sexta-feira, julho 29, 2016

Muscle Shoals - Um lendário estúdio de rock, de Greg Camalier ***

O subtítulo nacional de “Muscle Shoals – Um lendário estúdio de rock” (2013) é quase autoexplicativo em relação à obra em questão. É impreciso, porém, porque o estúdio em questão abarcou outros gêneros musicais, estendendo-se também para o pop, o reggae e, principalmente, para o rhythm and blues e o soul. Nesses últimos gêneros, aliás, revela um dado curioso e fascinante – o fato de que a grande maioria dos músicos de apoio que fizeram algumas das bases rítmicas mais balançantes e memoráveis da cancioneiro norte-americano eram brancos! O documentário se concentra em dois itens básicos: é bastante informativo e revela imagens de arquivos preciosas. Além, é claro, de mostrar algumas das gravações mais emblemáticas que o estúdio produziu. A mitologia do rock, do rhythm and blues e do soul apresenta muitos casos de figuras obscuras que foram responsáveis por vários momentos antológicos em álbuns e compactos, mas que ficaram relegados em notas de rodapés por não serem figuras carismáticas ou chamativas. Nesse sentido, “Muscle Shoals” consegue trazer à tona alguns desses importantes músicos, mostrando suas biografias atribuladas e a importância que tiveram na concretização do imaginário musical norte-americano das últimas décadas, o que faz dessa produção um programa obrigatório tanto para aficionados de primeira hora quanto para neófitos.

quinta-feira, julho 28, 2016

Ricky, de François Ozon ***

O diretor François Ozon tem se mostrado como uma espécie de cronista/cineasta dos costumes da sociedade francesa nesses últimos anos, conseguindo por vezes revelar alguma inventividade em termos temáticos e formais. Em “Ricky” (2009), o cineasta consegue obter uma interessante síntese narrativa ao combinar drama realista e uma ambientação fabular. Dá para dizer que na metade inicial do filme se tem uma áspera atmosfera naturalista ao mostrar o relacionamento entre um homem e mulher que trabalham como operários numa fábrica, mostrando o cotidiano duro da classe média baixa na França. Na segunda metade da narrativa, entretanto, a produção envereda aos poucos e com sutileza para o universo fantástico, quando Ricky, o filho nascido da união entre os protagonistas, se revela um ser alado. Ao contrário de uma obra norte-americana no gênero fantasia de um grande estúdio, a história não se vincula à aventura ou ação, ganhando mais um caráter reflexivo e simbólico em relação à figura do bebê voador. É na forma como o fato inusitado em questão afeta o cotidiano e mesmo o equilíbrio existencial e psicológico da família que reside o estranho encanto de “Ricky”, revelando uma dimensão humanista fascinante.

quarta-feira, julho 27, 2016

O ajudante de satã, de Jeff Lieberman ***

Para quem está cansado das fórmulas assépticas da maioria das produções de horror que aparecem nos últimos anos no cinema, talvez dar uma garimpada em locadoras de DVDs ou mesmo pela internet possa ser uma saudável solução. Nessa procura, vale à pena dar uma conferida em “O ajudante de satã” (2004). O filme está longe de ser uma obra-prima e os recursos de produção são limitados. É inegável também, entretanto, que o diretor Jeff Lieberman tem criatividade e competência suficientes para entregar uma obra perturbadora e divertida. O roteiro é repleto de situações com combinam com naturalidade tensão e ironia, há uma atmosfera constante de sordidez, o grafismo das sequências de violência e escatologia impressiona pelo seu detalhismo brutal. O resultado final dessas boas sacadas narrativas é um memorável conto de horror perverso e sardônico, e por vezes até surpreendente nas soluções de sua trama que fogem dos moralismos fáceis.

terça-feira, julho 26, 2016

Dois caras legais, de Shane Black ****

Tudo é meio esquisito em “Dois caras legais” (2016). Tentando encaixar as coisas num conceito aproximado mais fácil de entender, seria algo como se um típico filme de ação dos anos 80 dirigido por Tony Scott, Richard Donner ou John McTiernan tivesse uma trama ambientada numa estilizada segunda metade da década de 70, pontuada por uma atmosfera cômica que transitasse entre sutis tiradas bem humoradas nos diálogos e sequências de pura violência cartunesca, além de um desconcertante subtexto niilista no roteiro. As lembranças de cineastas casca-grossa oitentistas não vem ao acaso, pois o diretor Shane Black foi roteirista de obras emblemáticas do gênero como “Máquina mortífera” (1987), “O último boy-scout” (1991) e “O último grande herói” (1993). Dentro dessa estranha fórmula, o próprio Black já havia elaborado tal síntese no ótimo “Beijos e tiros” (2005). Mas em “Dois caras legais” ele avança para um outro patamar em suas particulares concepções formais e temáticas. Saltam aos olhos o grafismo alucinado e muito bem executado de coreografias de pancadarias, tiroteios e perseguições – logo na sequência de abertura, há um acidente automobilístico que chega a ser poético na sua mistura de ironia e brutalidade. Ou seja, um bálsamo para os olhos já cansados das picaretagens digitais dos “Velozes e furiosos” da vida ou mesmo das produções do “visionário” Zack Snyder. Mas mais fascinante ainda na obra de Black é como essa ação frenética se encaixa dentro de um extraordinário trabalho de direção de arte na recriação da estética setentista e num roteiro repleto de inesperadas nuances existenciais e que até mesmo questiona os moralismos do gênero cinematográfico em questão. Diante de uma sociedade marcada pela corrupção inerente do poder político e econômico dominante, em que a única possibilidade de desmascarar uma grande corporação poluidora seja denunciá-la através de um filme pornô, para o detetive Holland March (Ryan Gosling) parece coerente enveredar por um método caótico de investigação em que é natural ficar constantemente bêbado, enganar senhoras, atirar-se de ribanceiras, dormir ao volante com o carro em movimento, interrogar pseudo-sereias em aquários gigantes e mesmo levar a filha menor de idade em suas andanças em busca de pistas. Ainda mais inesperado, entretanto, que essa lógica se configure como a possibilidade de redenção moral para brutal caçador de recompensas Jackson Healy (Russell Crowe). É notável como Shane Black consegue em “Dois caras legais” formatar todos esses elementos diversos e excentricidades dentro de uma narrativa coesa e fluida, capaz tanto de divertir o espectador quanto de deixá-lo ao final do filme perturbado pela sua atmosfera entre o melancólico e o sardônico.

segunda-feira, julho 25, 2016

Mãe só há uma, de Anna Muylaert ****

Tudo aquilo que era insinuado, difuso ou excessivo em “Que horas ela volta?” (2015), o filme anterior da diretora Anna Muylaert, se concretiza de forma clara e precisa em seu longa-metragem mais recente, “Mãe só há uma” (2016). A partir de um roteiro enxuto e de uma narrativa concisa, a cineasta faz um demolidor inventário sócio-intimista da sociedade brasileira contemporânea. A abordagem emocional e formal de uma trama que abarca a sexualidade na adolescência e os preconceitos de classe foge de estereótipos, maniqueísmos e demais facilidades – o filme de Muylaert transpira ao mesmo tempo raiva e sensibilidade extremas, com a diretora recorrendo a truques narrativos simples e eficazes. É de se reparar, por exemplo, como ela contrapõe a encenação fluida e naturalista do mundo de sexo, drogas e rock and roll que envolve o garoto Pierre (Naomi Nero) com a pesada ambientação caricata e opressora da sua família biológica que o acolhe/sequestra. Muylaert ainda se permite recursos inusitados, que beiram o surreal, como o fato do papel da mãe biológica de Pierre ser interpretado pela mesma atriz (Dani Nefussi) que também atua como a mãe adotiva que o sequestrou quando bebê, evocando uma jogada narrativa de Buñuel em “Esse obscuro objeto de desejo” (1977) – por coincidência, Almodóvar fez algo parecido no recente “Julieta” (2016). Na realidade, tal recurso narrativo reforça aquele que talvez seja o grande ponto chave existencial de “Mãe é só uma” – a ambiguidade, que se reflete tanto na sexualidade livre de Pierre quanto no questionamento sobre a moralidade hipócrita de uma sociedade que se apega de maneira ferrenha a leis frias e costumes tacanhos em oposição a uma perspectiva mais humanista sobre a vida.

sexta-feira, julho 22, 2016

Lugares escuros, de Gilles Paquet-Brenner ***

É provável que aqueles que apreciaram o extraordinário “Garota exemplar” (2014) de David Fincher possam ficar curiosos com “Lugares escuros” (2015), pois ambos os filmes se baseiam em romances da escritora Gillian Flynn. No caso da versão de Fincher, entretanto, a força da obra se residia no tratamento formal rebuscado e na atmosfera irônica com que o diretor envolvia uma trama repleta de clichês novelescos e absurdos. Já na concepção artística de “Lugares escuros”, o diretor Gilles Paquet Brenner está bem distante do gênio estético de Fincher, fazendo com que a sua produção enverede por uma narrativa bem mais tradicional e se conforme a reproduzir as viradas rocambolescas do roteiro. Ainda assim, consegue manter uma tensão e um clima sombrio envolventes, com direito inclusive a uma visão bastante sardônica da atração da sociedade ocidental pelo sensacionalismo macabro de assassinatos e demais casos escabrosos. Há uma certa ambientação de influências góticas que relaciona com alguma criatividade os truques habituais do gênero suspense e uma temática de teor naturalista que evoca com discrição questões sociais e econômicas. Pena que a conclusão da trama peque pelo excessivo apego às convenções desse tipo de produção.

quinta-feira, julho 21, 2016

Caça-fantasmas, de Paul Feig **1/2

Antes de mais nada, é bom deixar claro que essa nova versão de “Caça-fantasmas” (2016) está longe de ser um manifesto feminista. Não que a questão do gênero das protagonistas não tenha um peso importante no remake, pois algumas das nuances na construção das situações e personagens da trama passam por um viés feminino. Aliás, é responsável justamente pelos pontos mais interessantes do filme – as quatro atrizes protagonistas são bastante convincentes e carismáticas, além da bela sacada do roteiro da relação que se estabelece entre elas e o secretário-burro-sexy Kevin (Chris Hemwworth, numa atuação cômica surpreendente). Tirando tais aspectos, o remake dirigido por Paul Feig é muito mais representativo de uma tendência do cinema de aventura contemporâneo, em que o abuso de efeitos especiais e uma narrativa frenética deixa tudo com uma certa atmosfera histriônica e pouco imaginativa. Mesmo o fato de procurar fazer uma paródia dos clichês do cinema de horror moderno acaba soando um tanto redundante pela constatação de que boa parte das produções do gênero na atualidade já parece uma caricatura. Assim, ao invés do charme ingênuo e bem-humorado do filme original de 1984, o espectador fica com a sensação de uma obra genérica e pouco memorável.

quarta-feira, julho 20, 2016

Ralé, de Helena Ignêz ***

Em sua filmografia como diretora, Helena Ignêz tem se mostrado como uma espécie de herdeira existencial de Rogério Sganzerla. Se “Luz nas trevas” (2010) era uma continuação declarada de “O bandido da luz vermelha” (1968), em sua obra mais recente, “Ralé” (2015), ela cita diretamente outras duas obras emblemáticas do genial cineasta underground, “Copacabana Mon Amour” e “Sem essa, Aranha”, ambas de 1970. Tais citações, entretanto, não se limitam apenas a uma homenagem. Elas se inserem dentro de um espectro maior nessa produção que se configura como um filme-ensaio de Ignêz, em que dentro de uma trama fragmentada e metalinguística a cineasta dá vazão a suas obsessões estéticas e temáticas, num conceito de cinema em que a narrativa tradicional e outros aspectos da linguagem cinematográfica clássica se relativizam. Nessa estranha e experimental concepção artística, elementos de outras artes como o teatro, a literatura e a música se inserem com naturalidade. Além disso, permeia a obra um discurso político, ecológico, cultural e mesmo sexual que serve como uma declaração de princípios da diretora, o que faz com que por vezes o filme pareça um tanto ingênuo no seu texto e encenação. Ainda assim, o que predomina em “Ralé” é uma atmosfera delirante e libertária, e que prende o espectador pela sensualidade e fluidez da interação de seu elenco e pelo descompromisso com o formalismo realista, fazendo com que a pungência e humanismo de algumas sequências antológicas, com destaque para a cena em que Barão (Ney Matogrosso) e seu marido banham e limpam um idoso músico (José Celso Martinez Correa), causem um misto de perturbação de encantamento.

terça-feira, julho 19, 2016

Julieta, de Pedro Almodóvar ****

Quando o nome do diretor espanhol Pedro Almodóvar surgiu no panorama do cinema mundial, ali entre o final da década 70 e início dos anos 80, havia um forte caráter emblemático na sua arte e na sua própria figura. Afinal ainda eram os primeiros anos após longas décadas da ditadura franquista na Espanha, marcada pela repressão política, cultural e moral, e os primeiros filmes de Almodóvar, divertidos e anárquicos, representavam um desafogo desse período sombrio de seu país. Agora corte para o corrente ano de 2016: há uma Europa tomada por conflitos políticos e culturais envolvendo xenofobia, moralismos e demais discursos de uma direita profundamente reacionária e preconceituosa. Nesse contexto histórico bem diferente daquele em que despontou inicialmente, Almodóvar entrega uma obra que demonstra uma sintonia contundente com os tempos conturbados que vivemos. “Julieta” (2016) é uma libertária declaração de princípios que vem formatada numa estrutura narrativa que combina melodrama clássico e trejeitos de cinema noir, síntese estética essa que já havia sido trabalhada da maneira extraordinária em “A má educação” (2003) e “A pele que habito” (2011). No universo autoral de Almodóvar, sempre predomina uma tênue fronteira entre a elegância formal e uma abordagem sentimental despudorada, em que a tensão entre esses limites é o que torna as narrativas arrebatadoras. Em “Julieta” isso não é diferente, só que os detalhes rocambolescos do roteiro e a pungente encenação ganham um significado ainda mais complexo. Em meio a uma trama que envolve conflitos familiares, sexo e morte, há nuances na caracterização de personagens e situações que apresentam uma simbologia desconcertante, em que a protagonista Julieta (Emma Suárez/Adriana Ugarte) representa o humanismo e o conhecimento assediados pela repressão moral e religiosa da doméstica Marian (Rossy de Palma) e da própria filha Antía (Blanca Parés). É fascinante como os desdobramentos dessa história se apresentam de maneira apenas insinuada, fazendo com que muitas das ações mais importantes se manifestem no imaginário do próprio espectador, num exercício memorável de sutileza narrativa, com direito, inclusive, a citações da obra-prima “Esse obscuro objeto de desejo” (1977), o genial canto do cisne de Luis Buñuel. 

segunda-feira, julho 18, 2016

Florence: Quem é essa mulher?, de Stephen Frears **1/2

Nas décadas 1980 e 1990, o diretor britânico Stephen Frears se mostrou como um dos mais versáteis e talentosos nomes do cinema mundial. Ofereceu uma nova perspectiva para o gênero policial em “The Hit” (1984) e “Os imorais” (1990), dirigiu dramas naturalistas memoráveis como “Minha adorável lavanderia” (1985) e “O amor não tem sexo” (1987), fez comédias agridoces notáveis como “Herói por acidente” (1992) e “A grande família” (1993). Nas últimas décadas, entretanto, acabou entrando num decepcionante comodismo criativo, enveredando por obras acadêmicas e previsíveis que por vezes até rendem algumas indicações ao Oscar, mas que estão longe de colar no imaginário cinematográfico, vide produções como “A rainha” (2006) ou “Philomena” (2013). “Florence: Quem é essa mulher?” (2016) mostra que Frears continua nesse marasmo. A história real da personagem título até tem uma conotação interessante pela carga simbólica de revelar as hipocrisias sociais e culturais do circuito artístico da Nova Iorque dos anos 40. Mas o tratamento que Frears dá para narrativa é tão mecânico e superficial que poucas vezes o filme chega perto de causar alguma empolgação. É claro que dá para perceber boa parte da habitual elegância formal do cineasta, principalmente na sequência em que St. Clair (Hugh Grant) dá uma festinha regada a jazz e álcool em seu apartamento. Além disso, há a ótima atuação de Nina Arianda fazendo com que a sua personagem coadjuvante Agnes Stark sempre roube a cena quando aparece na tela. Mas esses eventuais rasgos positivos acabam sendo muito pouco para alguém com uma filmografia tão expressiva quanto Frears.

sexta-feira, julho 15, 2016

Que viva Eisenstein!, de Peter Greenaway ****

Com o passar dos anos, o diretor britânico Peter Greenaway se mostra cada vez mais insatisfeito com os rumos contemporâneos da linguagem cinematográfica. Isso fica evidente tanto em suas declarações como nos seus filmes. Nesse último caso, “Que viva Eisenstein!” (2015) é um atestado enfático de suas inquietações artísticas. Para começar, Greenaway usa como protagonista aquele cineasta que talvez seja o nome-chave na consolidação do cinema como expressão artística própria – o russo Sergei Eisenstein, que em obras-primas como “O encouraçado Potemkin” (1925) e “Outubro” (1928) estabeleceu um estilo de filmagem e edição que se tornou referência fundamental para a narrativa e a estética cinematográficas. O foco principal do roteiro se concentra no período em que Eisenstein esteve no México para realizar “Que viva México!”, obra que resultou inacabada. Só que o fato de usar figuras e situações “reais” não significa necessariamente que Greenaway tenha se vinculados aos moldes convencionais de uma cinebiografia. Na verdade, o diretor usa a perspectiva histórica como um elemento a mais dentro de uma concepção de cinema que se interliga com outros meios culturais (teatro, pintura, literatura, antropologia, tecnologia). Essa concepção multimídia do que seria um filme recebe um trato formal que prima pela coerência e o rigor sem que se perca o seu caráter libertário artístico. Greenaway não se limita apenas a reproduzir fatos históricos. O que ele faz é jogar o espectador dentro da mente fervilhante de criatividade e ávida por experiências e conhecimento de Eisenstein. Para isso, emula o estilo de montagem característico do seu biografado, intercala com trechos documentais e de sequências de alguns dos trabalhos mais célebres de Eisenstein e conecta tudo com a encenação virtuosa e repleta de nuances simbólicas que são típicas do próprio Greenaway. Esse choque de truques e recursos diversos resulta em um mosaico narrativo erudito e fascinante, que relaciona de maneira intrínseca arte, política, história, poder e sexo.

quinta-feira, julho 14, 2016

Ave, César!, de Ethan e Joel Coen ****


A filmografia dos irmãos Coen remete a uma espécie de inventário do imaginário cultural-histórico dos Estados Unidos, em que as produções que compõem esse conjunto fílmico sugerem se comunicar de maneira sofisticada e coerente. “Ave, César!” (2016) não foge da tradição desse particular projeto cinematográfico. Os roteiristas comunistas que sequestram o astro canastrão Baird Whitlock (George Clooney) parecem parceiros de copo e debates do dramaturgo enredado pelos ditames de Hollywood em “Barton Fink” (1991). Já a narrativa e o formalismo fortemente estilizados e de tons retrô demonstram sintonia com semelhante linha artística proposta em “A roda da fortuna” (1994). Mesmo a ambientação noturna em que o protagonista Edward Mannix (Josh Brolin) se embrenha em alguns momentos se liga às influências do noir que já haviam sidos recriadas de forma extraordinária em “Gosto de sangue” (1984) e “O homem que não estava lá” (2001). E o teor alucinado das antigas comédias amalucadas da primeira metade do século XX também guardam conexão com “Arizona nunca mais” (1986) e “Queime depois de ler” (2008). É de se deixar claro, entretanto, que “Ave, César!” não se trata de mera reciclagem de ideias e referências. Os irmãos Coen pegam suas tradicionais obsessões estéticas e temáticas e as remodelam sob uma perspectiva ainda mais madura e idiossincrática. No ambiente fictício de filmagens de produções nos estúdios da Capitol Pictures, os gêneros cinematográficos mais emblemáticos dos anos 40 e 50 (bíblico, faroeste, musical, melodrama) são recriados em engenhosos pastiches, mas essa caracterização exagerada de situações e personagens se expande para aquilo que seria o universo “real” do roteiro, onde o produtor Mannix tem de lidar com um cotidiano disfuncional de astros tendo chiliques, diretores querendo ver prevalecer suas ideias artísticas, problemas familiares, ofertas de emprego e mesmo uma conspiração comunista. Nesse jogo que beira o metalinguístico no choque entre a fantasia e a realidade, os Coen destilam perversa ironia não só contra o Star System dos grandes estúdios, mas também contra o ideário moral e os medos do norte-americano médio. Para isso, valem-se de um formalismo de registro entre o operístico e o delirante, de uma encenação precisa e do elenco com algumas atuações maneiristas antológicas (destaque para Alden Ehrenreich como um boa praça e hilário astro de faroestes). Ou seja, é como se estivéssemos diante de uma insólita e desconcertante síntese entre Howard Hawks e Fellini.

quarta-feira, julho 13, 2016

Procurando Dory, de Andrew Stanton e Angus MacLane ***

Em se tratando de animações originárias do estúdio Pixar, sempre dá para esperar um padrão de qualidade diferenciado – um grafismo requintado na combinação de realismo e estilização, narrativas que permitem o entrecruzamento fluente entre toques cômicos e leve dramaticidade (por vezes, até beirando o efetivamente sombrio), roteiros bem delineados e com personagens de caracterização carismática. Em “Procurando Dory” (2016), estão presentes todos esses preceitos, resultando numa obra divertida e envolvente (ainda que boa parte do terço final soe um tanto histérico e desnecessário). É evidente também, entretanto, que o filme não vai muito além disso, soando como uma variação competente e sem maiores ousadias de “Procurando Nemo” (2003), podendo soar frustrante para quem esperava algo mais transcendente na linha dos extraordinários “Os incríveis” (2004) e “Wall-E” (2008). Parece que depois do fiasco comercial que foi o brilhante e alucinado “John Carter: Entre dois mundos” (2012) o diretor Andrew Stanton preferiu apostar numa fórmula artística segura. Ou seja, no cômputo geral, “Procurando Dory” é diversão garantida, mas dessa vez quem leva a melhor como animação mais impactante da temporada é a Disney com “Zootopia”.

terça-feira, julho 12, 2016

Janis: Little girl blue, de Amy Berg ***

Há um fato bastante emblemático na vida da cantora norte-americana Janis Joplin no qual o documentário “Janis: Little girl blue” (2015), que trata da trajetória pessoal e artística de sua protagonista, se detém com bastante ênfase: o fato dela no auge do seu sucesso ter “demitido” a sua banda Big Brother and The Holding Company pelo motivo do grupo não ser o “profissional” suficiente para acompanha-la numa fase de sua carreira onde as expectativas seriam maiores. Na visão do filme, e de muitos apreciadores de rock, tal decisão da cantora foi equivocada pelo fato da Big Brohter ter sempre apresentado a sintonia artística e existencial ideal com Joplin. Após esse rompimento, a cantora nunca mais teria apresentado a mesma intensidade em seu trabalho e teve uma derrocada considerável em sua vida particular que acabou culminando numa overdose fatal de heroína. Tal teoria encontra uma ressonância simbólica na própria relação entre o documentário em questão e a sua biografada. Ainda que respeitável na sua combinação de farto material de arquivo entre preciosas imagens de apresentações de Joplin e depoimentos reveladores de parentes, amigos e parceiros de música, a produção dirigida por Amy Berg é de um formalismo correto e sem maiores ousadias, bem ao contrário da arte esfuziante e visceral de Joplin, um misto azeitado e muito particular de blues, rock e soul. Falta aquela centelha criativa que Martin Scorsese mostrou com brilhantismo em obras-primas como “O último concerto de rock” (1978) e “Bob Dylan: No direction home”. Ainda assim, “Janis: Little girl blue” não deixa de ser um retrato interessante tanto sobre uma artista fundamental do século XX como dos fascinantes e conturbados anos 60. 

segunda-feira, julho 11, 2016

Certo agora, errado antes, de Sang-soo Hong ***1/2

Se em “A visitante francesa” (2012) o diretor coreano Sang-soo Hong dividia a narrativa em múltiplas frentes para oferecer diferentes perspectivas sobre a mesma trama, em “Certo agora, errado antes” (2015) ele aprofunda a sua particular concepção artística. Num primeiro momento, as duas metades que compõem o roteiro do filme parecem oferecer as visões diferentes sobre os mesmos fatos dos dois protagonistas, um homem maduro e uma jovem que entram num jogo de flertes e sedução. Aos poucos, entretanto, esse jogo narrativo vai se mostrando cada vez mais complexo e fascinante. O contraponto que se faz entre as duas diferentes narrativas adquire significados diversos e que mesmo na conclusão do filme não deixa claro qual seria a intenção real da relação que se estabelece entre as histórias. Assim, entra também em cena os desejos dos personagens (poderia a segunda metade ser uma espécie de projeção mais idealizada do que deveria ter sido a primeira?), a subjetividade do olhar (na narrativa final são mostrados os detalhes cênicos e textuais que escaparam na primeira visão), as diferenças na construção da atmosfera da obra (se na primeira parte predomina uma ambientação mais contida, na segunda se adota um tom de comicidade discreta que por vezes até beira o fabular). Ainda dentro desse processo sutil de desconstrução da narrativa, o cineasta adota um insólito estilo de filmar que evoca a fronteira entre o documental e o registro caseiro, o que acentua ainda mais o estranho encanto da produção.

sexta-feira, julho 08, 2016

Kaos, de Paolo e Vittorio Taviani ****

O cinema dos irmãos Taviani sempre manteve uma forte ligação com a literatura. “Kaos” (2013) representa um dos grandes pontos altos dessa relação. Adaptando contos escritos por Luigi Pirandello, os cineastas extraem uma síntese narrativa extraordinária e uma forte coesão artística. A ligação que se dá entre os episódios é quase tênue em termos textuais, mas a atmosfera é sempre a mesma, uma estranha e encantadora combinação de encenação naturalista e ambientação fantástica, algo como se a tradição do neorrealismo italiano passasse por um filtro estético muito particular, por vezes com a impressão de um delírio onírico filmado com traços documentais. Não se trata apenas de transpor um texto literário para um âmbito imagético, mas também de o recriar a partir de uma linguagem nova, a um ponto que essa ligação se torne intrínseca. Assim, a majestosa direção de fotografia e encenação repleta de nuances dramáticas e cômicas consegue traduzir toda aquela gama de sentimentos e sensações atávicos e místicos das histórias de Pirandello dentro de uma experiência audiovisual que cola no imaginário do espectador como se fosse uma velha lenda.

quinta-feira, julho 07, 2016

Tudo vai ficar bem, de Wim Wenders ***

Em “A paixão de JL” (2014), fascinante misto de documentário/ensaio/diário pessoal concebido por Carlos Nader que faz uma espécie de síntese do imaginário e das impressões intimistas do artista plástico José Leonilson, há uma presença forte do cineasta alemão Wim Wenders na narrativa. Tanto que são exibidos trechos de três de seus filmes da década de 80 (“Um filme para Nick”, “Paris, Texas” e “Asas do desejo”). Isso reforça como Wenders foi uma influência fundamental na configuração cultural e mesmo existencial de uma geração de cinéfilos e artistas em geral, tanto por estabelecer a sua temática recorrente da busca de identidade própria do ser humano contemporâneo como na consolidação de uma estética que valoriza da mesma maneira o modo americano quase intuitivo de filmar e o estilo reflexivo e cerebral tipicamente germânico de conceber a narrativa cinematográfica. Dessa forma, chega a ser uma curiosa coincidência do destino que a mais nova produção de Wenders, “Tudo vai ficar bem” (2015), tenha entrado em cartaz ao mesmo tempo que o filme de Nader ainda estava presente nos circuitos de cinema. Num primeiro momento, esse acaso pode até ser infeliz para o trabalho recente de Wenders, no sentido de se fazer inevitáveis comparações e se constatar que ele é bem inferior às obras citadas em “A paixão de JL”. Há algumas concessões formais e excessos solenes e sentimentais que comprometem a marca autoral do diretor. Ainda assim, por alguns momentos Wenders mostra que ainda é capaz de preservar uma elegância artística na condução da narrativa, conseguindo obter uma atmosfera estranha e cativante ao contar a história de um escritor (James Franco) que percebe que extrair inspiração de situações trágicas é um eficiente recurso literário. Nas mãos de um diretor qualquer, tal história poderia se converter num simples conto moralista, mas sob o olhar de Wenders ganha contornos irônicos bem interessantes. A sequência, por exemplo, em que o protagonista é estapeado por uma rancorosa ex-esposa (Rachel McAdams) é memorável no seu sutil sarcasmo. Assim, por mais que “Tudo vai ficar bem” esteja distante de entra numa antologia dos melhores filmes de Wenders, é bem mais interessante que a hagiografia institucional de “O sal da terra” (2014).

quarta-feira, julho 06, 2016

Contrato vitalício, de Ian SBF **

Alguns dos episódios exibidos na internet do coletivo cômico Porta dos fundos realmente são bem interessantes e engraçados na sua concepção de humor que mistura escatologia, ironia e crítica comportamental. Na transposição desse direcionamento artístico para o cinema, conforme pode ser observado em “Contrato vitalício” (2016), não dá para dizer que o grupo abriu grandes concessões comerciais. Pelo contrário – mesmo estruturado como uma grande trama de ficção, fica evidente que o espírito de comédia ácida de Gregório Duvivier, Fábio Porchat e companhia permanece característico. O problema do filme é que na realidade nem tudo que funciona num episódio de fôlego curto acaba tendo a mesma efetividade numa narrativa mais longa. O roteiro até guarda alguns temas atraentes pelo seu teor contestatório dos costumes da sociedade brasileira contemporânea – conflito entre comércio e arte, a efemeridade das manifestações culturais em tempos de redes sociais, conflitos de classes. O problema é que a narrativa parece se estruturar a partir de sketches cômicos individuais de cada um dos membros do Porta dos fundos sem que haja uma ideia de unidade natural de interação entre elas. Alguns tipos criados pela trupe apresentam alguma ressonância em termos de profundidade, mas outros são apenas caricaturais e óbvios. Em algumas das melhores produções cinematográficas do grupo inglês Monty Python havia essa mesma ideia de estrutura narrativa a partir de sketches, mas a diferença é que se obedecia a uma ordem existencial e artística de notável fluência. Claro que a comparação pode soar desproporcional e injusta, mas também indica que há caminhos criativos para o coletivo brasileiro evoluir dentro da sua trajetória cinematográfica.

terça-feira, julho 05, 2016

Paulina, de Santiago Mitre ***1/2

A narrativa em “Paulina” (2015) tem o seu desenvolvimento obedecendo a princípios dialéticos. Os primeiros momentos do filme, registrados praticamente num plano-sequência austero, mostram um conflito verbal entre a protagonista Paulina (Dolores Fonzi) e seu pai Fernando (Oscar Martinez), em que cada personagem teoriza e fundamenta seus respectivos comportamentos e ideários contrastantes, ainda que ambos pareçam alinhados a uma ideologia de esquerda. Na penúltima sequência da produção, eles voltam a duelar existencialmente, só que dessa vez entra em cena toda a dura experiência de vida da personagem principal para ilustrar um posicionamento de vida coerente e humanista, desconcertando os valores pequeno-burgueses hipócritas da figura patriarcal. Entre as duas sequências citadas, há um desenvolvimento marcado por uma rigorosa construção formal e temática. Direção de fotografia e edição obedecem a um direcionamento naturalista que não se aventura em grandes arroubos estéticos, mas que oferecem a moldura narrativa ideal que amplifica ainda mais a complexidade do roteiro, em que os preceitos mais caros de uma sociedade marcada pelo sexismo, injustiça social e repressão estatal são desconstruídos de maneira sutil e perturbadora. Num primeiro momento, as escolhas de Paulina em como proceder ética e moralmente após ter sido estuprada por um grupo de camponeses podem parecer radicais e insólitas, mas aos poucos vão revelando um sentido humano desconcertante e desafiador.

sexta-feira, julho 01, 2016

Procurando Sugar Man, de Malik Bendjelloul ***1/2

Há versões que dizem que a história contada no documentário “Procurando Sugar Man” (2012) não seria totalmente verdadeira, principalmente no que diz respeito ao fato de que o cantor Sixto Diaz Rodriguez não estaria num ostracismo tão radical a ponto de muita gente considerar que ele estava morto. No final das contas, entretanto, não é algo que chega ao ponto de tirar o brilho do filme dirigido por Malik Bendjelloul como uma obra tão envolvente e emocionante. A trajetória do protagonista tem um alcance universal no sentido de simbolizar a força de uma arte verdadeira e visceral a ponto de criar laços inesperados com o público, independente das fronteiras e mesmo das estratégias mercadológicas (nesse sentido, impossível não lembrar do magnífico “Buena Vista Social Club” de Wim Wenders). Tal colocação pode até parecer ingênua ou óbvia, mas em tempos que medíocres programas televisivos privilegiam uma música formatada de acordo com o gosto médio e comercial, é extremamente salutar e revigorante ver o triunfo, ainda que tardio, de uma figura como Rodriguez. Mesmo que a acusação contra o filme de manipulação de fatos e sentimentos possa ser verdadeira, é inegável que a concepção artística de Bendjelloul para a sua narrativa tem um impacto sensorial notável, valorizando de maneira apaixonada a música tocante de Rodriguez.