O subtítulo nacional de “Muscle Shoals – Um lendário estúdio
de rock” (2013) é quase autoexplicativo em relação à obra em questão. É
impreciso, porém, porque o estúdio em questão abarcou outros gêneros musicais,
estendendo-se também para o pop, o reggae e, principalmente, para o rhythm and
blues e o soul. Nesses últimos gêneros, aliás, revela um dado curioso e
fascinante – o fato de que a grande maioria dos músicos de apoio que fizeram
algumas das bases rítmicas mais balançantes e memoráveis da cancioneiro
norte-americano eram brancos! O documentário se concentra em dois itens
básicos: é bastante informativo e revela imagens de arquivos preciosas. Além, é
claro, de mostrar algumas das gravações mais emblemáticas que o estúdio
produziu. A mitologia do rock, do rhythm and blues e do soul apresenta muitos
casos de figuras obscuras que foram responsáveis por vários momentos
antológicos em álbuns e compactos, mas que ficaram relegados em notas de
rodapés por não serem figuras carismáticas ou chamativas. Nesse sentido, “Muscle
Shoals” consegue trazer à tona alguns desses importantes músicos, mostrando
suas biografias atribuladas e a importância que tiveram na concretização do
imaginário musical norte-americano das últimas décadas, o que faz dessa
produção um programa obrigatório tanto para aficionados de primeira hora quanto
para neófitos.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, julho 29, 2016
quinta-feira, julho 28, 2016
Ricky, de François Ozon ***
O diretor François Ozon tem se mostrado como uma espécie de
cronista/cineasta dos costumes da sociedade francesa nesses últimos anos,
conseguindo por vezes revelar alguma inventividade em termos temáticos e
formais. Em “Ricky” (2009), o cineasta consegue obter uma interessante síntese
narrativa ao combinar drama realista e uma ambientação fabular. Dá para dizer
que na metade inicial do filme se tem uma áspera atmosfera naturalista ao
mostrar o relacionamento entre um homem e mulher que trabalham como operários
numa fábrica, mostrando o cotidiano duro da classe média baixa na França. Na
segunda metade da narrativa, entretanto, a produção envereda aos poucos e com
sutileza para o universo fantástico, quando Ricky, o filho nascido da união
entre os protagonistas, se revela um ser alado. Ao contrário de uma obra
norte-americana no gênero fantasia de um grande estúdio, a história não se
vincula à aventura ou ação, ganhando mais um caráter reflexivo e simbólico em
relação à figura do bebê voador. É na forma como o fato inusitado em questão
afeta o cotidiano e mesmo o equilíbrio existencial e psicológico da família que
reside o estranho encanto de “Ricky”, revelando uma dimensão humanista
fascinante.
quarta-feira, julho 27, 2016
O ajudante de satã, de Jeff Lieberman ***
Para quem está cansado das fórmulas assépticas da maioria
das produções de horror que aparecem nos últimos anos no cinema, talvez dar uma
garimpada em locadoras de DVDs ou mesmo pela internet possa ser uma saudável
solução. Nessa procura, vale à pena dar uma conferida em “O ajudante de satã”
(2004). O filme está longe de ser uma obra-prima e os recursos de produção são
limitados. É inegável também, entretanto, que o diretor Jeff Lieberman tem criatividade
e competência suficientes para entregar uma obra perturbadora e divertida. O
roteiro é repleto de situações com combinam com naturalidade tensão e ironia,
há uma atmosfera constante de sordidez, o grafismo das sequências de violência
e escatologia impressiona pelo seu detalhismo brutal. O resultado final dessas
boas sacadas narrativas é um memorável conto de horror perverso e sardônico, e
por vezes até surpreendente nas soluções de sua trama que fogem dos moralismos
fáceis.
terça-feira, julho 26, 2016
Dois caras legais, de Shane Black ****
Tudo é meio esquisito em “Dois caras legais” (2016).
Tentando encaixar as coisas num conceito aproximado mais fácil de entender,
seria algo como se um típico filme de ação dos anos 80 dirigido por Tony Scott,
Richard Donner ou John McTiernan tivesse uma trama ambientada numa estilizada
segunda metade da década de 70, pontuada por uma atmosfera cômica que transitasse
entre sutis tiradas bem humoradas nos diálogos e sequências de pura violência
cartunesca, além de um desconcertante subtexto niilista no roteiro. As
lembranças de cineastas casca-grossa oitentistas não vem ao acaso, pois o
diretor Shane Black foi roteirista de obras emblemáticas do gênero como “Máquina
mortífera” (1987), “O último boy-scout” (1991) e “O último grande herói” (1993).
Dentro dessa estranha fórmula, o próprio Black já havia elaborado tal síntese
no ótimo “Beijos e tiros” (2005). Mas em “Dois caras legais” ele avança para um
outro patamar em suas particulares concepções formais e temáticas. Saltam aos
olhos o grafismo alucinado e muito bem executado de coreografias de
pancadarias, tiroteios e perseguições – logo na sequência de abertura, há um
acidente automobilístico que chega a ser poético na sua mistura de ironia e
brutalidade. Ou seja, um bálsamo para os olhos já cansados das picaretagens
digitais dos “Velozes e furiosos” da vida ou mesmo das produções do “visionário”
Zack Snyder. Mas mais fascinante ainda na obra de Black é como essa ação
frenética se encaixa dentro de um extraordinário trabalho de direção de arte na
recriação da estética setentista e num roteiro repleto de inesperadas nuances
existenciais e que até mesmo questiona os moralismos do gênero cinematográfico
em questão. Diante de uma sociedade marcada pela corrupção inerente do poder
político e econômico dominante, em que a única possibilidade de desmascarar uma
grande corporação poluidora seja denunciá-la através de um filme pornô, para o
detetive Holland March (Ryan Gosling) parece coerente enveredar por um método caótico
de investigação em que é natural ficar constantemente bêbado, enganar senhoras,
atirar-se de ribanceiras, dormir ao volante com o carro em movimento,
interrogar pseudo-sereias em aquários gigantes e mesmo levar a filha menor de
idade em suas andanças em busca de pistas. Ainda mais inesperado, entretanto,
que essa lógica se configure como a possibilidade de redenção moral para brutal
caçador de recompensas Jackson Healy (Russell Crowe). É notável como Shane
Black consegue em “Dois caras legais” formatar todos esses elementos diversos e
excentricidades dentro de uma narrativa coesa e fluida, capaz tanto de divertir
o espectador quanto de deixá-lo ao final do filme perturbado pela sua atmosfera
entre o melancólico e o sardônico.
segunda-feira, julho 25, 2016
Mãe só há uma, de Anna Muylaert ****
Tudo aquilo que era
insinuado, difuso ou excessivo em “Que horas ela volta?” (2015), o filme
anterior da diretora Anna Muylaert, se concretiza de forma clara e precisa em seu
longa-metragem mais recente, “Mãe só há uma” (2016). A partir de um roteiro enxuto
e de uma narrativa concisa, a cineasta faz um demolidor inventário
sócio-intimista da sociedade brasileira contemporânea. A abordagem emocional e
formal de uma trama que abarca a sexualidade na adolescência e os preconceitos
de classe foge de estereótipos, maniqueísmos e demais facilidades – o filme de
Muylaert transpira ao mesmo tempo raiva e sensibilidade extremas, com a
diretora recorrendo a truques narrativos simples e eficazes. É de se reparar,
por exemplo, como ela contrapõe a encenação fluida e
naturalista do mundo de sexo, drogas e rock and roll que envolve o garoto
Pierre (Naomi Nero) com a pesada ambientação caricata e opressora da sua
família biológica que o acolhe/sequestra. Muylaert ainda se permite recursos
inusitados, que beiram o surreal, como o fato do papel da mãe biológica de
Pierre ser interpretado pela mesma atriz (Dani Nefussi) que também atua como a
mãe adotiva que o sequestrou quando bebê, evocando uma jogada narrativa de
Buñuel em “Esse obscuro objeto de desejo” (1977) – por coincidência, Almodóvar
fez algo parecido no recente “Julieta” (2016). Na realidade, tal recurso
narrativo reforça aquele que talvez seja o grande ponto chave existencial de “Mãe
é só uma” – a ambiguidade, que se reflete tanto na sexualidade livre de Pierre
quanto no questionamento sobre a moralidade hipócrita de uma sociedade que se apega
de maneira ferrenha a leis frias e costumes tacanhos em oposição a uma
perspectiva mais humanista sobre a vida.
sexta-feira, julho 22, 2016
Lugares escuros, de Gilles Paquet-Brenner ***
É provável que aqueles que apreciaram o extraordinário “Garota
exemplar” (2014) de David Fincher possam ficar curiosos com “Lugares escuros”
(2015), pois ambos os filmes se baseiam em romances da escritora Gillian Flynn.
No caso da versão de Fincher, entretanto, a força da obra se residia no
tratamento formal rebuscado e na atmosfera irônica com que o diretor envolvia
uma trama repleta de clichês novelescos e absurdos. Já na concepção artística
de “Lugares escuros”, o diretor Gilles Paquet Brenner está bem distante do
gênio estético de Fincher, fazendo com que a sua produção enverede por uma
narrativa bem mais tradicional e se conforme a reproduzir as viradas rocambolescas
do roteiro. Ainda assim, consegue manter uma tensão e um clima sombrio
envolventes, com direito inclusive a uma visão bastante sardônica da atração da
sociedade ocidental pelo sensacionalismo macabro de assassinatos e demais casos
escabrosos. Há uma certa ambientação de influências góticas que relaciona com
alguma criatividade os truques habituais do gênero suspense e uma temática de
teor naturalista que evoca com discrição questões sociais e econômicas. Pena
que a conclusão da trama peque pelo excessivo apego às convenções desse tipo de
produção.
quinta-feira, julho 21, 2016
Caça-fantasmas, de Paul Feig **1/2
Antes de mais nada, é bom deixar claro que essa nova versão
de “Caça-fantasmas” (2016) está longe de ser um manifesto feminista. Não que a
questão do gênero das protagonistas não tenha um peso importante no remake,
pois algumas das nuances na construção das situações e personagens da trama
passam por um viés feminino. Aliás, é responsável justamente pelos pontos mais
interessantes do filme – as quatro atrizes protagonistas são bastante convincentes
e carismáticas, além da bela sacada do roteiro da relação que se estabelece
entre elas e o secretário-burro-sexy Kevin (Chris Hemwworth, numa atuação
cômica surpreendente). Tirando tais aspectos, o remake dirigido por Paul Feig é
muito mais representativo de uma tendência do cinema de aventura contemporâneo,
em que o abuso de efeitos especiais e uma narrativa frenética deixa tudo com
uma certa atmosfera histriônica e pouco imaginativa. Mesmo o fato de procurar
fazer uma paródia dos clichês do cinema de horror moderno acaba soando um tanto
redundante pela constatação de que boa parte das produções do gênero na
atualidade já parece uma caricatura. Assim, ao invés do charme ingênuo e
bem-humorado do filme original de 1984, o espectador fica com a sensação de uma
obra genérica e pouco memorável.
quarta-feira, julho 20, 2016
Ralé, de Helena Ignêz ***
Em sua filmografia como diretora, Helena Ignêz tem se
mostrado como uma espécie de herdeira existencial de Rogério Sganzerla. Se “Luz
nas trevas” (2010) era uma continuação declarada de “O bandido da luz vermelha”
(1968), em sua obra mais recente, “Ralé” (2015), ela cita diretamente outras
duas obras emblemáticas do genial cineasta underground, “Copacabana Mon Amour”
e “Sem essa, Aranha”, ambas de 1970. Tais citações, entretanto, não se limitam
apenas a uma homenagem. Elas se inserem dentro de um espectro maior nessa
produção que se configura como um filme-ensaio de Ignêz, em que dentro de uma
trama fragmentada e metalinguística a cineasta dá vazão a suas obsessões
estéticas e temáticas, num conceito de cinema em que a narrativa tradicional e
outros aspectos da linguagem cinematográfica clássica se relativizam. Nessa
estranha e experimental concepção artística, elementos de outras artes como o
teatro, a literatura e a música se inserem com naturalidade. Além disso,
permeia a obra um discurso político, ecológico, cultural e mesmo sexual que
serve como uma declaração de princípios da diretora, o que faz com que por
vezes o filme pareça um tanto ingênuo no seu texto e encenação. Ainda assim, o
que predomina em “Ralé” é uma atmosfera delirante e libertária, e que prende o
espectador pela sensualidade e fluidez da interação de seu elenco e pelo
descompromisso com o formalismo realista, fazendo com que a pungência e
humanismo de algumas sequências antológicas, com destaque para a cena em que
Barão (Ney Matogrosso) e seu marido banham e limpam um idoso músico (José Celso
Martinez Correa), causem um misto de perturbação de encantamento.
terça-feira, julho 19, 2016
Julieta, de Pedro Almodóvar ****
Quando o nome do diretor espanhol Pedro Almodóvar surgiu no
panorama do cinema mundial, ali entre o final da década 70 e início dos anos
80, havia um forte caráter emblemático na sua arte e na sua própria figura.
Afinal ainda eram os primeiros anos após longas décadas da ditadura franquista
na Espanha, marcada pela repressão política, cultural e moral, e os primeiros
filmes de Almodóvar, divertidos e anárquicos, representavam um desafogo desse
período sombrio de seu país. Agora corte para o corrente ano de 2016: há uma
Europa tomada por conflitos políticos e culturais envolvendo xenofobia,
moralismos e demais discursos de uma direita profundamente reacionária e
preconceituosa. Nesse contexto histórico bem diferente daquele em que despontou
inicialmente, Almodóvar entrega uma obra que demonstra uma sintonia contundente
com os tempos conturbados que vivemos. “Julieta” (2016) é uma libertária
declaração de princípios que vem formatada numa estrutura narrativa que combina
melodrama clássico e trejeitos de cinema noir, síntese estética essa que já
havia sido trabalhada da maneira extraordinária em “A má educação” (2003) e “A
pele que habito” (2011). No universo autoral de Almodóvar, sempre predomina uma
tênue fronteira entre a elegância formal e uma abordagem sentimental
despudorada, em que a tensão entre esses limites é o que torna as narrativas
arrebatadoras. Em “Julieta” isso não é diferente, só que os detalhes
rocambolescos do roteiro e a pungente encenação ganham um significado ainda
mais complexo. Em meio a uma trama que envolve conflitos familiares, sexo e
morte, há nuances na caracterização de personagens e situações que apresentam
uma simbologia desconcertante, em que a protagonista Julieta (Emma
Suárez/Adriana Ugarte) representa o humanismo e o conhecimento assediados pela
repressão moral e religiosa da doméstica Marian (Rossy de Palma) e da própria filha
Antía (Blanca Parés). É fascinante como os desdobramentos dessa história se
apresentam de maneira apenas insinuada, fazendo com que muitas das ações mais
importantes se manifestem no imaginário do próprio espectador, num exercício
memorável de sutileza narrativa, com direito, inclusive, a citações da
obra-prima “Esse obscuro objeto de desejo” (1977), o genial canto do cisne de
Luis Buñuel.
segunda-feira, julho 18, 2016
Florence: Quem é essa mulher?, de Stephen Frears **1/2
Nas décadas 1980 e 1990, o diretor britânico Stephen Frears
se mostrou como um dos mais versáteis e talentosos nomes do cinema mundial.
Ofereceu uma nova perspectiva para o gênero policial em “The Hit” (1984) e “Os
imorais” (1990), dirigiu dramas naturalistas memoráveis como “Minha adorável
lavanderia” (1985) e “O amor não tem sexo” (1987), fez comédias agridoces
notáveis como “Herói por acidente” (1992) e “A grande família” (1993). Nas
últimas décadas, entretanto, acabou entrando num decepcionante comodismo criativo,
enveredando por obras acadêmicas e previsíveis que por vezes até rendem algumas
indicações ao Oscar, mas que estão longe de colar no imaginário
cinematográfico, vide produções como “A rainha” (2006) ou “Philomena” (2013). “Florence:
Quem é essa mulher?” (2016) mostra que Frears continua nesse marasmo. A
história real da personagem título até tem uma conotação interessante pela
carga simbólica de revelar as hipocrisias sociais e culturais do circuito
artístico da Nova Iorque dos anos 40. Mas o tratamento que Frears dá para
narrativa é tão mecânico e superficial que poucas vezes o filme chega perto de
causar alguma empolgação. É claro que dá para perceber boa parte da habitual
elegância formal do cineasta, principalmente na sequência em que St. Clair
(Hugh Grant) dá uma festinha regada a jazz e álcool em seu apartamento. Além
disso, há a ótima atuação de Nina Arianda fazendo com que a sua personagem
coadjuvante Agnes Stark sempre roube a cena quando aparece na tela. Mas esses
eventuais rasgos positivos acabam sendo muito pouco para alguém com uma
filmografia tão expressiva quanto Frears.
sexta-feira, julho 15, 2016
Que viva Eisenstein!, de Peter Greenaway ****
Com o passar dos anos, o diretor britânico Peter Greenaway
se mostra cada vez mais insatisfeito com os rumos contemporâneos da linguagem
cinematográfica. Isso fica evidente tanto em suas declarações como nos seus filmes.
Nesse último caso, “Que viva Eisenstein!” (2015) é um atestado enfático de suas
inquietações artísticas. Para começar, Greenaway usa como protagonista aquele
cineasta que talvez seja o nome-chave na consolidação do cinema como expressão
artística própria – o russo Sergei Eisenstein, que em obras-primas como “O
encouraçado Potemkin” (1925) e “Outubro” (1928) estabeleceu um estilo de
filmagem e edição que se tornou referência fundamental para a narrativa e a
estética cinematográficas. O foco principal do roteiro se concentra no período
em que Eisenstein esteve no México para realizar “Que viva México!”, obra que
resultou inacabada. Só que o fato de usar figuras e situações “reais” não
significa necessariamente que Greenaway tenha se vinculados aos moldes
convencionais de uma cinebiografia. Na verdade, o diretor usa a perspectiva
histórica como um elemento a mais dentro de uma concepção de cinema que se
interliga com outros meios culturais (teatro, pintura, literatura,
antropologia, tecnologia). Essa concepção multimídia do que seria um filme
recebe um trato formal que prima pela coerência e o rigor sem que se perca o
seu caráter libertário artístico. Greenaway não se limita apenas a reproduzir
fatos históricos. O que ele faz é jogar o espectador dentro da mente
fervilhante de criatividade e ávida por experiências e conhecimento de
Eisenstein. Para isso, emula o estilo de montagem característico do seu
biografado, intercala com trechos documentais e de sequências de alguns dos
trabalhos mais célebres de Eisenstein e conecta tudo com a encenação virtuosa e
repleta de nuances simbólicas que são típicas do próprio Greenaway. Esse choque
de truques e recursos diversos resulta em um mosaico narrativo erudito e
fascinante, que relaciona de maneira intrínseca arte, política, história, poder
e sexo.
quinta-feira, julho 14, 2016
Ave, César!, de Ethan e Joel Coen ****
A filmografia dos irmãos Coen remete a uma espécie de
inventário do imaginário cultural-histórico dos Estados Unidos, em que as
produções que compõem esse conjunto fílmico sugerem se comunicar de maneira
sofisticada e coerente. “Ave, César!” (2016) não foge da tradição desse
particular projeto cinematográfico. Os roteiristas comunistas que sequestram o
astro canastrão Baird Whitlock (George Clooney) parecem parceiros de copo e
debates do dramaturgo enredado pelos ditames de Hollywood em “Barton Fink”
(1991). Já a narrativa e o formalismo fortemente estilizados e de tons retrô demonstram
sintonia com semelhante linha artística proposta em “A roda da fortuna” (1994).
Mesmo a ambientação noturna em que o protagonista Edward Mannix (Josh Brolin)
se embrenha em alguns momentos se liga às influências do noir que já haviam
sidos recriadas de forma extraordinária em “Gosto de sangue” (1984) e “O homem
que não estava lá” (2001). E o teor alucinado das antigas comédias amalucadas
da primeira metade do século XX também guardam conexão com “Arizona nunca mais”
(1986) e “Queime depois de ler” (2008). É de se deixar claro, entretanto, que
“Ave, César!” não se trata de mera reciclagem de ideias e referências. Os
irmãos Coen pegam suas tradicionais obsessões estéticas e temáticas e as
remodelam sob uma perspectiva ainda mais madura e idiossincrática. No ambiente
fictício de filmagens de produções nos estúdios da Capitol Pictures, os gêneros
cinematográficos mais emblemáticos dos anos 40 e 50 (bíblico, faroeste,
musical, melodrama) são recriados em engenhosos pastiches, mas essa
caracterização exagerada de situações e personagens se expande para aquilo que
seria o universo “real” do roteiro, onde o produtor Mannix tem de lidar com um
cotidiano disfuncional de astros tendo chiliques, diretores querendo ver
prevalecer suas ideias artísticas, problemas familiares, ofertas de emprego e
mesmo uma conspiração comunista. Nesse jogo que beira o metalinguístico no
choque entre a fantasia e a realidade, os Coen destilam perversa ironia não só
contra o Star System dos grandes estúdios, mas também contra o ideário moral e
os medos do norte-americano médio. Para isso, valem-se de um formalismo de
registro entre o operístico e o delirante, de uma encenação precisa e do elenco
com algumas atuações maneiristas antológicas (destaque para Alden Ehrenreich como
um boa praça e hilário astro de faroestes). Ou seja, é como se estivéssemos
diante de uma insólita e desconcertante síntese entre Howard Hawks e Fellini.
quarta-feira, julho 13, 2016
Procurando Dory, de Andrew Stanton e Angus MacLane ***
Em se tratando de animações originárias do estúdio Pixar,
sempre dá para esperar um padrão de qualidade diferenciado – um grafismo
requintado na combinação de realismo e estilização, narrativas que permitem o
entrecruzamento fluente entre toques cômicos e leve dramaticidade (por vezes,
até beirando o efetivamente sombrio), roteiros bem delineados e com personagens
de caracterização carismática. Em “Procurando Dory” (2016), estão presentes todos
esses preceitos, resultando numa obra divertida e envolvente (ainda que boa
parte do terço final soe um tanto histérico e desnecessário). É evidente
também, entretanto, que o filme não vai muito além disso, soando como uma
variação competente e sem maiores ousadias de “Procurando Nemo” (2003), podendo
soar frustrante para quem esperava algo mais transcendente na linha dos
extraordinários “Os incríveis” (2004) e “Wall-E” (2008). Parece que depois do
fiasco comercial que foi o brilhante e alucinado “John Carter: Entre dois
mundos” (2012) o diretor Andrew Stanton preferiu apostar numa fórmula artística
segura. Ou seja, no cômputo geral, “Procurando Dory” é diversão garantida, mas
dessa vez quem leva a melhor como animação mais impactante da temporada é a Disney
com “Zootopia”.
terça-feira, julho 12, 2016
Janis: Little girl blue, de Amy Berg ***
Há um fato bastante emblemático na vida da cantora
norte-americana Janis Joplin no qual o documentário “Janis: Little girl blue”
(2015), que trata da trajetória pessoal e artística de sua protagonista, se
detém com bastante ênfase: o fato dela no auge do seu sucesso ter “demitido” a
sua banda Big Brother and The Holding Company pelo motivo do grupo não ser o “profissional”
suficiente para acompanha-la numa fase de sua carreira onde as expectativas
seriam maiores. Na visão do filme, e de muitos apreciadores de rock, tal decisão
da cantora foi equivocada pelo fato da Big Brohter ter sempre apresentado a
sintonia artística e existencial ideal com Joplin. Após esse rompimento, a
cantora nunca mais teria apresentado a mesma intensidade em seu trabalho e teve
uma derrocada considerável em sua vida particular que acabou culminando numa
overdose fatal de heroína. Tal teoria encontra uma ressonância simbólica na
própria relação entre o documentário em questão e a sua biografada. Ainda que
respeitável na sua combinação de farto material de arquivo entre preciosas
imagens de apresentações de Joplin e depoimentos reveladores de parentes,
amigos e parceiros de música, a produção dirigida por Amy Berg é de um
formalismo correto e sem maiores ousadias, bem ao contrário da arte esfuziante
e visceral de Joplin, um misto azeitado e muito particular de blues, rock e
soul. Falta aquela centelha criativa que Martin Scorsese mostrou com
brilhantismo em obras-primas como “O último concerto de rock” (1978) e “Bob
Dylan: No direction home”. Ainda assim, “Janis: Little girl blue” não deixa de ser
um retrato interessante tanto sobre uma artista fundamental do século XX como
dos fascinantes e conturbados anos 60.
segunda-feira, julho 11, 2016
Certo agora, errado antes, de Sang-soo Hong ***1/2
Se em “A visitante francesa” (2012) o diretor coreano
Sang-soo Hong dividia a narrativa em múltiplas frentes para oferecer diferentes
perspectivas sobre a mesma trama, em “Certo agora, errado antes” (2015) ele
aprofunda a sua particular concepção artística. Num primeiro momento, as duas
metades que compõem o roteiro do filme parecem oferecer as visões diferentes
sobre os mesmos fatos dos dois protagonistas, um homem maduro e uma jovem que
entram num jogo de flertes e sedução. Aos poucos, entretanto, esse jogo
narrativo vai se mostrando cada vez mais complexo e fascinante. O contraponto
que se faz entre as duas diferentes narrativas adquire significados diversos e
que mesmo na conclusão do filme não deixa claro qual seria a intenção real da
relação que se estabelece entre as histórias. Assim, entra também em cena os
desejos dos personagens (poderia a segunda metade ser uma espécie de projeção
mais idealizada do que deveria ter sido a primeira?), a subjetividade do olhar
(na narrativa final são mostrados os detalhes cênicos e textuais que escaparam
na primeira visão), as diferenças na construção da atmosfera da obra (se na
primeira parte predomina uma ambientação mais contida, na segunda se adota um
tom de comicidade discreta que por vezes até beira o fabular). Ainda dentro desse
processo sutil de desconstrução da narrativa, o cineasta adota um insólito
estilo de filmar que evoca a fronteira entre o documental e o registro caseiro,
o que acentua ainda mais o estranho encanto da produção.
sexta-feira, julho 08, 2016
Kaos, de Paolo e Vittorio Taviani ****
O cinema dos irmãos Taviani sempre manteve uma forte ligação
com a literatura. “Kaos” (2013) representa um dos grandes pontos altos dessa
relação. Adaptando contos escritos por Luigi Pirandello, os cineastas extraem
uma síntese narrativa extraordinária e uma forte coesão artística. A ligação
que se dá entre os episódios é quase tênue em termos textuais, mas a atmosfera
é sempre a mesma, uma estranha e encantadora combinação de encenação
naturalista e ambientação fantástica, algo como se a tradição do neorrealismo italiano
passasse por um filtro estético muito particular, por vezes com a impressão de um
delírio onírico filmado com traços documentais. Não se trata apenas de transpor
um texto literário para um âmbito imagético, mas também de o recriar a partir
de uma linguagem nova, a um ponto que essa ligação se torne intrínseca. Assim,
a majestosa direção de fotografia e encenação repleta de nuances dramáticas e
cômicas consegue traduzir toda aquela gama de sentimentos e sensações atávicos
e místicos das histórias de Pirandello dentro de uma experiência audiovisual
que cola no imaginário do espectador como se fosse uma velha lenda.
quinta-feira, julho 07, 2016
Tudo vai ficar bem, de Wim Wenders ***
Em “A paixão de JL” (2014), fascinante misto de
documentário/ensaio/diário pessoal concebido por Carlos Nader que faz uma
espécie de síntese do imaginário e das impressões intimistas do artista
plástico José Leonilson, há uma presença forte do cineasta alemão Wim Wenders
na narrativa. Tanto que são exibidos trechos de três de seus filmes da década
de 80 (“Um filme para Nick”, “Paris, Texas” e “Asas do desejo”). Isso reforça
como Wenders foi uma influência fundamental na configuração cultural e mesmo
existencial de uma geração de cinéfilos e artistas em geral, tanto por
estabelecer a sua temática recorrente da busca de identidade própria do ser
humano contemporâneo como na consolidação de uma estética que valoriza da mesma
maneira o modo americano quase intuitivo de filmar e o estilo reflexivo e
cerebral tipicamente germânico de conceber a narrativa cinematográfica. Dessa
forma, chega a ser uma curiosa coincidência do destino que a mais nova produção
de Wenders, “Tudo vai ficar bem” (2015), tenha entrado em cartaz ao mesmo tempo
que o filme de Nader ainda estava presente nos circuitos de cinema. Num
primeiro momento, esse acaso pode até ser infeliz para o trabalho recente de
Wenders, no sentido de se fazer inevitáveis comparações e se constatar que ele
é bem inferior às obras citadas em “A paixão de JL”. Há algumas concessões
formais e excessos solenes e sentimentais que comprometem a marca autoral do
diretor. Ainda assim, por alguns momentos Wenders mostra que ainda é capaz de
preservar uma elegância artística na condução da narrativa, conseguindo obter
uma atmosfera estranha e cativante ao contar a história de um escritor (James
Franco) que percebe que extrair inspiração de situações trágicas é um eficiente
recurso literário. Nas mãos de um diretor qualquer, tal história poderia se
converter num simples conto moralista, mas sob o olhar de Wenders ganha
contornos irônicos bem interessantes. A sequência, por exemplo, em que o
protagonista é estapeado por uma rancorosa ex-esposa (Rachel McAdams) é
memorável no seu sutil sarcasmo. Assim, por mais que “Tudo vai ficar bem”
esteja distante de entra numa antologia dos melhores filmes de Wenders, é bem
mais interessante que a hagiografia institucional de “O sal da terra” (2014).
quarta-feira, julho 06, 2016
Contrato vitalício, de Ian SBF **
Alguns dos episódios exibidos na internet do coletivo cômico
Porta dos fundos realmente são bem interessantes e engraçados na sua concepção
de humor que mistura escatologia, ironia e crítica comportamental. Na transposição
desse direcionamento artístico para o cinema, conforme pode ser observado em “Contrato
vitalício” (2016), não dá para dizer que o grupo abriu grandes concessões
comerciais. Pelo contrário – mesmo estruturado como uma grande trama de ficção,
fica evidente que o espírito de comédia ácida de Gregório Duvivier, Fábio Porchat
e companhia permanece característico. O problema do filme é que na realidade
nem tudo que funciona num episódio de fôlego curto acaba tendo a mesma
efetividade numa narrativa mais longa. O roteiro até guarda alguns temas atraentes
pelo seu teor contestatório dos costumes da sociedade brasileira contemporânea –
conflito entre comércio e arte, a efemeridade das manifestações culturais em
tempos de redes sociais, conflitos de classes. O problema é que a narrativa
parece se estruturar a partir de sketches cômicos individuais de cada um dos
membros do Porta dos fundos sem que haja uma ideia de unidade natural de
interação entre elas. Alguns tipos criados pela trupe apresentam alguma
ressonância em termos de profundidade, mas outros são apenas caricaturais e
óbvios. Em algumas das melhores produções cinematográficas do grupo inglês
Monty Python havia essa mesma ideia de estrutura narrativa a partir de
sketches, mas a diferença é que se obedecia a uma ordem existencial e artística
de notável fluência. Claro que a comparação pode soar desproporcional e injusta,
mas também indica que há caminhos criativos para o coletivo brasileiro evoluir
dentro da sua trajetória cinematográfica.
terça-feira, julho 05, 2016
Paulina, de Santiago Mitre ***1/2
A narrativa em “Paulina” (2015) tem o seu desenvolvimento
obedecendo a princípios dialéticos. Os primeiros momentos do filme, registrados
praticamente num plano-sequência austero, mostram um conflito verbal entre a
protagonista Paulina (Dolores Fonzi) e seu pai Fernando (Oscar Martinez), em
que cada personagem teoriza e fundamenta seus respectivos comportamentos e
ideários contrastantes, ainda que ambos pareçam alinhados a uma ideologia de
esquerda. Na penúltima sequência da produção, eles voltam a duelar
existencialmente, só que dessa vez entra em cena toda a dura experiência de
vida da personagem principal para ilustrar um posicionamento de vida coerente e
humanista, desconcertando os valores pequeno-burgueses hipócritas da figura
patriarcal. Entre as duas sequências citadas, há um desenvolvimento marcado por
uma rigorosa construção formal e temática. Direção de fotografia e edição
obedecem a um direcionamento naturalista que não se aventura em grandes
arroubos estéticos, mas que oferecem a moldura narrativa ideal que amplifica
ainda mais a complexidade do roteiro, em que os preceitos mais caros de uma sociedade
marcada pelo sexismo, injustiça social e repressão estatal são desconstruídos
de maneira sutil e perturbadora. Num primeiro momento, as escolhas de Paulina
em como proceder ética e moralmente após ter sido estuprada por um grupo de
camponeses podem parecer radicais e insólitas, mas aos poucos vão revelando um
sentido humano desconcertante e desafiador.
sexta-feira, julho 01, 2016
Procurando Sugar Man, de Malik Bendjelloul ***1/2
Há versões que dizem que a história contada no documentário “Procurando
Sugar Man” (2012) não seria totalmente verdadeira, principalmente no que diz
respeito ao fato de que o cantor Sixto Diaz Rodriguez não estaria num
ostracismo tão radical a ponto de muita gente considerar que ele estava morto.
No final das contas, entretanto, não é algo que chega ao ponto de tirar o
brilho do filme dirigido por Malik Bendjelloul como uma obra tão envolvente e
emocionante. A trajetória do protagonista tem um alcance universal no sentido
de simbolizar a força de uma arte verdadeira e visceral a ponto de criar laços
inesperados com o público, independente das fronteiras e mesmo das estratégias
mercadológicas (nesse sentido, impossível não lembrar do magnífico “Buena Vista
Social Club” de Wim Wenders). Tal colocação pode até parecer ingênua ou óbvia,
mas em tempos que medíocres programas televisivos privilegiam uma música
formatada de acordo com o gosto médio e comercial, é extremamente salutar e
revigorante ver o triunfo, ainda que tardio, de uma figura como Rodriguez.
Mesmo que a acusação contra o filme de manipulação de fatos e sentimentos possa
ser verdadeira, é inegável que a concepção artística de Bendjelloul para a sua
narrativa tem um impacto sensorial notável, valorizando de maneira apaixonada a
música tocante de Rodriguez.
Assinar:
Postagens (Atom)