Por mais que os métodos narrativos do diretor e roteirista
Charlie Kaufman possam parecer atípicos, a verdade é que o seu universo
artístico não chega a ser exatamente hermético. Suas tramas versam sobre uma
temática de forte caráter humanista, como se fossem um retrato existencial do
homem moderno e seus dilemas e contradições – a sensação de desajuste social,
as dificuldades e as inconstâncias nas relações humanas, o vazio existencial.
As escolhas por soluções estéticas inusitadas não são gratuitas, caracterizando
uma forma bastante coerente a retratar os aspectos difusos das situações e
personagens que aparecem nas histórias concebidas por Kaufman. Num contexto
geral, a conjunções entre essas características textuais e formais criam uma
forte relação de identificação com boa parte da audiência. Esse viés autoral de
Kaufman se preserva de forma consistente em “Anomalisa” (2015). Há um atrativo
diferente nessa nova empreitada do cineasta, o de enveredar pelo campo da
animação, e isso acaba se revelando como uma opção que ao longo da narrativa
mostra a sua pertinência. O filme se baseia num intenso jogo de simbolismos
visuais e sonoros a retratar a mente em colapso do protagonista Michael Stone
(David Thewis): todos as pessoas com quem o personagem principal se relaciona
apresentam o mesmo rosto e a mesma voz, fazendo com que ele fique em um
permanente estado de ânimo misto de desinteresse e angústia. O fato da produção
ser uma animação faz com que as possibilidades audiovisuais fiquem mais amplas
a retratar esse mundo perturbador que está dentro da cabeça de Stone. Dentro
dessa lógica, a narrativa por vezes se mostra como um sutil pesadelo, com
Kaufman e o codiretor Duke Johnson sabendo conduzir a história com sensibilidade
no limite entre o real e o onírico. O grafismo da animação entra em sintonia
perfeita com o espírito da trama, em que não há um grande rebuscamento
imagético, mas que também é extremamente expressiva na valorização de nuances
de olhares e gestuais. A entrada em cena de Lisa (Jennifer Jason Leigh) realça
ainda mais os detalhes formais e temáticos da obra. Os diálogos que ela tem com
Michael e mesmo a crua sequência de sexo entre os dois têm um lirismo a
flor-da-pele raro de ser no cinema atual. A figura de Lisa também tem o papel
fundamental a mostrar a efetiva percepção do que significa o atribulado
comportamento de Michael. O caráter metafórico da encenação e do roteiro de “Anomalisa”
é até simples no seu sentido e execução, sem que com isso se perca uma
profundidade contundente capaz tanto de encantar quanto incomodar o espectador.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, janeiro 29, 2016
quinta-feira, janeiro 28, 2016
Snoopy e Charlie Brown - Peanuts, o filme, de Steve Martino **1/2
Tentar trazer para o universo cinematográfico um universo
tão particular como os quadrinhos originais de Charles M. Schulz não é uma das
tarefas mais fáceis. Por trás da leveza do traço e da graciosidade de alguns
personagens e situações, existia nas tirinhas do consagrado quadrinista um
certo veneno existencial que ultrapassava os limites do simplesmente fofinho.
Algumas décadas atrás, foram lançados alguns episódios de animação para a
televisão que se tornaram antológicos justamente por saber preservar a ironia
amarga tão característica de Peanuts. Essa sutileza artística é o grande ponto
fraco de “Snoopy e Charlie Brown – Peanuts, o filme” (2015). Num primeiro
momento, até dá para simpatizar com a beleza do traço, que mescla estilização
com simplicidade. E se pode perceber também que o diretor Steve Martino soube
preservar algumas características básicas e dilemas dos principais personagens
da série. Ocorre, entretanto, que num contexto geral o filme se rende a um
roteiro e a uma estrutura narrativa convencionais em demasia, com os principais
conflitos da trama se submetendo a uma lógica moralista e edificante. Há uma
pasteurização das figuras criadas por Schulz, como se procurassem adequar
aquele universo dentro de uma lógica mais acessível em termos comerciais.
Talvez esse direcionamento possa render alguns dividendos para seus produtores,
mas dificilmente essa será a animação definitiva sobre Snoopy, Charlie Brown e
sua turma. Assim, é melhor continuar com as reedições das HQs...
quarta-feira, janeiro 27, 2016
A grande aposta, de Adam McKay ***1/2
O cineasta Adam McKay talvez seja o grande nome da comédia
norte-americana do século XXI. Ele obteve uma síntese artística extraordinária
ao combinar um humor físico beirando o escatológico e o grosseiro com um fino
senso crítico do american way of life. Dentro desse estilo particular, lançou
algumas produções cômicas antológicas como “O âncora” (2004), “Ricky Bobby” (2006)
e “Quase irmãos” (2008). Se em “Tudo por um furo” (2013) houve a impressão de
que essa sua habitual “fórmula” criativa dava sinais de cansaço, em “A grande
aposta” (2015) ele mostra uma ousada reformulação em seus preceitos narrativos.
Num primeiro momento, esse seu trabalho mais recente dá a impressão de mudança
radical inclusive de gênero cinematográfico, com McKay enveredando para o “drama
baseado em fatos reais”. E não seriam quaisquer eventos verídicos: a trama tem
por mote principal a crise econômica de 2008 que levou milhões a perderem
empregos e moradias nos Estados Unidos. Por mais que tal temática tenha a sua
aura de seriedade, McKay se permite empregar o seu notório senso de humor
ácido, só que de forma mais sutil e com resultados igualmente demolidores. Ao
invés de investir numa simples narrativa naturalista e linear, o diretor insere
alguns truques estéticos desconcertantes, principalmente elementos de
metalinguagem. Dá para sentir em cada fotograma de “A grande aposta” que as ambições
artísticas de McKay são grandes para sua obra, com o filme se pretendo como uma
espécie de panorama épico a retratar a decadência econômica e moral de uma
nação. A encenação, por vezes, se caracteriza como um verdadeiro teatro do
absurdo – por mais que a caracterização de situações e personagens possam
parecer caricatas, tal direcionamento conceitual é o perfeito complemento para
uma história repleta de episódios que beiram o delirante, ainda que sejam
verdadeiros. A visão existencial da obra é de uma lucidez cortante e
melancólica, em que o capitalismo de consumismo e lucro desenfreados é encarado
por banqueiros, corretores da bolsa e mesmo pelos pobres coitados que são
rapinados como uma verdadeira religião. Em alguns momentos, McKay invoca aquele
idealismo social típico de Frank Capra, com o personagem Mark Baum (Steve
Carell) parecendo um James Stewart do novo milênio, ainda que com uma dose de
cinismo e desilusão mais considerável, fazendo um contraponto com uma época
mais esperançosa e ingênua. O elenco do filme também se mostra em sintonia com
essa atmosfera alucinada que impera em “A grande aposta”, com destaque para as
sutis nuances dramáticas de Christian Bale, a caracterização fanfarrona de Ryan
Gosling e a fúria amarga de Carell.
É interessante notar como “A grande aposta” forma com “Spotlight”
e “Steve Jobs”, outras duas produções de 2015 também oscarizáveis, uma trinca
de obras que parecem traçar um contundente panorama social, econômico e
cultural da sociedade norte-americana dessas últimas décadas, mostrando a força
das estruturas de poder do capitalismo em tempos de cólera.
terça-feira, janeiro 26, 2016
As maravilhas, de Alice Rohrwacher ***1/2
A diretora italiana Alice Rohrwacher consegue em “As
maravilhas” (2014) fazer uma estranha e fascinante síntese entre reminiscências
pessoais e referências cinematográficas clássicas. Não é gratuito que a
protagonista juvenil do filme se chama Gelsomina, em alusão clara a inesquecível
personagem principal interpretada por Giulietta Masina na obra-prima “A estrada
da vida” (1954) de Fellini - Rohrwacher busca conexão com aquele típico
cruzamento de memorialismo e fantasia que marcou algumas das mais emblemáticas
produções do genial cineasta italiano. Por outro lado, o registro por vezes de
tons realistas do filme, em que o formalismo dispensa música incidental e se
utiliza de uma direção de fotografia de estilo seco e naturalista, parece
herdeiro da poética e crua estética que Ermano Olmi imprimiu em “A árvores dos
tamancos” (1978). Ainda que se utilize de todas essas influências e citações, “As
maravilhas” consegue surpreender por constituir um universo bastante particular
na forma com que situações e personagens se desenvolvem ao longo da trama. Num
primeiro momento, o retrato da vida no campo da família de Gelsomina (Maria
Alexandra Lungu) parece se vincular ao gênero da crônica familiar. Aos poucos,
entretanto, a atmosfera sensorial vai se revelando mais difusa e misteriosa. É
como se o expectador estivesse tendo acessos a memórias distantes, mas a
presenças de canções e tecnologias modernas situam a narrativa em um espaço
temporal que insinua o tempo presente. Essa impressão de confusão temporal fica
ainda mais acentuada com elementos culturais regionais do interior da Itália
que se inserem em determinadas passagens. Se por um lado se poderia pensar numa
crônica nostálgica sobre um bucolismo idílico e nostálgico, por várias vezes,
de forma sutil, surgem na história elementos fáticos como a crise econômica e a
banalização cultural da mídia eletrônica que distorcem essa noção de paraíso
rural. O roteiro do filme de Rohrwacher desmonta as ilusões da permanência das
tradições e mesmo da noção de conforto existencial que o senso de comunidade e
de família podem sugerir no meio de um mundo em constante transformação. Diante
disso, a presença de um camelo no meio de um doméstico cenário rural, o
melodioso assobiar de um garoto e mesmo a doce brincadeira de esconder abelhas
na boca são apenas belos e efêmeros momentos de humanismo.
segunda-feira, janeiro 25, 2016
Creed, de Ryan Coogler ****
Por mais que puristas e parte da crítica não admitam, a
verdade é que o cinema em primeiro lugar é indústria e cultura de massa. O que
permitiu que ele se consolidasse como meio de expressão cultural foi justamente
o fato de que boa parte do que era produzido teve viabilidade financeira,
permitindo o lucro para produtores e demais partes envolvidas no processo.
Dentro dessa lógica, se um determinado produto cinematográfico tem um lucro
considerável, é natural que seus “donos” queiram prolongar essa oportunidade de
ganhar mais dinheiro. Assim, continuações de um filme que fez sucesso
representam uma prática consagrada dentro da indústria de cinema desde
praticamente quando tal indústria se estabeleceu. Esse raciocínio pode parecer
frio ou pragmático, mas na realidade é apenas a constatação de uma realidade
fática. Dentro dessa lógica capitalista, contudo, é claro que pode haver uma
transcendência artística, em que essas produções que dão continuidade aos
eventos de um determinado universo (sequências, spin-offs, prequels e afins)
acabam oferecendo uma dimensão existencial ainda mais aprofundada para
personagens e situações. E é justamente nesse caso que se pode enquadrar “Creed”
(2015), obra que dá prosseguimento aos fatos apresentados em “Rocky: Um lutador”
(1976) e suas demais sequencias.
Ainda que a figura do pugilista Rocky Balboa (Sylvester
Stallone) hoje esteja grudada no imaginário cinematográfico geral, a verdade
também é que ao longo dos anos a imagem do personagem foi vilipendiada e
banalizada pelo caráter oportunista de algumas das continuações que a franquia
teve. Nesse sentido, talvez o auge dessa postura esteja no nacionalismo obtuso
de “Rocky 4” (1985), em que o combate final entre Rocky e Ivan Drago (Dolph Lundgren)
servia como metáfora picareta do conflito político entre Estados Unidos e União
Soviética durante a Guerra Fria. Em “Rocky Balboa” (2006), Stallone retomou o
caráter mais humano e pé-no-chão para o personagem que o consagrou, com uma
trama que evoca dilemas típicos da obra clássica de 1976, além da abordagem
estética que dava uma atmosfera nostálgica e crepuscular para a saga do célebre
lutador. Dentro dessa perspectiva, “Creed” não só investe no prosseguimento desse
processo de recuperação da imagem de Rocky, como também oferece caminhos
renovadores e dá ao personagem um tamanho existencial notável.
O diretor Ryan Coogler consegue uma síntese artística precisa
– ao mesmo tempo que a dinâmica narrativa é arejada e modernizada no melhor
sentido da palavra (é de se reparar como a linguagem televisiva de canais
esportivos da atualidade é integrada com naturalidade dentro de um estilo clássico
de cinema), ele incorpora a mitologia e todos os clichês temáticos e formais típicos
da série, dando-lhes um sentido de coerência artística extraordinária. Até o já
aludido e malfadado “Rocky 4” acaba ganhando uma importância redentora. E
dentro da construção dramática proposta por Coogler, o aspecto mais sensacional
é a forma como o próprio Rocky Balboa é mostrado em cena, um misto de lenda
viva e de humanidade fragilizada, fazendo de Stallone uma presença fortemente
magnética em cada enquadramento que aparece. No mais, o que se tem em “Creed” é
uma demonstração de vigoroso virtuosismo estético que se adequa perfeitamente à
ambientação mitológica. O filme é uma sucessão de sequências antológicas: a
mistura de pauleira e sentimentalismo da abertura, o plano-sequência da primeira
luta efetivamente profissional do protagonista Adonis Creed (Michael P.
Jordan), a sucessão da montagem das cenas de treinamento de Creed tendo ao
fundo um Rocky doente e envelhecido, a corrida de Creed pelas ruas cercado por
motociclistas, a subida do combalido Rocky pela célebre escadaria do Museu de Arte
da Filadélfia.
Se Stallone já tinha conseguido no surpreendente “Rambo 4” (2008)
dar um final casca grossa e digno para a saga do personagem-título, agora
Coogler constrói em “Creed” um belo canto do cisne para a outra famosa criatura
do veterano ator.
sexta-feira, janeiro 22, 2016
Carol, de Todd Haynes ***
Dentro do universo autoral do diretor norte-americano Todd
Haynes, aspectos estéticos como figurino, direção de arte e fotografia não são
apenas quesitos técnicos, mas pontos fundamentais que se relacionam de forma
profunda com as temáticas de seus filmes. Longe de um mero apuro formal
estéril, tais detalhes imagéticos refletem a condição existencial dos
personagens, funcionam como alegorias visuais do subtexto dos roteiros e também
caracterizam a própria visão de mundo de Haynes, ajudando a dar um padrão bastante
pessoal para a sua filmografia. Foi assim na recriação despudorada do universo
do glam rock em “Velvet Goldmine” (1998), na irônica mescla de estilos retrôs
em “Longe do paraíso” (2002) e na viagem sensorial pelo imaginário de Bob Dylan
em “Não estou lá” (2007). “Carol” (2015), produção mais recente com a
assinatura de Haynes, mantem esse habitual e forte esmero formal do diretor,
estando repletos de virtuosismos de encher os olhos como planos de sequências
muito bem executados, reconstituição de época primorosa dos anos 50 e
caracterização visual chique ao extremo dos personagens (até as figuras de
condição social mais modesta são muito bem vestidas). O problema é que dessa
vez o cuidado estético não encontra uma narrativa à altura. Por mais que haja
aquela aura de ousadia por trazer para o primeiro plano uma história de amor
lésbico, o tratamento dado é muito convencional, por vezes chegando até a
beirar o enfadonho. Os dilemas da trama resvalam no melodrama excessivo, e
quando as cenas se concentram no romance entre as protagonistas, inclusive nas
sequências de sexo, há uma atmosfera diáfana, quase de beatitude, o que tira
bastante da força dramática de tais momentos. Por mais que a história se passe
num período de forte repressão moral, falta uma carnalidade mais vigorosa na
interação de tais personagens que torne o amor entre elas mais verossímil (nos
moldes, por exemplo, do extraordinário “Azul é a cor mais quente”). É claro que,
no geral, “Carol” é um drama eficiente e envolvente, mas em se tratando de um
cineasta com o currículo de Haynes acaba sendo um tanto frustrante.
quinta-feira, janeiro 21, 2016
Eu sou Ingrid Bergman, de Stig Björkman ***
O título do documentário “Eu sou Ingrid Bergman” (2015)
sintetiza com propriedade a sua essência artística – trata-se de uma
cinebiografia cuja boa parte do direcionamento narrativo é dado pela própria
protagonista. Desde criança, a atriz sueca já tinha registros audiovisuais
feitos pelo pai. Com o passar dos anos, manteve o hábito de filmar vários
momentos de seu cotidiano com maridos, filhos e amigos. Além disso, por quase
toda a vida escrevia suas memórias e impressões em diários e cartas para
amigas. Nesse sentido, por vezes há um efeito sensorial interessante, em que
espectador tem a impressão de estar dentro da mente de Bergman. Assim, aliado a
filmagens de bastidores, trechos de noticiários e passagens de algumas das
produções mais memoráveis das quais ela participou, o diretor Stig Björkman
teve a sua disposição um farto material para compor sua narrativa. Ainda que
obedecendo a uma estrutura formal bastante convencional, o cineasta conseguiu
oferecer um panorama bem amplo da vida de Ingrid Bergman, mostrando com
sensibilidade os dilemas e contradições dramáticos que marcaram a vida pessoal
e profissional da biografada, além de evidenciar como tais fatos refletiram a
época em que ela viveu: os anos de ouro de Hollywood (e as hipocrisias morais e
comportamentais que marcavam aquele ambiente), a conturbada relação emocional e
artística com o genial diretor italiano Roberto Rossellini, a incessante busca
por credibilidade artística. Há uma certa sobriedade emocional na forma com que
Björkman conduz o documentário, sabendo ressaltar a complexidade e
independência do caráter da atriz nas escolhas artísticas e particulares que
fez durante a sua trajetória. Assim, além de atraente para aqueles que apreciam
a história do cinema, “Eu sou Ingrid Bergman” consegue ser universal por trazer
à tona uma pessoa singular em diversos aspectos.
terça-feira, janeiro 19, 2016
Steve Jobs, de Danny Boyle ***1/2
Aqueles que são detratores de Steve Jobs, ou mesmo aqueles
que simplesmente não se importam com a figura em questão, podem até questionar
se ele é tão importante ou interessante assim a ponto de receber duas
cinebiografias no curto espaço de dois anos. Mas se “Jobs” (2013) era apenas
uma obra oportunista e sem inspiração a retratar a vida do célebre e polêmico
criador e CEO da Apple, esse “Steve Jobs” (2015) é bem mais interessante como
produto cinematográfico. Para começar, só o nome de Danny Boyle na direção já
faria o espectador dar uma atenção especial para a produção. E o cineasta não
se fez de rogado, construindo uma estrutura narrativa fascinante. Boyle não
optou por soluções estéticas e temáticas óbvias, e nem mesmo sua abordagem pode
ser enquadrada na simples linguagem naturalista. Talvez a referência artística
que mais venha à mente seria algumas produções delirantes de Fellini, com
destaque para “Oito e meio” (1963). A maioria da ação da trama se concentra nos
bastidores de eventos de lançamentos de produtos criados por Jobs, e dessa
forma boa parte das pessoas que fizeram parte da vida do protagonista
(familiares, amigos, parceiros de trabalho, desafetos) circula nesses ambientes
frenéticos e tensos, fazendo com que a interação entre Jobs (Michael
Fassbender) e tais personagens seja marcada por ressentimentos e discussões
acaloradas. Intercaladas com essas sequências são mostrados flashes de
noticiários e fragmentos de memórias, como se houvesse uma contraposição entre
o discurso oficial “laudatório” sobre Jobs e a realidade bem menos idealizada
que o cercava. O roteiro do filme contempla com fidelidade a complexidade dos
fatos, não caindo em maniqueísmos ou simplificações, e acaba demonstrando uma
sintonia existencial e artística com “A rede social” (2010), no sentido de também
ser uma espécie de crônica da moral e dos costumes desse milênio marcado pela
virtualidade e pelo efêmero. O formalismo barroco concebido por Boyle, repleto
de trucagens criativas e uma atmosfera que remete por vezes ao onírico, torna
essa saga sensorial sobre tecnologia, dinheiro, poder e alienação ainda mais
memorável e perturbadora.
segunda-feira, janeiro 18, 2016
Spotlight - Segredos revelados, de Tom McCarthy ***1/2
Em um primeiro plano, a trama de “Spotlight – Segredos revelados”
(2015) teria como temática principal a questão da pedofilia dentro da igreja
católica. Ocorre, entretanto, que o subtexto do roteiro em questão é tão
sofisticado que aos poucos se pode perceber que o alcance da história é ainda
mais amplo. A narrativa construída pelo diretor Tom McCarthy é marcada pela
sutileza e detalhismo em vários aspectos, principalmente na elegância da
encenação e nos sinuosos e irônicos diálogos, além de um certo distanciamento
emocional que evita que o filme caia no edificante meloso ou no denuncismo
vazio. Na verdade, trata-se até de uma obra que se permite algumas ousadias
artísticas e políticas, pois o que entra em pauta de forma efetiva é uma
crítica ácida contra as estruturas de poder dentro da sociedade ocidental. Todo
o processo de jornalismo investigativo no quais os principais personagens se
dedicam é esmiuçado com profundidade e rigor, fazendo até lembrar clássicos do
gênero como “Todos os homens do presidente” (1976), mas se pode perceber que
quando tal processo toma início há obstáculos que com até certa facilidade são
transpostos. O que a história mostra como grande dilema é a dificuldade em dar
o primeiro passo, o de decidir abrir tal investigação, em que o imobilismo é
estimulado por um conjunto de instituições (igreja, polícia, justiça, imprensa)
mais dedicado a preservar o status quo do que em proteger os direitos dos
indivíduos. Nesse sentido, a figura do jornalista Walter Robinson (Michael
Keaton) é notável como síntese dos conflitos e contradições que marcam a trama –
responsável como chefe do grupo de jornalistas investigativos, aos poucos
descobre que alguns dos principais envolvidos na tramoia de ocultamento de
casos de pedofilias praticados por padres são pessoas com as quais mantém um
constante convívio social em seu cotidiano, percebendo também que por um bom
tempo, ainda que de forma inconsciente, ele mesmo foi responsável por tal
situação. São em nuances como essa que “Spotlight” se mostra uma produção acima
da média e surpreendente, evitando a solução fácil de maniqueísmos pueris ou
mesmo o viés hipócrita e conciliatório.
sexta-feira, janeiro 15, 2016
Boi neon, de Gabriel Mascaro ****
O rústico peão Iremar (Juliano Cazarré) trabalha nos
bastidores de um rodeio itinerante – alimenta os bois, limpa a merda deles,
atiça os bichos em momentos cruciais dos eventos. Quando tem um tempo,
dedica-se a criar e costurar roupas femininas, mostrando criatividade e ousadia
expressivas. O fato de atuar em dois polos aparentemente tão distintos,
entretanto, não é apresentado como sinal de uma possível ambiguidade sexual –
tanto que a longa e detalhada sequência em que transa com uma mulher que
conheceu na estrada, uma das melhores cenas de sexo do cinema brasileiro dos
últimos tempos, revela sua heterossexualidade plena. Esse caráter libertário na
caracterização desse personagem é fortemente simbólico da proposta
estética-existencial de “Boi neon” (2015). Ainda que aparentemente esteja atrelado
a uma narrativa linear, o filme do diretor Gabriel Mascaro se desvincula de
maneira vigorosa de clichês e concessões. Na trama, há diversos elementos e
situações que trazem uma conotação metafórica contundente – os peões que
masturbam um cavalo para roubar seu sêmem, os trabalhadores que tomam banho
juntos numa ambientação que tanto alude a homoerotismo velado quanto a
naturalidade da convivência de parceiros de labuta, a mulher que transa com um
peão metrossexual de longos cabelos alisados (a encenação noturna faz com que
se veja silhuetas dos personagens, sugerindo na aparência uma transa lésbica),
a menina que convive sem maiores traumas num ambiente de sensualidade latente e
brutalidade instintiva (sua fixação em cavalos poderia ser uma possiblidade de
fuga imaginária?), a ausência de uma efetiva posição preconceituosa dos
personagens em relação a comportamentos fora dos padrões “normais”. Na
conjugação disso tudo, o roteiro não busca soluções ou amarrações de pontas
soltas, mas sim estabelecer um retrato cru e humanista dos desejos e
frustrações de tais figuras. É como se por questão de quase duas horas fosse
permitido ao espectador assistir pela fresta alguns flagrantes das vidas dessas
pessoas. Nesse viés, o cotidiano prosaico demonstra um impacto dramático muito
mais convincente do que se tivesse grandes viradas novelescas na trama. E mesmo
o que era para ser uma abordagem naturalista acaba se revelando difusa, pois as
intervenções cênicas envolvendo os figurinos elaborados por Iremar trazem um
conteúdo indefinido e fascinante entre o onírico e o real. O requinte formal de
Mascaro para embalar essa espécie de fábula amoral cabocla é extraordinário, em
que o registro de tons reflexivos e melancólicos de algumas cenas convive de
forma harmônica e intrínseca com a encenação vigorosa dos rodeios e os seus
bastidores. A síntese de todas essas escolhas artísticas de Nassaro faz com que
“Boi neon” se configure como uma bela e poética alegoria sobre o desejo e a
liberdade, na tradição de outras obras recentes do cinema nacional como “A
febre do rato” (2011) e “Tatuagem” (2013).
quinta-feira, janeiro 14, 2016
Cabana do inferno, de Eli Roth **1/2
Em termos de estrutura narrativa
e de roteiro, “Cabana do inferno” (2002), o primeiro longa-metragem dirigido
por Eli Roth, pouco se diferencia de grande parte do que se fez no gênero do
horror gore nos últimos anos. A trama é um pastiche cara-dura da franquia “Evid
Dead” com filmes de epidemia e rednecks enlouquecidos, abusando do grafismo
violento e escatológico, além da usual dose moralista em relação a jovens com
os hormônios em alta que acabam recebendo um “castigo” em forma de sangue e
degradação. Ainda que não apresente os mesmos requintes estéticos das duas
partes de “O albergue”, Roth já mostrava que tinha um talento diferencial para
esse tipo de produção, principalmente no sentido de saber criar atmosferas marcadas
pelo suspense e sordidez, além de bem vindos toques de ironia perversa.
quarta-feira, janeiro 13, 2016
Frank, de Lenny Abrahamson ***
Na maioria das vezes, quando aparece um filme cuja trama,
fictícia ou não, trata da trajetória artística de um músico ou uma banda, o
enfoque principal é se os protagonistas fizeram muito sucesso ou não, mostrando
ainda os efeitos da fama e do dinheiro sobre a vida de tais personagens. Em boa
parte dessas mesmas produções, a música parece ter um caráter quase secundário,
como se fosse uma coadjuvante diante das agruras sentimentais e até mesmo
financeiras dos artistas. Como não esquecer, por exemplo, da ode ao arrivismo
que era o lastimável “Dois filhos de Francisco” (2005)? Diante desse quadro, a
comédia dramática “Frank” (2014) se mostra uma saudável exceção. Para o
personagem-título (Michael Fassbender), líder de uma esquisitíssima banda de
rock underground, seguir a sua inspiração/musa e ser coerente com suas
particulares concepções musicais é fundamental não só para a qualidade de suas
canções como para manter o seu frágil equilíbrio mental. Se o público, crítica
e curadores de festivais vão gostar não é para ele exatamente o que importa. O
ponto de conflito do filme é justamente quando entra em seu grupo Jon (Domhnall
Gleeson), um jovem músico com fortes pretensões de sucesso e prestígio que
acaba desagregando a banda e colocando Frank em uma pressão emocional que o
leva à loucura. A possibilidade de que às coisas voltem ao “normal” para o
protagonista está justamente na recuperação do caráter insólito e pouco
acessível da sua arte. O diretor Lenny Abrahamson conduz a narrativa como uma
espécie de conto moral agridoce, que oscila entre o realismo melancólico e uma
ambientação delirante (principalmente em alguns ótimos números musicais em que
Frank e sua trupe dão vazão a estranhos temas misturando melodias e barulhos
poucos usuais), fazendo um belo e melancólico tributo a loucos, obscuros e
genais bardos do rock and roll como Syd Barret, Daniel Johnston e Billy
Childish.
terça-feira, janeiro 12, 2016
O bom dinossauro, de Peter Sohn ***
Diante das expectativas que sempre existem ao redor dos
lançamentos da Pixar, “O bom dinossauro” (2015) pode até parecer frustrante.
Além da narrativa convencional, o roteiro é uma espécie de amalgama de algumas
animações clássicas – situações e dilemas da trama fazem pensar numa junção das
premissas de “O rei leão” (1994) e “Procurando Nemo” (2003). Ainda que não
esteja naquele patamar artístico de produções antológicas como “Os incríveis” (2004)
e “Wall-E” (2008), o filme em questão acaba surpreendendo justamente pela
habilidade do diretor Peter Sohn em se valer dos clichês narrativos, ou seja,
todo mundo sabe o que está por vir, mas mesmo assim consegue se envolver pela
tensão dramática da narrativa e pelo carisma dos personagens. Sem apelar para
referências pop metidas a esperta ou psicologismos de araque, “O bom dinossauro”
cativa pelo tom emotivo de sua história e pelo ritmo de sua narrativa. Há
também o capricho visual característico de uma produção da Pixar, em que
estilização e realismo se entrelaçam com naturalidade e um grafismo impressionante.
Num contexto geral, é bem mais efetivo do que o superestimado “Divertida mente”
(2015).
segunda-feira, janeiro 11, 2016
Os oito odiados, de Quentin Tarantino ****
No livro de ensaios “Problema no paraíso”, o filósofo e
psicanalista polonês Slajov Zizek faz uma constatação de ácida lucidez ao
estabelecer uma relação entre os filmes “Lincoln” (2012) e “Abraham Lincoln –
Caçador de vampiros” (2012) – a de que tanto a pretensa séria obra de Steven
Spielberg quanto a tranqueira misto de horror e aventura escapista optam por artifícios
narrativos que procuram maquiar e simplificar complexos personagens e situações
reais, com o fim de oferecer para as atuais gerações uma versão saneada e
maniqueísta da História. A figura de Lincoln também é evocada de forma
constante em “Os oitos odiados” (2015), o mais recente trabalho de Quentin
Tarantino, e de certa forma com fins semelhantes. Uma carta falsa escrita pelo
referido presidente norte-americano acaba funcionando como uma espécie de
gatilho dramático para alguns dos momentos-chaves da trama. Há uma diferença
fundamental, entretanto, no uso desse recurso na obra de Tarantino: o cineasta
recorre ao expediente em questão justamente para reforçar o nebuloso e
sarcástico caráter moral da história que é contada, e não para reforçar
qualquer ideologia ou conduta específica. No particular universo do diretor, um
blefe acaba tendo até mais validade existencial que uma suposta verdade.
Se “Bastardos inglórios” (2009) e “Django livre” (2012) marcavam
uma espécie de virada artística na filmografia de Tarantino, em que as suas
concepções formais e temáticas autorais se adaptavam de forma admirável a
estruturas narrativas mais tradicionais, “Os oito odiados” é um filme que dá a
impressão de ser uma volta a um estilo de filmar de seus trabalhos iniciais,
com destaque para “Cães de aluguel” (1992) e “Pulp Fiction” (1994). Assim como
no seu primeiro filme, boa parte da ação se desenvolve em espaços físicos
reduzidos, gerando uma tensão que beira o claustrofóbico, o que é ainda mais
reforçado pelo fato que de um dos principais dilemas da trama é a tentativa de
descoberta de traidores dentro de um grupo limitado de personagens. Por outro
lado, há uma profusão de diálogos ultra lapidados, repletos de nuances irônicas
e referências culturais e históricas, que remetem à genial verborragia de “Pulp
Fiction” – é só reparar, por exemplo, que as conversas na diligência entre os
caçadores de recompensa Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e John Ruth (Kurt
Russell) e o candidato a xerife Chris Mannix (Walton Goggins) sobre a Guerra
Civil tem uma dinâmica que remete aos antológicos bate-papos entre Vincent Vega
(John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson, de novo) sobre massagens eróticas e
lancherias. Mas o que temos aqui não é uma reciclagem barata, e sim um
refinamento extraordinário da característica linguagem cinematográfica de
Tarantino. Ele concilia de maneira precisa as variações no ritmo da narrativa,
que oscila de forma compacta entre as sequencias reflexivas repletas de
diálogos e mesmo silêncios, o suspense e as explosões frenéticas de violência
(provavelmente, é o mais gore dos filmes de Tarantino). Por mais que na
aparência se esteja assistindo a um faroeste, o que se tem de forma efetiva é
uma espécie de conto gótico marcado por uma estranha combinação entre requinte
e sordidez visuais e também por uma atmosfera oblíqua e melancólica.
As escolhas artísticas de Tarantino para “Os oito odiados”
marcam um novo ciclo para a sua filmografia. Pode parecer clichê, mas o que se
tem no filme é um passo para um outro tipo de amadurecimento. Não se fala aqui
daquele amadurecimento que implicaria numa forma de se mostrar mais acessível
ou abrandado para o gosto médio. É justamente o contrário – esse amadurecimento
exige do espectador um olhar mais amplo e cuidadoso para o filme, pois o que se
tem é uma abordagem de maior profundidade estética e textual. Nesse sentido, a
espetacular fotografia que praticamente exige do espectador que se assista à
obra no cinema para poder fruir o máximo possível de sua grandeza e detalhismo
imagéticos, as habituais sacadas geniais da trilha sonora (uma bem azeitada
combinação de temas incidentais originais e reaproveitados com canções) e o
elenco em estado de graça (com destaque para a caracterização demente de Jennifer
Jason Leigh) são outros elementos que confirmam esse patamar diferenciado no
qual Tarantino se embrenha com maestria. A arrasadora e perversa conclusão de “Os
oito odiados” é coerente e exemplar em relação a tudo isso que o diretor
almejou e atingiu nessa obra-prima– o ambíguo simbolismo da união dos dois
personagens sobreviventes, refugos da Guerra Civil entre o sul e o norte dos
Estados Unidos, para executar o inimigo comum, motivados pela referida carta
falsa de Lincoln, serve tanto para ilustrar o caráter amargo do filme perante a
condição humana quanto a sua ironia sardônica para com a história dos Estados
Unidos.
sexta-feira, janeiro 08, 2016
A entrega, de Michael R. Roskam ***
O escritor norte-americano Dennis Lehane tem uma relação
forte com o cinema de seu país. Alguns de seus livros mais expressivos já
ganharam adaptações cinematográficas, algumas com resultados artísticos
antológicos (“Sobre meninos e lobos”, “A ilha do medo”). “A entrega” (2014) é
uma das recentes produções que volta a abordar o universo do autor. Assim como
no caso de “Sobre meninos e lobos” (2003), a narrativa se concentra numa
história urbana envolvendo o submundo de marginais e indivíduos que vivem no
tênue limite entre a legalidade e a contravenção. O diretor belga Michael R.
Roskam não tem a mesma classe formal de um Clint Eastwood, mas consegue extrair
algo de diferente dentro de uma trama que aparentemente lida com alguns clichês
básicos no gênero policial. O filme tem uma atmosfera de tensão permanente, sempre
com aquela sensação de que algo está fora do lugar. Os desdobramentos do
roteiro parecem a princípio trafegar por caminhos tradicionais, só que aos
poucos essa impressão de previsibilidade vai revertendo, com os principais
personagens ganhando uma dimensão psicológica mais complexa, assim como as
situações do roteiro passam a apresentar nuances sombrias e por vezes repletas
de simbolismo. As próprias atuações de Tom Hardy e James Gandolfini estão em
sintonia com o espírito do filme, em atuações marcadas por uma notável
contenção dramática.
quinta-feira, janeiro 07, 2016
Táxi Teerã, de Jafar Panahi ****
O diretor iraniano Jafar Panahi leva o cinema de autor para
níveis insólitos e bem criativos em “Táxi Teerã” (2015). O filme em questão tem
toda a sua formatação elaborada de acordo com a condição social e política do cineasta.
Com severas restrições do governo do Irã para filmar, Panahi se adapta a essa
situação com um modus operandi que é uma mistura de liberdade na escolha de
recursos e linguagem com rigor na execução de sua concepção artística. Assim,
toda a ação se desenvolve dentro de um táxi e do espaço físico externo que está
ao alcance do olhar do motorista, dos passageiros e das câmeras que se
encontram dentro do veículo. A ambientação escolhida para a narrativa pode
parecer inicialmente bastante limitada, mas com o desenrolar de sua trama
revela uma gama expressivas de possibilidades fílmicas e existenciais.
Colocando-se como protagonista da história, Panahi cria um híbrido estético
eficiente e de forte encanto ao combinar encenação dramática, metalinguagem e
truques típicos do cinema documental. Seu senso narrativo é bastante apurado –
é só reparar como as cenas registradas em pequenas câmeras portáteis e
filmagens “caseiras” de celulares ganham um encadeamento fluido devido ao
excelente trabalho de montagem. É como se esse esmerado trabalho formal
trouxesse em seu âmago um caráter de guerrilha, no sentido de usar com precisão
a sua infraestrutura limitada para provocar o maior “estrago” possível no
status quo. E se esses elementos formais carregam esse conteúdo político, é
claro que o discurso existencial apresenta o mesmo teor. As pequenas histórias
que formam o grande mosaico narrativo são o raio x contundente e sem retoques
da sociedade iraniana contemporânea. Nas conversas e depoimentos das quais o “taxista”
Panahi ouve e participa podem ser percebidos alguns dos principais traços
sociais e comportamentais que marcam o Irã: a opressiva mistura de
patriarcalismo e religião, o preconceito contra a mulher, a censura cultural
contra tudo aquilo que pode “ofender” o obscurantismo político e místico que
domina o país. O roteiro revela sem cerimônias a visão pessoal de Panahi sobre
essa realidade que o cerca. É de se destacar, contudo, que não se trata de puro
discurso panfletário. Nessa perspectiva do cineasta, há a sutileza e a
sensibilidade de sacar que o problema não está em um determinado governo ou em
uma pessoa específica, mas num conjunto de valores que está arraigado
fortemente em grande parcela da população. Dentro dessa ordem, o subtexto de “Táxi
Teerã” mostra que a grande subversão está no humanismo, fator esse que está
presente em cada fotograma desse trabalho extraordinário de Panahi.
quarta-feira, janeiro 06, 2016
Macbeth: Ambição e guerra, de Justin Kurzel ***
A essa altura do campeonato, o espectador mais cético deve
achar que mais uma adaptação cinematográfica para a clássica peça shakespeariana
“Macbeth” não teria muito a acrescentar (ainda mais se alguém for lembrar do
recente “A floresta que se move”, tenebrosa produção brasileira que se inspira
na obra-prima do bardo inglês). Justiça seja feita, entretanto, que “Macbeth:
Ambição e guerra” (2015) é um trabalho que faz uma releitura vigorosa da
trágica história do personagem-título. O diretor Justin Kurzel não apresenta
propriamente grandes novidades em suas concepções artísticas, mas revela forte
criatividade na encenação e na caracterização visual de seu filme. Um olhar
mais apressado pode achar que se tratar de uma abordagem naturalista da peça, só
que aos poucos a narrativa vai se revelando cada vez mais estilizada em suas
nuances pictóricas e na caracterização de personagens e situações. Por vezes
essa atmosfera difusa entre a linguagem realista e a marcação teatral faz a
narrativa ficar um tanto truncada e enfadonha. O forte no filme é justamente
quando a ação come solta – nesse sentido, as sequências de batalhas e
carnificinas revelam ideias muito bem executadas, em que os níveis de violência
e brutalidade dão uma forte dimensão dramática para a obra. A comparação pode
soar forçada, mais tais cenas fazem lembrar um “300” (2006) bem melhor
dirigido. Além disso, o elenco está em sintonia com o espírito da obra,
oferecendo atuações sanguíneas e expressivas, devendo-se destacar também a bela
e climática trilha sonora. No geral, não dá para dizer que essa seja a versão
cinematográfica definitiva da obra em questão, talvez esse título caiba à
magnífica recriação forjada por Roman Polanski em 1971. Ainda assim, é um esforço
bem digno e recompensador por parte de Kurzel.
terça-feira, janeiro 05, 2016
Whiplash, de Damien Chazelle **
A premissa do roteiro de “Whiplash” (2014) é simples – o protagonista
Andrew (Miles Teller) é um baterista que busca o extremo aprimoramento técnico
e artístico em seu instrumento e para isso se submete aos rigorosos e abusivos
métodos de ensino do professor sádico Terence Fletcher (J.K. Simmons). A partir
dessa trama, o filme do diretor Damien Chazelle se desenvolve sob uma
tradicional formatação de melodrama de superação, típico de uma escola
expressiva do cinema norte-americano. Não chega a ser um problema em si essa
vinculação ao convencionalismo narrativo. O que incomoda é que não há uma
transcendência estética ou temática nessa abordagem de Chazelle. É claro que há
méritos na obra: a trilha sonora é ótima e o trabalho de edição é competente em
sua dinâmica na combinação música e dramaturgia. Mas no geral, o tratamento
formal apenas fica numa assepsia pouca impactante. Mesmo a festejada atuação de
Simmons não é todo esse bicho que tanto se louva, pois a caracterização de
Fletcher cai várias vezes na caricatura unidimensional (provavelmente mais por
culpa da direção de atores do que próprio Simmons). Também é frustrante a falta
de profundidade do roteiro em relação ao assunto primordial de sua história –
afinal, qual seria a real motivação dos personagens principais em relação à
maneira doentia com encaram a música? Eles fazem isso por amor à arte? Ou
apenas por arrivismo? Por melhor que seja a música tocada, em nenhum momento
transparece o prazer puro em tocar um instrumento ou simplesmente ouvir um tema
de jazz. No final das contas, poderia-se trocar a temática música por alguma
modalidade de esportes ou o sucesso profissional em alguma outra atividade laboral
que não faria diferença alguma para o filme.
segunda-feira, janeiro 04, 2016
MELHORES FILMES DE 2015
2)
O pequeno Quinquin, de Bruno Dumont
3)
Corrente do mal, de David Robert Mitchell
4)
Últimas conversas, de Eduardo Coutinho
5)
Mapa para as estrelas, de David Cronenberg
6)
Sniper americano, de Clint Eastwood
7)
Vício inerente, de Paul Thomas Anderson
8)
Love, de Gaspar Noé
9)
A pele de vênus, de Roman Polanski
10)
Nós somos as melhores, de Lukas Moodysson
11)
Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard
12)
O ano mais violento, de J.C. Chandor
13)
Nick Cave: 20000 dias sobre a Terra, de Iain
Forsyth
14)
La Sapienza, de Eugène Green
15)
O cheiro da gente, de Larry Clark
16)
Mia madre, de Nanni Moretti
17)
Mil e uma noites: Volume 1 – O inquieto, de
Miguel Gomes
18)
O expresso do amanhã, de Joon-Ho Bong
19)
A colina escarlate, de Guillermo Del Toro
20)
Jornada ao Oeste, de Tsai Ming-liang
21)
Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan
22)
Pasolini, de Abel Ferrara
23)
Rainha e país, de John Boorman
24)
Orestes, de Rodrigo Siqueira
25)
Dois dias, uma noite, de Jean-Pierre e Luc
Dardenne
26)
Homem comum, de Carlos Nader
27)
Dívida de honra, de Tommy Lee Jones
28)
Sangue azul, de Lírio Ferreira
29)
Jauja, de Lisandro Alonso
30)
Acima das nuvens, de Olivier Assayas
Orestes, de Rodrigo Siqueira ***1/2
Em Orestes (2015),
o diretor Rodrigo Siqueira formata sua narrativa a partir de três planos. Num
deles, mais tradicional, são colhidos depoimentos de pessoas que tiverem
parentes mortos violentamente na ditadura militar ou por suspeitos
enfrentamentos com a polícia anos após o fim da mesma ditadura, além de serem
mostradas imagens de arquivo referentes aos assuntos em questão. Num segundo
plano narrativo, essas mesmas pessoas participam de uma espécie de terapia em
conjunto, gerando sessões de psicodrama onde interpretam episódios e conflitos relacionados
aos seus históricos particulares. Por fim, há uma outra encenação, dessa vez
relacionando motes da clássica tragédia grega “Orestes”, de Eurípides, a um
fictício crime de parricídio contemporâneo, gerando uma audiência judicial
simulada. Apesar da estrutura aparentemente intrincada, a intenção de Siqueira
é clara – suas escolhas artísticas revelam um método dialético para expor sua
visão de mundo em relação à questão da violência estatal contra o indivíduo,
principalmente aquele pertencente a camadas sociais mais baixas, mostrando que
o comportamento abusivo e repressor dos órgãos de segurança é uma herança
nefasta do período de ausência de um efetivo Estado de Direito na época da
ditadura militar. Talvez esse processo criativo de Siqueira possa ser
considerado panfletário por alguns, mas ele parece não temer isso e nem negar
suas ideias. Os seus mecanismos de narrativa referendam uma perspectiva de
forte caráter humanista ao questionar conceitos tão banalizados na mídia
conservadora ou por políticos oportunistas e fundamentalistas religiosos:
bandidos merecem serem mortos barbaramente pela polícia? A questão da violência
e da marginalidade tem relação apenas com uma luta entre “o bem e o mal”? Orestes é uma obra profundamente
questionadora da concepção reacionária de que a matéria da segurança pública se
resume apenas a um caso de polícia. Para isso se utiliza de um arsenal de
contundentes recursos estéticos e narrativos para fazer valer seu engajamento
social. Nesse sentido, Siqueira mostra que a arte pode ser alentadora no
sentido de afastar a humanidade da barbárie, afinal a própria peça de
Eurípides, datada de 408 A.C., foi um dos primeiros registros da literatura
ocidental a contestar a lei de talião (a da máxima “olho por olho, dente por
dente”). A continuidade que o cineasta propõe para essa tradição milenar da
arte é ambiciosa e fascinante, um tríptico de política-psicologia-arte, que
resulta numa obra singular e impactante. O cerne criativo de Orestes está nos catárticos
psicodramas, que extrapolam até mesmo os limites entre o terapêutico e o
artístico. As encenações são elaboradas com um vigor e sensibilidade tão
intensos, a expor medos, tristezas, frustrações e hipocrisias, que acabam por
constituir um cinema instintivo e memorável.
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