como a apresentada no filme revela um subtexto um tanto
nebuloso, na forma com que a lei e seus respectivos agentes (policiais,
políticos e afins) são retratados como ineficientes na busca de justiça, e
reforçando a necessidade de indivíduo suprir tais “lacunas” com iniciativas
próprias truculentas. Os fãs da barbárie de toga no Brasil provavelmente vão se
identificar...
quinta-feira, novembro 03, 2016
Lolo: O filho da minha namorada, de Julie Delpy ***
A filmografia de Julie Delpy como diretora parece girar
dentro de uma fórmula narrativa simples – crônicas familiares que além da
reflexão sobre as relações pessoais também apresentam um subtexto
sócio-político. Dentro desse conceito artístico, o ponto alto da carreira da
cineasta é o extraordinário “O verão do Skylab” (2011). “Lolo: O filho da minha
namorada” (2015) não apresenta o mesmo nível de qualidade, mas ainda assim tem
os seus pontos inquietantes. Num primeiro momento, o espectador se sente
envolvido pelos eficientes truques cômicos relacionados aos planos perversos do
jovem Lolo (Vincent Lacoste) para acabar com o namoro de sua mãe, a cosmopolita
Violette (Delpy), com o ingênuo interiorano Jean-René (Dany Boon), rendendo
algumas divertidas cenas que envolvem um humor físico que beira o pastelão e o
escatológico. Numa visão mais atenta da trama e mesmo da encenação concebida
por Delpy, entretanto, pode-se perceber algo de sombrio e irônico em detalhes
como a caracterização psicótica de Lolo, a violência física e psicológica de
algumas das “brincadeiras” do personagem-título e as sutis ironias que se fazem
em determinadas situações do roteiro que envolvem questões de classe e a atual
situação econômica da Europa. De se considerar também a crueza de alguns
diálogos a expor a sexualidades e as seguranças existenciais de uma mulher
adulta na sociedade contemporânea. Ainda que o final feliz agridoce do filme
represente uma espécie de concessão típica de uma comédia romântica, “Lolo”
reforça a impressão de que Delpy possui um traço autoral na forma com que
elabora suas narrativas cinematográficas.
terça-feira, novembro 01, 2016
Demônio de neon, de Nicolas Winding Refn ****
A obra-prima “Drive” (2011) se provou como uma
extraordinária exceção dentro do estilo habitual do diretor Nicolas Winding
Refn, pois era uma obra marcada por uma narrativa precisa e de formalismo
clássico que se adaptava de acordo com a marca autoral do cineasta. Nas demais
produções de sua filmografia, o dinamarquês investe numa abordagem que valoriza
muito mais o sensorial e o atmosférico do que os meandros do roteiro, vide
filmes antológicos como “O guerreiro silencioso” (2009) e “Apenas deus perdoa”
(2013). “Demônio de neon” (2016) é uma continuação dos preceitos artísticos de
Refn – imagine-se um conto moral às avessas sobre a beleza e a inocência
marcado por uma ambientação difusa de hedonismo, horror e delírio onírico e se
pode ter uma ideia do que representa essa estranha narrativa. As referências
visuais e temáticas são diversas e insólitas, como o horror sensual e barroco
de Mario Bava, as nuances enigmáticas de David Lynch, o realismo de corres
berrantes de algumas produções oitentistas (leia-se “O fundo do coração” e “Dublê
de corpo”). Refn amarra todas essas influências e citações dentro de uma linguagem
coesa e particular, fazendo o espectador entrar num vórtice de loucura,
violência e erotismo, ora repugnante, ora bizarramente encantador. O esmero
estético se manifesta em cada detalhe do filme e não se reduz a mero exibicionismo
técnico, revelando notável sintonia existencial com a própria natureza
misteriosa e simbolista do roteiro, conforme pode ser observado na climática trilha
sonora de temas eletrônicos, na fotografia que varia com notável desenvoltura
entre o sombrio sutil e o luminoso exagerado, na encenação de síntese desconcertante
entre o naturalismo e o estilizado, na caracterização maneirista e icônica dos
personagens. Por falar nisso, é curioso perceber que no elenco da produção está
Karl Grusman, que atuou no papel principal de “Love” (2015), de Gaspar Noé, cineasta
que é uma espécie de gêmeo criativo existencial de Refn.
segunda-feira, outubro 31, 2016
A nona vida de Louis Drax, de Alexandre Aja ***1/2
O diretor francês Alexandre Aja é um dos nomes mais
interessantes a terem surgidos no panorama mundial do cinema fantástico nos
últimos anos. Sua filmografia é baseada numa síntese artística bastante pessoal
e marcante, combinando grafismo exagerado, senso narrativo preciso e atmosferas
entre o doentio e o delirante, vide obras memoráveis como “Alta tensão” (2003),
“Viagem maldita” (2006) e “Piranha 3D” (2010). Em sua obra mais recente, “A
nona vida de Louis Drax” (2015), Aja mantém a sua marca autoral e ainda envereda
por uma insólita recriação do suspense psicológico característico de algumas
produções de Alfred Hitchcock (principalmente o clássico “Quando fala o coração”)
sob um prisma de conto fabular à maneira de Tim Burton e Guillermo Del Toro.
Essa junção de elementos estéticos diversos acaba tendo um resultado final
bastante coeso. A trama é algo rocambolesca, repleta de flashbacks e alternando
inclusive planos dimensionais (o real, o imaginário e o onírico), mas Aja
consegue dar uma unidade impressionante e nada confusa dentro desses universos
temporais e existenciais paralelos. Os elementos psicanalíticos podem parecer
manjados num primeiro momento ao versarem sobre pulsões homicidas, desejos
sexuais difusos, o mar como símbolo da segurança materna e mitomania, mas com o
tempo eles acabam se revelando funcionais e intrigantes, ainda mais quando se
integram ao apuro visual expressivo de Aja e a sua dinâmica narrativa que emula
uma verdadeira jornada dentro de um pesadelo úmido e sombrio. Dentro dessa
lógica artística peculiar e marcada pela morbidez romântica, o cineasta também
acerta na forma com que dirige o seu elenco, de quem arranca algumas composições
dramáticas antológicas, com destaque para a caracterização meio alucinada do
garoto Aiden Longworth no papel título e para atuação no estilo “loira
enigmática e fatal” de Sarah Gandon (e que faz lembrar algumas personas
inesquecíveis nessa linha criadas por Hitchcock).
sexta-feira, outubro 28, 2016
Terra estranha, de Kim Farrant ***1/2
As regiões desérticas da Austrália têm um histórico
interessante como cenário expressivo de produções relevantes na história do
cinema, vide produções antológicas como “A longa caminhada” (1971), “O corte da
navalha” (1984), “A proposta” (2006) e toda a franquia “Mad Max”. Essa
fascinante tradição se mantém em “Terra estranha” (2015), obra em que o deserto
australiano funciona quase como se fosse um personagem próprio da trama, ditando
não só as intempéries físicas sofridas pelos indivíduos como também servindo de
fator simbólico das confusões existenciais de tais figuras. Em sua superfície,
o roteiro tem como mote principal o desaparecimento de um casal de jovens
irmãos numa árida cidade interiorana e toda a sorte que dúvidas e suspeitas que
um evento como esse pode suscitar. A diretora Kim Farrant usa alguns clichês
narrativos do gênero suspense, mas essa rendição ao convencional é ilusória.
Aos poucos, a narrativa vai se tornando cada vez mais atmosférica e misteriosa,
dando vazão a uma série de cenas marcadas por um perturbador misto de languidez
a flor-da-pele, desejos difusos e frustrações sentimentais. A procura pelos
adolescentes vai se tornando um processo de expiação de culpas e acerto de
contas com o passado obscuro dos personagens. Farrant acerta no alvo ao não se
preocupar com as aparentes pontas soltas da trama, levando mais em conta as consequências
psíquicas dos fatos do que se concentrando em encontrar “bandidos”, o que fica
evidenciado na poética, enigmática e algo libertária conclusão do filme. A
abordagem estética adotada por Farrant para essa saga existencial é outro
grande acerto, com uma direção de fotografia magnífica a explorar a riqueza de
nuances imagéticas proporcionada pelos cenários desérticos em termos de
iluminação e enquadramentos, além da climática trilha sonora que acentua ainda
mais a síntese de mistério e delírio da narrativa. De se considerar ainda as
atuações de Nicole Kidman e Joseph Fiennes, que entregam algumas das
composições dramáticas mais complexas de suas carreiras.
quinta-feira, outubro 27, 2016
A passageira, de Salvador Del Solar ***
Assim como na produção argentina “Kóblic” (2016), o filme
peruano “A passageira” (2014) procura formatar uma reflexão sobre a ditadura
militar na América Latina dentro de uma estrutura de cinema de gênero (no caso,
o suspense policial). Se na citada obra portenha tal propósito fica apenas na
intenção, ainda que resulte num divertido faroeste reciclado, no trabalho do
diretor Salvador Del Solar essa síntese entre questionamento político-social e formatação
de gênero soa mais homogênea e convincente, tendo como principal responsável
para isso um roteiro muito bem delineado em seu desenvolvimento e subtextos. Há
nuances na trama que revelam um forte caráter simbólico a refletir uma
sociedade marcada pela opressão e exploração de classes. Nesse sentido, a
figura da personagem Celina (Magaly Solier), nativa de uma vila indígena
exterminada por militares na época da ditadura, é bastante emblemática – quando
adolescente, abusada por militares; na fase adulta, explorada por agiotas e
picaretas de classe média alta. Seu discurso final, indignado e no seu dialeto
nativo, representa a cena mais memorável de “A passageira” no seu misto de fúria
e frustração. A abordagem formal e textual de Del Solar para a história que
conta é marcada por uma sobriedade admirável, ainda que a narrativa se ressinta
de um certo excesso de convencionalismos. Ainda assim, “A passageira” consegue
preservar a sua capacidade de inquietar e se fixar por um tempo no imaginário
do espectador.
quarta-feira, outubro 26, 2016
Kóblic, de Sebastián Borensztein ***
O diretor argentino Sebastián Borensztein dá a impressão de
querer realizar uma revitalização de clichês de filmes de gênero. No medíocre “Um
conto chinês” (2011), fez uma espécie de recriação pálida de comédia romântica,
ainda que procurasse dar uma aparência ilusória de realismo dramático. Em sua
mais recente empreitada, “Kóblic” (2016), o cineasta busca uma espécie de síntese
entre drama político e policial, mas o que realmente atinge como resultado
final é um faroeste reciclado e por vezes até bem divertido. O roteiro insinua
uma pretensa seriedade ao evocar o drama de desaparecidos políticos que na
verdade eram jogados ao mar por agentes da repressão no período da ditadura
militar argentina nos anos 70 e 80. Mas essa aura solene é jogada por terra
diante dos furos da trama – se o protagonista Kóblic (Ricardo Darín) quer tanto
ficar incógnito numa cidadezinha fim de mundo do interior, por que se expõe
tanto saindo para beber no único bordel da região e também tendo um caso com a
companheira de um tipinho violento e execrável? Isso sem contar que em algumas
sequências o filme se perde em excessos melodramáticos, principalmente nas
partes românticas. Na verdade, a melhor forma de encarar “Kóblic” é como se
fosse um tipo de versão fuleira para “Os brutos também amam” (1953). A
caracterização do delegado vilão Velarde (Oscar Martinez), por exemplo, é um
primor de escrotidão e sordidez. E o terço final repleto de duelos e mortes
encenados com boa dinâmica e detalhamento visual é bem memorável. Em tais
cenas, Borensztein consegue dar uma certa ambientação mitológica cativante para
a sua obra, e com Darín conseguindo tendo uma interessante altivez icônica para
o seu personagem que faz lembrar algo do enigmático cowboy Shane.
terça-feira, outubro 25, 2016
Festa da salsicha, de Conrad Vernon e Greg Tiernan ***1/2
É intrigante que um dos filmes mais ácidos e contestadores
da atual temporada seja uma animação norte-americana cômica, desbocada e escatológica.
Mas esse é exatamente o caso em “Festa da salsicha” (2016). O filme dos
diretores Conrad Vernon e Greg Tiernan obedece a uma estrutura narrativa
fabular básica no gênero das animações, em que uma trama repleta de aventura e
alguns toques românticos traz em suas entrelinhas uma “moral da história”
envolvendo superação e amadurecimento, com direito, inclusive, a momentos
musicais entre o apoteótico e o meloso. Só que o roteiro que mostra alimentos
antropomorfizados de um supermercado que tomam consciência de que servem
somente para saciar a fome dos deuses gigantes (no caso, os seres humanos) na
realidade se mostra uma corrosiva diatribe contra alguns dos valores mais caros
da sociedade contemporânea. Na visão da obra, a religião só serve para iludir
ignorantes incautos para que esses não questionem uma realidade de opressão e
exploração, fazendo com que uma classe dominante se beneficie dessa alienação
(não faz lembrar um certo país que teve um golpe de estado recentemente com a
colaboração de uma direita evangélica?). E a melhor resposta para tal empulhação
mística seria a revolta violenta, além de uma filosofia de vida baseada num
hedonismo libertário. “Festa da salsicha” consegue formatar esse discurso
ousado e humanista em uma narrativa bastante divertida e movimentada, além de
trazer um grafismo marcante na forma com que violência, sexo e escatologia são
expostos em cena. Caros pais, não se assustem com a faixa etária, essa é a
animação que seus filhos devem ver!!
segunda-feira, outubro 24, 2016
Meu amigo, o dragão, de David Lowery **1/2
Dá para perceber em “Meu amigo, o dragão” (2016) uma certa
abordagem conceitual diferente. Tanto em sua estética quanto no conteúdo, o
filme do diretor David Lowery parece querer recuperar uma atmosfera setentista em
termos de atmosfera e construção narrativa. Há um caráter de crônica nostálgica
e ingênua aliada a um viés ecológico na forma com que a trama é apresenta na
tela. Essa concepção provavelmente vem do fato da produção ser uma refilmagem
de uma animação de 1977. Diante de tais escolhas artísticas, a obra de Lowery
até tem algum encanto em determinadas passagens, fruto de uma encenação bem
coreografada na combinação de trucagens digitais e interação entre os
personagens. Por outro lado, essa ambientação agridoce por vezes retira a
capacidade do filme em gerar tensão para a plateia, o que seria fundamental
dentro de um trabalho no gênero aventura fantástica juvenil. Dá até para
entender que se buscou um perfil mais humano na caracterização dos dilemas e críticas
comportamentais presentes no roteiro, mas no geral essa coisa de fofice excessiva
faz com que os vilões e ameaças que surgem ao longo da história se mostrem
poucos críveis ou assustadores.
quinta-feira, outubro 20, 2016
O botão de pérola, de Patrício Gusmán ***1/2
No seu primeiro terço de duração, o documentário chileno “O
botão de pérola” (2015) sugere ao espectador em sua formatação como se fosse
uma versão mais apurada e artística daquelas produções televisivas de canais
como Discovery ou History Chanel a versar sobre a importância da água na
sobrevivência e desenvolvimento da humanidade. Com o desenrolar da narrativa,
entretanto, o diretor Patrício Gusmán vai desviando de maneira sutil sua obra
para um viés sócio-político-cultural desconcertante, traçando um desolador
retrato do massacre dos povos nativos de seu país e relacionando com o brutal
massacre de perseguidos políticos na ditadura de Pinochet, cujos corpos eram
jogados no meio do oceano. Mais que um simples manifesto panfletário, o caráter
humanista e poético da abordagem de Gusmán consegue combinar com coerência e
sensibilidade essa ampla temática dentro de uma linguagem cinematográfica
apurada e de uma visão existencial complexa, em que todos os aspectos da
narrativa se entrelaçam com desenvoltura – fotografia grandiosa, engenhosas
trucagens visuais, atmosfera e trilha sonora solenes, roteiro repleto de preciosas
nuances textuais valorizadas pela etérea narração do próprio Gusmán. Nessa
estranha e encantadora síntese artística concebida pelo cineasta, a antropologia
e o fantástico convivem de maneira harmônica dentro um fascinante e bizarro
universo.
quarta-feira, outubro 19, 2016
Um dia perfeito, de Fernando León de Aranoa ***
O cineasta espanhol Fernando León de Aranoa havia
demonstrado notável domínio narrativo e sensibilidade no trato de temática
social no extraordinário “Segunda-feira ao sol” (2001). Ainda que sem o mesmo
grau de brilho artístico do filme mencionado, “Um dia perfeito” (2015) mostra que
Aranoa permanece com suas mencionadas qualidades. O tema da trama é espinhoso –
o cotidiano de um grupo de ajuda humanitária no conflito dos Bálcãs em meados
dos anos 90. Ocorre que a abordagem é diferenciada e surpreendente, pois, ainda
que preserve a forte aura dramática, há uma certa atmosfera de ironia e absurdo
que predomina sutilmente por todo o filme, fazendo lembrar de leve a clássica
comédia de guerra “MASH” (1970). Tal orientação existencial da narrativa revela
uma coerência pertinente, em que as desventuras sentimentais do responsável de
segurança Mambrú (Benicio Del Toro) e a obsessão por velocidade, perigo e rock
and roll do motorista B (Tim Robbins) funcionam como válvulas de escape
emocionais diante de uma rotina repleta de morte, destruição e barbárie de um
conflito étnico-político. O subtexto do roteiro guarda ainda uma crítica ao
olhar hipócrita e moralista que o mundo ocidental tem sobre a guerra naquela
região, em que alegações e julgamentos de que tais lutas e demais atitudes
delas advindas sejam “sem sentido” se revelam estéreis, pois na verdade os
reflexos de tal conflito apenas demonstram valores e dilemas típicos da
sociedade capitalista contemporânea. No mais, a notável interação entre o
elenco homogêneo em boas atuações e a ótima trilha sonora roqueira se mostram
em sintonia com as soluções narrativas e temáticas de Aranoa, fazendo de “Um
dia perfeito” uma inquietante obra a refletir sobre a natureza das guerras no
mundo atual.
terça-feira, outubro 18, 2016
Nosso fiel traidor, de Susanna White ***
Dentro do universo das adaptações cinematográficas de obras
literárias do escritor John Le Carré, “Nosso fiel traidor” (2015) está longe do
brilhantismo de produções extraordinárias como “O alfaiate do Panamá” (2001) e “O
espião que sabia demais” (2011), mas também não chega perto de induzir ao sono
como “A casa da Rússia” (1990) e “O homem mais procurado” (2014). O filme da
diretora Susanna White até começa um pouco claudicante, principalmente na
breguice da sua sequência de abertura e também por uma encenação soando
excessivamente mecânica. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, a fórmula
estética-temática ganha mais corpo e a tensão se mostra mais efetivamente
presente. Os truques do roteiro são óbvios, típicos das tramas de espionagem de
Le Carré, mas são desenvolvidos com eficiência e convicção. A direção de
fotografia valoriza o exotismo e beleza dos cenários cosmopolitas e paisagens
naturais que aparecem ao longo da história, há uma atmosfera que alterna
habilmente entre a elegância contida e a leve sensualidade, prepondera um clima
constante de mistério e suspense que provoca algum frio no estômago do
espectador e algumas cenas guardam um poder imagético forte na sua simbologia
(a sequência final com o protagonista Perry Makepeace andando na contramão de
uma pequena multidão é um achado). No mais, as boas atuações carismáticas de
Ewan McGregor, Stellan Skarsgard e Damian Lewis acentuam a notável sobriedade
formal de “Nosso fiel traidor”.
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