A trajetória pessoal e artística do diretor Roman Polanski
foi marcada por alguns fatos polêmicos – a morte da família em um campo de
concentração, obras que lidavam com o macabro e a perversidade, esposa
assassinada por uma seita, a acusação e a condenação por estupro de menor. Tudo
isso, em menor ou maior grau, sempre se refletiu nos seus filmes. Essa relação
tão intrínseca entre a vida e a arte atinge um ponto criativo extraordinário em
“A pele de Vênus” (2013). Ainda que baseada numa peça teatral escrita pelo
dramaturgo David Ives, todos os dilemas existenciais da trama e os truques
estéticos parecem refletir as obsessões artísticas e pessoais de Polanski. Mas
a produção vai muito além de uma mera egotrip – entre devaneios formais e
temáticos, há também espaço para uma visão arguta e irônica sobre a história da
arte, principalmente no que diz respeito à visão que se tem da mulher nas
variadas expressões culturais.
A escritora Camille Paglia já havia dito em “Personas
sexuais” que a história da literatura ocidental se resumia basicamente ao medo
atávico do homem em relação a mulher. Tal relação parece ser a mola mestra da
narrativa em “A pele de Vênus”. A relação que se estabelece entre o diretor teatral
Thomas (Mathieu Amalric) e a atriz Vanda (Emmanuelle Seigner) é um misto
perturbador de poder, sedução e dissolução. O que era para ser uma audição
passa a ser um exercício de questionamento sobre o caráter misógino que
impregna o texto literário de Leopold von Sacher-Masoch. Gradualmente, a simbologia
entre o conflito verbal e até mesmo físico entre os protagonistas vai se
tornando cada vez mais rica e complexa nas suas referências e significados.
Será que tudo é permitido realmente em nome da arte? O artista está acima das
questões morais? Tais indagações recebem um tratamento textual bastante
refinado, com direito a citações a Velvet Underground, psicanálise, tragédia
grega e teatro oriental. Essa forte conotação humanista do roteiro recebe um
tratamento formal ousado e vibrante. Ainda que baseada num original teatral e o
próprio espaço de atuação se seja dentro de um teatro, “A pele de Vênus” tem
ritmo narrativo estabelecido por Polanski de talhe cinematográfico, baseado
numa encenação precisa e na edição repleta de nuances expressivas, além da
fotografia cujos enquadramentos e iluminação criam uma atmosfera entre o real e
o pesadelo. Mas ainda que o seu formalismo seja eminentemente cinematográfico,
é fascinante a forma com que Polanski insere o teatro e a literatura dentro do
seu arcabouço narrativo. São duas ações que correm de forma simultânea – a do
plano “real” do ensaio e jogo mental entre Thomas e Vanda e aquela do universo
da peça encenada. As duas se cruzam de forma intensa e constante, cuja mudança
de plano se sucede apenas nas sutis mudanças no tom de voz ou na expressão do
olhar dos intérpretes. Por trás de inflexão de cada palavra ou gesto de Vanda há
uma armadilha para Thomas, assim como as variações no tom de voz e no olhar
desse último escodem desejos e medos obscuros. A genialidade de Polanski se
manifesta principalmente no forma com que todos esses detalhes formais,
narrativos e textuais se combinam e se fundem numa obra atemporal e ambígua.
Ele dá a impressão de falar de si mesmo, mas na verdade fala também sobre todos
nós.