sexta-feira, janeiro 29, 2016

Anomalisa, de Charlie Kaufman e Duke Johnson ***1/2

Por mais que os métodos narrativos do diretor e roteirista Charlie Kaufman possam parecer atípicos, a verdade é que o seu universo artístico não chega a ser exatamente hermético. Suas tramas versam sobre uma temática de forte caráter humanista, como se fossem um retrato existencial do homem moderno e seus dilemas e contradições – a sensação de desajuste social, as dificuldades e as inconstâncias nas relações humanas, o vazio existencial. As escolhas por soluções estéticas inusitadas não são gratuitas, caracterizando uma forma bastante coerente a retratar os aspectos difusos das situações e personagens que aparecem nas histórias concebidas por Kaufman. Num contexto geral, a conjunções entre essas características textuais e formais criam uma forte relação de identificação com boa parte da audiência. Esse viés autoral de Kaufman se preserva de forma consistente em “Anomalisa” (2015). Há um atrativo diferente nessa nova empreitada do cineasta, o de enveredar pelo campo da animação, e isso acaba se revelando como uma opção que ao longo da narrativa mostra a sua pertinência. O filme se baseia num intenso jogo de simbolismos visuais e sonoros a retratar a mente em colapso do protagonista Michael Stone (David Thewis): todos as pessoas com quem o personagem principal se relaciona apresentam o mesmo rosto e a mesma voz, fazendo com que ele fique em um permanente estado de ânimo misto de desinteresse e angústia. O fato da produção ser uma animação faz com que as possibilidades audiovisuais fiquem mais amplas a retratar esse mundo perturbador que está dentro da cabeça de Stone. Dentro dessa lógica, a narrativa por vezes se mostra como um sutil pesadelo, com Kaufman e o codiretor Duke Johnson sabendo conduzir a história com sensibilidade no limite entre o real e o onírico. O grafismo da animação entra em sintonia perfeita com o espírito da trama, em que não há um grande rebuscamento imagético, mas que também é extremamente expressiva na valorização de nuances de olhares e gestuais. A entrada em cena de Lisa (Jennifer Jason Leigh) realça ainda mais os detalhes formais e temáticos da obra. Os diálogos que ela tem com Michael e mesmo a crua sequência de sexo entre os dois têm um lirismo a flor-da-pele raro de ser no cinema atual. A figura de Lisa também tem o papel fundamental a mostrar a efetiva percepção do que significa o atribulado comportamento de Michael. O caráter metafórico da encenação e do roteiro de “Anomalisa” é até simples no seu sentido e execução, sem que com isso se perca uma profundidade contundente capaz tanto de encantar quanto incomodar o espectador.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

Snoopy e Charlie Brown - Peanuts, o filme, de Steve Martino **1/2

Tentar trazer para o universo cinematográfico um universo tão particular como os quadrinhos originais de Charles M. Schulz não é uma das tarefas mais fáceis. Por trás da leveza do traço e da graciosidade de alguns personagens e situações, existia nas tirinhas do consagrado quadrinista um certo veneno existencial que ultrapassava os limites do simplesmente fofinho. Algumas décadas atrás, foram lançados alguns episódios de animação para a televisão que se tornaram antológicos justamente por saber preservar a ironia amarga tão característica de Peanuts. Essa sutileza artística é o grande ponto fraco de “Snoopy e Charlie Brown – Peanuts, o filme” (2015). Num primeiro momento, até dá para simpatizar com a beleza do traço, que mescla estilização com simplicidade. E se pode perceber também que o diretor Steve Martino soube preservar algumas características básicas e dilemas dos principais personagens da série. Ocorre, entretanto, que num contexto geral o filme se rende a um roteiro e a uma estrutura narrativa convencionais em demasia, com os principais conflitos da trama se submetendo a uma lógica moralista e edificante. Há uma pasteurização das figuras criadas por Schulz, como se procurassem adequar aquele universo dentro de uma lógica mais acessível em termos comerciais. Talvez esse direcionamento possa render alguns dividendos para seus produtores, mas dificilmente essa será a animação definitiva sobre Snoopy, Charlie Brown e sua turma. Assim, é melhor continuar com as reedições das HQs...

quarta-feira, janeiro 27, 2016

A grande aposta, de Adam McKay ***1/2

O cineasta Adam McKay talvez seja o grande nome da comédia norte-americana do século XXI. Ele obteve uma síntese artística extraordinária ao combinar um humor físico beirando o escatológico e o grosseiro com um fino senso crítico do american way of life. Dentro desse estilo particular, lançou algumas produções cômicas antológicas como “O âncora” (2004), “Ricky Bobby” (2006) e “Quase irmãos” (2008). Se em “Tudo por um furo” (2013) houve a impressão de que essa sua habitual “fórmula” criativa dava sinais de cansaço, em “A grande aposta” (2015) ele mostra uma ousada reformulação em seus preceitos narrativos. Num primeiro momento, esse seu trabalho mais recente dá a impressão de mudança radical inclusive de gênero cinematográfico, com McKay enveredando para o “drama baseado em fatos reais”. E não seriam quaisquer eventos verídicos: a trama tem por mote principal a crise econômica de 2008 que levou milhões a perderem empregos e moradias nos Estados Unidos. Por mais que tal temática tenha a sua aura de seriedade, McKay se permite empregar o seu notório senso de humor ácido, só que de forma mais sutil e com resultados igualmente demolidores. Ao invés de investir numa simples narrativa naturalista e linear, o diretor insere alguns truques estéticos desconcertantes, principalmente elementos de metalinguagem. Dá para sentir em cada fotograma de “A grande aposta” que as ambições artísticas de McKay são grandes para sua obra, com o filme se pretendo como uma espécie de panorama épico a retratar a decadência econômica e moral de uma nação. A encenação, por vezes, se caracteriza como um verdadeiro teatro do absurdo – por mais que a caracterização de situações e personagens possam parecer caricatas, tal direcionamento conceitual é o perfeito complemento para uma história repleta de episódios que beiram o delirante, ainda que sejam verdadeiros. A visão existencial da obra é de uma lucidez cortante e melancólica, em que o capitalismo de consumismo e lucro desenfreados é encarado por banqueiros, corretores da bolsa e mesmo pelos pobres coitados que são rapinados como uma verdadeira religião. Em alguns momentos, McKay invoca aquele idealismo social típico de Frank Capra, com o personagem Mark Baum (Steve Carell) parecendo um James Stewart do novo milênio, ainda que com uma dose de cinismo e desilusão mais considerável, fazendo um contraponto com uma época mais esperançosa e ingênua. O elenco do filme também se mostra em sintonia com essa atmosfera alucinada que impera em “A grande aposta”, com destaque para as sutis nuances dramáticas de Christian Bale, a caracterização fanfarrona de Ryan Gosling e a fúria amarga de Carell.


É interessante notar como “A grande aposta” forma com “Spotlight” e “Steve Jobs”, outras duas produções de 2015 também oscarizáveis, uma trinca de obras que parecem traçar um contundente panorama social, econômico e cultural da sociedade norte-americana dessas últimas décadas, mostrando a força das estruturas de poder do capitalismo em tempos de cólera.

terça-feira, janeiro 26, 2016

As maravilhas, de Alice Rohrwacher ***1/2

A diretora italiana Alice Rohrwacher consegue em “As maravilhas” (2014) fazer uma estranha e fascinante síntese entre reminiscências pessoais e referências cinematográficas clássicas. Não é gratuito que a protagonista juvenil do filme se chama Gelsomina, em alusão clara a inesquecível personagem principal interpretada por Giulietta Masina na obra-prima “A estrada da vida” (1954) de Fellini - Rohrwacher busca conexão com aquele típico cruzamento de memorialismo e fantasia que marcou algumas das mais emblemáticas produções do genial cineasta italiano. Por outro lado, o registro por vezes de tons realistas do filme, em que o formalismo dispensa música incidental e se utiliza de uma direção de fotografia de estilo seco e naturalista, parece herdeiro da poética e crua estética que Ermano Olmi imprimiu em “A árvores dos tamancos” (1978). Ainda que se utilize de todas essas influências e citações, “As maravilhas” consegue surpreender por constituir um universo bastante particular na forma com que situações e personagens se desenvolvem ao longo da trama. Num primeiro momento, o retrato da vida no campo da família de Gelsomina (Maria Alexandra Lungu) parece se vincular ao gênero da crônica familiar. Aos poucos, entretanto, a atmosfera sensorial vai se revelando mais difusa e misteriosa. É como se o expectador estivesse tendo acessos a memórias distantes, mas a presenças de canções e tecnologias modernas situam a narrativa em um espaço temporal que insinua o tempo presente. Essa impressão de confusão temporal fica ainda mais acentuada com elementos culturais regionais do interior da Itália que se inserem em determinadas passagens. Se por um lado se poderia pensar numa crônica nostálgica sobre um bucolismo idílico e nostálgico, por várias vezes, de forma sutil, surgem na história elementos fáticos como a crise econômica e a banalização cultural da mídia eletrônica que distorcem essa noção de paraíso rural. O roteiro do filme de Rohrwacher desmonta as ilusões da permanência das tradições e mesmo da noção de conforto existencial que o senso de comunidade e de família podem sugerir no meio de um mundo em constante transformação. Diante disso, a presença de um camelo no meio de um doméstico cenário rural, o melodioso assobiar de um garoto e mesmo a doce brincadeira de esconder abelhas na boca são apenas belos e efêmeros momentos de humanismo.

segunda-feira, janeiro 25, 2016

Creed, de Ryan Coogler ****

Por mais que puristas e parte da crítica não admitam, a verdade é que o cinema em primeiro lugar é indústria e cultura de massa. O que permitiu que ele se consolidasse como meio de expressão cultural foi justamente o fato de que boa parte do que era produzido teve viabilidade financeira, permitindo o lucro para produtores e demais partes envolvidas no processo. Dentro dessa lógica, se um determinado produto cinematográfico tem um lucro considerável, é natural que seus “donos” queiram prolongar essa oportunidade de ganhar mais dinheiro. Assim, continuações de um filme que fez sucesso representam uma prática consagrada dentro da indústria de cinema desde praticamente quando tal indústria se estabeleceu. Esse raciocínio pode parecer frio ou pragmático, mas na realidade é apenas a constatação de uma realidade fática. Dentro dessa lógica capitalista, contudo, é claro que pode haver uma transcendência artística, em que essas produções que dão continuidade aos eventos de um determinado universo (sequências, spin-offs, prequels e afins) acabam oferecendo uma dimensão existencial ainda mais aprofundada para personagens e situações. E é justamente nesse caso que se pode enquadrar “Creed” (2015), obra que dá prosseguimento aos fatos apresentados em “Rocky: Um lutador” (1976) e suas demais sequencias.

Ainda que a figura do pugilista Rocky Balboa (Sylvester Stallone) hoje esteja grudada no imaginário cinematográfico geral, a verdade também é que ao longo dos anos a imagem do personagem foi vilipendiada e banalizada pelo caráter oportunista de algumas das continuações que a franquia teve. Nesse sentido, talvez o auge dessa postura esteja no nacionalismo obtuso de “Rocky 4” (1985), em que o combate final entre Rocky e Ivan Drago (Dolph Lundgren) servia como metáfora picareta do conflito político entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. Em “Rocky Balboa” (2006), Stallone retomou o caráter mais humano e pé-no-chão para o personagem que o consagrou, com uma trama que evoca dilemas típicos da obra clássica de 1976, além da abordagem estética que dava uma atmosfera nostálgica e crepuscular para a saga do célebre lutador. Dentro dessa perspectiva, “Creed” não só investe no prosseguimento desse processo de recuperação da imagem de Rocky, como também oferece caminhos renovadores e dá ao personagem um tamanho existencial notável.

O diretor Ryan Coogler consegue uma síntese artística precisa – ao mesmo tempo que a dinâmica narrativa é arejada e modernizada no melhor sentido da palavra (é de se reparar como a linguagem televisiva de canais esportivos da atualidade é integrada com naturalidade dentro de um estilo clássico de cinema), ele incorpora a mitologia e todos os clichês temáticos e formais típicos da série, dando-lhes um sentido de coerência artística extraordinária. Até o já aludido e malfadado “Rocky 4” acaba ganhando uma importância redentora. E dentro da construção dramática proposta por Coogler, o aspecto mais sensacional é a forma como o próprio Rocky Balboa é mostrado em cena, um misto de lenda viva e de humanidade fragilizada, fazendo de Stallone uma presença fortemente magnética em cada enquadramento que aparece. No mais, o que se tem em “Creed” é uma demonstração de vigoroso virtuosismo estético que se adequa perfeitamente à ambientação mitológica. O filme é uma sucessão de sequências antológicas: a mistura de pauleira e sentimentalismo da abertura, o plano-sequência da primeira luta efetivamente profissional do protagonista Adonis Creed (Michael P. Jordan), a sucessão da montagem das cenas de treinamento de Creed tendo ao fundo um Rocky doente e envelhecido, a corrida de Creed pelas ruas cercado por motociclistas, a subida do combalido Rocky pela célebre escadaria do Museu de Arte da Filadélfia.


Se Stallone já tinha conseguido no surpreendente “Rambo 4” (2008) dar um final casca grossa e digno para a saga do personagem-título, agora Coogler constrói em “Creed” um belo canto do cisne para a outra famosa criatura do veterano ator.

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Carol, de Todd Haynes ***

Dentro do universo autoral do diretor norte-americano Todd Haynes, aspectos estéticos como figurino, direção de arte e fotografia não são apenas quesitos técnicos, mas pontos fundamentais que se relacionam de forma profunda com as temáticas de seus filmes. Longe de um mero apuro formal estéril, tais detalhes imagéticos refletem a condição existencial dos personagens, funcionam como alegorias visuais do subtexto dos roteiros e também caracterizam a própria visão de mundo de Haynes, ajudando a dar um padrão bastante pessoal para a sua filmografia. Foi assim na recriação despudorada do universo do glam rock em “Velvet Goldmine” (1998), na irônica mescla de estilos retrôs em “Longe do paraíso” (2002) e na viagem sensorial pelo imaginário de Bob Dylan em “Não estou lá” (2007). “Carol” (2015), produção mais recente com a assinatura de Haynes, mantem esse habitual e forte esmero formal do diretor, estando repletos de virtuosismos de encher os olhos como planos de sequências muito bem executados, reconstituição de época primorosa dos anos 50 e caracterização visual chique ao extremo dos personagens (até as figuras de condição social mais modesta são muito bem vestidas). O problema é que dessa vez o cuidado estético não encontra uma narrativa à altura. Por mais que haja aquela aura de ousadia por trazer para o primeiro plano uma história de amor lésbico, o tratamento dado é muito convencional, por vezes chegando até a beirar o enfadonho. Os dilemas da trama resvalam no melodrama excessivo, e quando as cenas se concentram no romance entre as protagonistas, inclusive nas sequências de sexo, há uma atmosfera diáfana, quase de beatitude, o que tira bastante da força dramática de tais momentos. Por mais que a história se passe num período de forte repressão moral, falta uma carnalidade mais vigorosa na interação de tais personagens que torne o amor entre elas mais verossímil (nos moldes, por exemplo, do extraordinário “Azul é a cor mais quente”). É claro que, no geral, “Carol” é um drama eficiente e envolvente, mas em se tratando de um cineasta com o currículo de Haynes acaba sendo um tanto frustrante.

quinta-feira, janeiro 21, 2016

Eu sou Ingrid Bergman, de Stig Björkman ***

O título do documentário “Eu sou Ingrid Bergman” (2015) sintetiza com propriedade a sua essência artística – trata-se de uma cinebiografia cuja boa parte do direcionamento narrativo é dado pela própria protagonista. Desde criança, a atriz sueca já tinha registros audiovisuais feitos pelo pai. Com o passar dos anos, manteve o hábito de filmar vários momentos de seu cotidiano com maridos, filhos e amigos. Além disso, por quase toda a vida escrevia suas memórias e impressões em diários e cartas para amigas. Nesse sentido, por vezes há um efeito sensorial interessante, em que espectador tem a impressão de estar dentro da mente de Bergman. Assim, aliado a filmagens de bastidores, trechos de noticiários e passagens de algumas das produções mais memoráveis das quais ela participou, o diretor Stig Björkman teve a sua disposição um farto material para compor sua narrativa. Ainda que obedecendo a uma estrutura formal bastante convencional, o cineasta conseguiu oferecer um panorama bem amplo da vida de Ingrid Bergman, mostrando com sensibilidade os dilemas e contradições dramáticos que marcaram a vida pessoal e profissional da biografada, além de evidenciar como tais fatos refletiram a época em que ela viveu: os anos de ouro de Hollywood (e as hipocrisias morais e comportamentais que marcavam aquele ambiente), a conturbada relação emocional e artística com o genial diretor italiano Roberto Rossellini, a incessante busca por credibilidade artística. Há uma certa sobriedade emocional na forma com que Björkman conduz o documentário, sabendo ressaltar a complexidade e independência do caráter da atriz nas escolhas artísticas e particulares que fez durante a sua trajetória. Assim, além de atraente para aqueles que apreciam a história do cinema, “Eu sou Ingrid Bergman” consegue ser universal por trazer à tona uma pessoa singular em diversos aspectos.

terça-feira, janeiro 19, 2016

Steve Jobs, de Danny Boyle ***1/2

Aqueles que são detratores de Steve Jobs, ou mesmo aqueles que simplesmente não se importam com a figura em questão, podem até questionar se ele é tão importante ou interessante assim a ponto de receber duas cinebiografias no curto espaço de dois anos. Mas se “Jobs” (2013) era apenas uma obra oportunista e sem inspiração a retratar a vida do célebre e polêmico criador e CEO da Apple, esse “Steve Jobs” (2015) é bem mais interessante como produto cinematográfico. Para começar, só o nome de Danny Boyle na direção já faria o espectador dar uma atenção especial para a produção. E o cineasta não se fez de rogado, construindo uma estrutura narrativa fascinante. Boyle não optou por soluções estéticas e temáticas óbvias, e nem mesmo sua abordagem pode ser enquadrada na simples linguagem naturalista. Talvez a referência artística que mais venha à mente seria algumas produções delirantes de Fellini, com destaque para “Oito e meio” (1963). A maioria da ação da trama se concentra nos bastidores de eventos de lançamentos de produtos criados por Jobs, e dessa forma boa parte das pessoas que fizeram parte da vida do protagonista (familiares, amigos, parceiros de trabalho, desafetos) circula nesses ambientes frenéticos e tensos, fazendo com que a interação entre Jobs (Michael Fassbender) e tais personagens seja marcada por ressentimentos e discussões acaloradas. Intercaladas com essas sequências são mostrados flashes de noticiários e fragmentos de memórias, como se houvesse uma contraposição entre o discurso oficial “laudatório” sobre Jobs e a realidade bem menos idealizada que o cercava. O roteiro do filme contempla com fidelidade a complexidade dos fatos, não caindo em maniqueísmos ou simplificações, e acaba demonstrando uma sintonia existencial e artística com “A rede social” (2010), no sentido de também ser uma espécie de crônica da moral e dos costumes desse milênio marcado pela virtualidade e pelo efêmero. O formalismo barroco concebido por Boyle, repleto de trucagens criativas e uma atmosfera que remete por vezes ao onírico, torna essa saga sensorial sobre tecnologia, dinheiro, poder e alienação ainda mais memorável e perturbadora.

segunda-feira, janeiro 18, 2016

Spotlight - Segredos revelados, de Tom McCarthy ***1/2

Em um primeiro plano, a trama de “Spotlight – Segredos revelados” (2015) teria como temática principal a questão da pedofilia dentro da igreja católica. Ocorre, entretanto, que o subtexto do roteiro em questão é tão sofisticado que aos poucos se pode perceber que o alcance da história é ainda mais amplo. A narrativa construída pelo diretor Tom McCarthy é marcada pela sutileza e detalhismo em vários aspectos, principalmente na elegância da encenação e nos sinuosos e irônicos diálogos, além de um certo distanciamento emocional que evita que o filme caia no edificante meloso ou no denuncismo vazio. Na verdade, trata-se até de uma obra que se permite algumas ousadias artísticas e políticas, pois o que entra em pauta de forma efetiva é uma crítica ácida contra as estruturas de poder dentro da sociedade ocidental. Todo o processo de jornalismo investigativo no quais os principais personagens se dedicam é esmiuçado com profundidade e rigor, fazendo até lembrar clássicos do gênero como “Todos os homens do presidente” (1976), mas se pode perceber que quando tal processo toma início há obstáculos que com até certa facilidade são transpostos. O que a história mostra como grande dilema é a dificuldade em dar o primeiro passo, o de decidir abrir tal investigação, em que o imobilismo é estimulado por um conjunto de instituições (igreja, polícia, justiça, imprensa) mais dedicado a preservar o status quo do que em proteger os direitos dos indivíduos. Nesse sentido, a figura do jornalista Walter Robinson (Michael Keaton) é notável como síntese dos conflitos e contradições que marcam a trama – responsável como chefe do grupo de jornalistas investigativos, aos poucos descobre que alguns dos principais envolvidos na tramoia de ocultamento de casos de pedofilias praticados por padres são pessoas com as quais mantém um constante convívio social em seu cotidiano, percebendo também que por um bom tempo, ainda que de forma inconsciente, ele mesmo foi responsável por tal situação. São em nuances como essa que “Spotlight” se mostra uma produção acima da média e surpreendente, evitando a solução fácil de maniqueísmos pueris ou mesmo o viés hipócrita e conciliatório.

sexta-feira, janeiro 15, 2016

Boi neon, de Gabriel Mascaro ****

O rústico peão Iremar (Juliano Cazarré) trabalha nos bastidores de um rodeio itinerante – alimenta os bois, limpa a merda deles, atiça os bichos em momentos cruciais dos eventos. Quando tem um tempo, dedica-se a criar e costurar roupas femininas, mostrando criatividade e ousadia expressivas. O fato de atuar em dois polos aparentemente tão distintos, entretanto, não é apresentado como sinal de uma possível ambiguidade sexual – tanto que a longa e detalhada sequência em que transa com uma mulher que conheceu na estrada, uma das melhores cenas de sexo do cinema brasileiro dos últimos tempos, revela sua heterossexualidade plena. Esse caráter libertário na caracterização desse personagem é fortemente simbólico da proposta estética-existencial de “Boi neon” (2015). Ainda que aparentemente esteja atrelado a uma narrativa linear, o filme do diretor Gabriel Mascaro se desvincula de maneira vigorosa de clichês e concessões. Na trama, há diversos elementos e situações que trazem uma conotação metafórica contundente – os peões que masturbam um cavalo para roubar seu sêmem, os trabalhadores que tomam banho juntos numa ambientação que tanto alude a homoerotismo velado quanto a naturalidade da convivência de parceiros de labuta, a mulher que transa com um peão metrossexual de longos cabelos alisados (a encenação noturna faz com que se veja silhuetas dos personagens, sugerindo na aparência uma transa lésbica), a menina que convive sem maiores traumas num ambiente de sensualidade latente e brutalidade instintiva (sua fixação em cavalos poderia ser uma possiblidade de fuga imaginária?), a ausência de uma efetiva posição preconceituosa dos personagens em relação a comportamentos fora dos padrões “normais”. Na conjugação disso tudo, o roteiro não busca soluções ou amarrações de pontas soltas, mas sim estabelecer um retrato cru e humanista dos desejos e frustrações de tais figuras. É como se por questão de quase duas horas fosse permitido ao espectador assistir pela fresta alguns flagrantes das vidas dessas pessoas. Nesse viés, o cotidiano prosaico demonstra um impacto dramático muito mais convincente do que se tivesse grandes viradas novelescas na trama. E mesmo o que era para ser uma abordagem naturalista acaba se revelando difusa, pois as intervenções cênicas envolvendo os figurinos elaborados por Iremar trazem um conteúdo indefinido e fascinante entre o onírico e o real. O requinte formal de Mascaro para embalar essa espécie de fábula amoral cabocla é extraordinário, em que o registro de tons reflexivos e melancólicos de algumas cenas convive de forma harmônica e intrínseca com a encenação vigorosa dos rodeios e os seus bastidores. A síntese de todas essas escolhas artísticas de Nassaro faz com que “Boi neon” se configure como uma bela e poética alegoria sobre o desejo e a liberdade, na tradição de outras obras recentes do cinema nacional como “A febre do rato” (2011) e “Tatuagem” (2013).

quinta-feira, janeiro 14, 2016

Cabana do inferno, de Eli Roth **1/2

Em termos de estrutura narrativa e de roteiro, “Cabana do inferno” (2002), o primeiro longa-metragem dirigido por Eli Roth, pouco se diferencia de grande parte do que se fez no gênero do horror gore nos últimos anos. A trama é um pastiche cara-dura da franquia “Evid Dead” com filmes de epidemia e rednecks enlouquecidos, abusando do grafismo violento e escatológico, além da usual dose moralista em relação a jovens com os hormônios em alta que acabam recebendo um “castigo” em forma de sangue e degradação. Ainda que não apresente os mesmos requintes estéticos das duas partes de “O albergue”, Roth já mostrava que tinha um talento diferencial para esse tipo de produção, principalmente no sentido de saber criar atmosferas marcadas pelo suspense e sordidez, além de bem vindos toques de ironia perversa.

quarta-feira, janeiro 13, 2016

Frank, de Lenny Abrahamson ***

Na maioria das vezes, quando aparece um filme cuja trama, fictícia ou não, trata da trajetória artística de um músico ou uma banda, o enfoque principal é se os protagonistas fizeram muito sucesso ou não, mostrando ainda os efeitos da fama e do dinheiro sobre a vida de tais personagens. Em boa parte dessas mesmas produções, a música parece ter um caráter quase secundário, como se fosse uma coadjuvante diante das agruras sentimentais e até mesmo financeiras dos artistas. Como não esquecer, por exemplo, da ode ao arrivismo que era o lastimável “Dois filhos de Francisco” (2005)? Diante desse quadro, a comédia dramática “Frank” (2014) se mostra uma saudável exceção. Para o personagem-título (Michael Fassbender), líder de uma esquisitíssima banda de rock underground, seguir a sua inspiração/musa e ser coerente com suas particulares concepções musicais é fundamental não só para a qualidade de suas canções como para manter o seu frágil equilíbrio mental. Se o público, crítica e curadores de festivais vão gostar não é para ele exatamente o que importa. O ponto de conflito do filme é justamente quando entra em seu grupo Jon (Domhnall Gleeson), um jovem músico com fortes pretensões de sucesso e prestígio que acaba desagregando a banda e colocando Frank em uma pressão emocional que o leva à loucura. A possibilidade de que às coisas voltem ao “normal” para o protagonista está justamente na recuperação do caráter insólito e pouco acessível da sua arte. O diretor Lenny Abrahamson conduz a narrativa como uma espécie de conto moral agridoce, que oscila entre o realismo melancólico e uma ambientação delirante (principalmente em alguns ótimos números musicais em que Frank e sua trupe dão vazão a estranhos temas misturando melodias e barulhos poucos usuais), fazendo um belo e melancólico tributo a loucos, obscuros e genais bardos do rock and roll como Syd Barret, Daniel Johnston e Billy Childish.

terça-feira, janeiro 12, 2016

O bom dinossauro, de Peter Sohn ***

Diante das expectativas que sempre existem ao redor dos lançamentos da Pixar, “O bom dinossauro” (2015) pode até parecer frustrante. Além da narrativa convencional, o roteiro é uma espécie de amalgama de algumas animações clássicas – situações e dilemas da trama fazem pensar numa junção das premissas de “O rei leão” (1994) e “Procurando Nemo” (2003). Ainda que não esteja naquele patamar artístico de produções antológicas como “Os incríveis” (2004) e “Wall-E” (2008), o filme em questão acaba surpreendendo justamente pela habilidade do diretor Peter Sohn em se valer dos clichês narrativos, ou seja, todo mundo sabe o que está por vir, mas mesmo assim consegue se envolver pela tensão dramática da narrativa e pelo carisma dos personagens. Sem apelar para referências pop metidas a esperta ou psicologismos de araque, “O bom dinossauro” cativa pelo tom emotivo de sua história e pelo ritmo de sua narrativa. Há também o capricho visual característico de uma produção da Pixar, em que estilização e realismo se entrelaçam com naturalidade e um grafismo impressionante. Num contexto geral, é bem mais efetivo do que o superestimado “Divertida mente” (2015).

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Os oito odiados, de Quentin Tarantino ****

No livro de ensaios “Problema no paraíso”, o filósofo e psicanalista polonês Slajov Zizek faz uma constatação de ácida lucidez ao estabelecer uma relação entre os filmes “Lincoln” (2012) e “Abraham Lincoln – Caçador de vampiros” (2012) – a de que tanto a pretensa séria obra de Steven Spielberg quanto a tranqueira misto de horror e aventura escapista optam por artifícios narrativos que procuram maquiar e simplificar complexos personagens e situações reais, com o fim de oferecer para as atuais gerações uma versão saneada e maniqueísta da História. A figura de Lincoln também é evocada de forma constante em “Os oitos odiados” (2015), o mais recente trabalho de Quentin Tarantino, e de certa forma com fins semelhantes. Uma carta falsa escrita pelo referido presidente norte-americano acaba funcionando como uma espécie de gatilho dramático para alguns dos momentos-chaves da trama. Há uma diferença fundamental, entretanto, no uso desse recurso na obra de Tarantino: o cineasta recorre ao expediente em questão justamente para reforçar o nebuloso e sarcástico caráter moral da história que é contada, e não para reforçar qualquer ideologia ou conduta específica. No particular universo do diretor, um blefe acaba tendo até mais validade existencial que uma suposta verdade.

Se “Bastardos inglórios” (2009) e “Django livre” (2012) marcavam uma espécie de virada artística na filmografia de Tarantino, em que as suas concepções formais e temáticas autorais se adaptavam de forma admirável a estruturas narrativas mais tradicionais, “Os oito odiados” é um filme que dá a impressão de ser uma volta a um estilo de filmar de seus trabalhos iniciais, com destaque para “Cães de aluguel” (1992) e “Pulp Fiction” (1994). Assim como no seu primeiro filme, boa parte da ação se desenvolve em espaços físicos reduzidos, gerando uma tensão que beira o claustrofóbico, o que é ainda mais reforçado pelo fato que de um dos principais dilemas da trama é a tentativa de descoberta de traidores dentro de um grupo limitado de personagens. Por outro lado, há uma profusão de diálogos ultra lapidados, repletos de nuances irônicas e referências culturais e históricas, que remetem à genial verborragia de “Pulp Fiction” – é só reparar, por exemplo, que as conversas na diligência entre os caçadores de recompensa Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e John Ruth (Kurt Russell) e o candidato a xerife Chris Mannix (Walton Goggins) sobre a Guerra Civil tem uma dinâmica que remete aos antológicos bate-papos entre Vincent Vega (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson, de novo) sobre massagens eróticas e lancherias. Mas o que temos aqui não é uma reciclagem barata, e sim um refinamento extraordinário da característica linguagem cinematográfica de Tarantino. Ele concilia de maneira precisa as variações no ritmo da narrativa, que oscila de forma compacta entre as sequencias reflexivas repletas de diálogos e mesmo silêncios, o suspense e as explosões frenéticas de violência (provavelmente, é o mais gore dos filmes de Tarantino). Por mais que na aparência se esteja assistindo a um faroeste, o que se tem de forma efetiva é uma espécie de conto gótico marcado por uma estranha combinação entre requinte e sordidez visuais e também por uma atmosfera oblíqua e melancólica.


As escolhas artísticas de Tarantino para “Os oito odiados” marcam um novo ciclo para a sua filmografia. Pode parecer clichê, mas o que se tem no filme é um passo para um outro tipo de amadurecimento. Não se fala aqui daquele amadurecimento que implicaria numa forma de se mostrar mais acessível ou abrandado para o gosto médio. É justamente o contrário – esse amadurecimento exige do espectador um olhar mais amplo e cuidadoso para o filme, pois o que se tem é uma abordagem de maior profundidade estética e textual. Nesse sentido, a espetacular fotografia que praticamente exige do espectador que se assista à obra no cinema para poder fruir o máximo possível de sua grandeza e detalhismo imagéticos, as habituais sacadas geniais da trilha sonora (uma bem azeitada combinação de temas incidentais originais e reaproveitados com canções) e o elenco em estado de graça (com destaque para a caracterização demente de Jennifer Jason Leigh) são outros elementos que confirmam esse patamar diferenciado no qual Tarantino se embrenha com maestria. A arrasadora e perversa conclusão de “Os oito odiados” é coerente e exemplar em relação a tudo isso que o diretor almejou e atingiu nessa obra-prima– o ambíguo simbolismo da união dos dois personagens sobreviventes, refugos da Guerra Civil entre o sul e o norte dos Estados Unidos, para executar o inimigo comum, motivados pela referida carta falsa de Lincoln, serve tanto para ilustrar o caráter amargo do filme perante a condição humana quanto a sua ironia sardônica para com a história dos Estados Unidos.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

A entrega, de Michael R. Roskam ***

O escritor norte-americano Dennis Lehane tem uma relação forte com o cinema de seu país. Alguns de seus livros mais expressivos já ganharam adaptações cinematográficas, algumas com resultados artísticos antológicos (“Sobre meninos e lobos”, “A ilha do medo”). “A entrega” (2014) é uma das recentes produções que volta a abordar o universo do autor. Assim como no caso de “Sobre meninos e lobos” (2003), a narrativa se concentra numa história urbana envolvendo o submundo de marginais e indivíduos que vivem no tênue limite entre a legalidade e a contravenção. O diretor belga Michael R. Roskam não tem a mesma classe formal de um Clint Eastwood, mas consegue extrair algo de diferente dentro de uma trama que aparentemente lida com alguns clichês básicos no gênero policial. O filme tem uma atmosfera de tensão permanente, sempre com aquela sensação de que algo está fora do lugar. Os desdobramentos do roteiro parecem a princípio trafegar por caminhos tradicionais, só que aos poucos essa impressão de previsibilidade vai revertendo, com os principais personagens ganhando uma dimensão psicológica mais complexa, assim como as situações do roteiro passam a apresentar nuances sombrias e por vezes repletas de simbolismo. As próprias atuações de Tom Hardy e James Gandolfini estão em sintonia com o espírito do filme, em atuações marcadas por uma notável contenção dramática.

quinta-feira, janeiro 07, 2016

Táxi Teerã, de Jafar Panahi ****

O diretor iraniano Jafar Panahi leva o cinema de autor para níveis insólitos e bem criativos em “Táxi Teerã” (2015). O filme em questão tem toda a sua formatação elaborada de acordo com a condição social e política do cineasta. Com severas restrições do governo do Irã para filmar, Panahi se adapta a essa situação com um modus operandi que é uma mistura de liberdade na escolha de recursos e linguagem com rigor na execução de sua concepção artística. Assim, toda a ação se desenvolve dentro de um táxi e do espaço físico externo que está ao alcance do olhar do motorista, dos passageiros e das câmeras que se encontram dentro do veículo. A ambientação escolhida para a narrativa pode parecer inicialmente bastante limitada, mas com o desenrolar de sua trama revela uma gama expressivas de possibilidades fílmicas e existenciais. Colocando-se como protagonista da história, Panahi cria um híbrido estético eficiente e de forte encanto ao combinar encenação dramática, metalinguagem e truques típicos do cinema documental. Seu senso narrativo é bastante apurado – é só reparar como as cenas registradas em pequenas câmeras portáteis e filmagens “caseiras” de celulares ganham um encadeamento fluido devido ao excelente trabalho de montagem. É como se esse esmerado trabalho formal trouxesse em seu âmago um caráter de guerrilha, no sentido de usar com precisão a sua infraestrutura limitada para provocar o maior “estrago” possível no status quo. E se esses elementos formais carregam esse conteúdo político, é claro que o discurso existencial apresenta o mesmo teor. As pequenas histórias que formam o grande mosaico narrativo são o raio x contundente e sem retoques da sociedade iraniana contemporânea. Nas conversas e depoimentos das quais o “taxista” Panahi ouve e participa podem ser percebidos alguns dos principais traços sociais e comportamentais que marcam o Irã: a opressiva mistura de patriarcalismo e religião, o preconceito contra a mulher, a censura cultural contra tudo aquilo que pode “ofender” o obscurantismo político e místico que domina o país. O roteiro revela sem cerimônias a visão pessoal de Panahi sobre essa realidade que o cerca. É de se destacar, contudo, que não se trata de puro discurso panfletário. Nessa perspectiva do cineasta, há a sutileza e a sensibilidade de sacar que o problema não está em um determinado governo ou em uma pessoa específica, mas num conjunto de valores que está arraigado fortemente em grande parcela da população. Dentro dessa ordem, o subtexto de “Táxi Teerã” mostra que a grande subversão está no humanismo, fator esse que está presente em cada fotograma desse trabalho extraordinário de Panahi.

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Macbeth: Ambição e guerra, de Justin Kurzel ***

A essa altura do campeonato, o espectador mais cético deve achar que mais uma adaptação cinematográfica para a clássica peça shakespeariana “Macbeth” não teria muito a acrescentar (ainda mais se alguém for lembrar do recente “A floresta que se move”, tenebrosa produção brasileira que se inspira na obra-prima do bardo inglês). Justiça seja feita, entretanto, que “Macbeth: Ambição e guerra” (2015) é um trabalho que faz uma releitura vigorosa da trágica história do personagem-título. O diretor Justin Kurzel não apresenta propriamente grandes novidades em suas concepções artísticas, mas revela forte criatividade na encenação e na caracterização visual de seu filme. Um olhar mais apressado pode achar que se tratar de uma abordagem naturalista da peça, só que aos poucos a narrativa vai se revelando cada vez mais estilizada em suas nuances pictóricas e na caracterização de personagens e situações. Por vezes essa atmosfera difusa entre a linguagem realista e a marcação teatral faz a narrativa ficar um tanto truncada e enfadonha. O forte no filme é justamente quando a ação come solta – nesse sentido, as sequências de batalhas e carnificinas revelam ideias muito bem executadas, em que os níveis de violência e brutalidade dão uma forte dimensão dramática para a obra. A comparação pode soar forçada, mais tais cenas fazem lembrar um “300” (2006) bem melhor dirigido. Além disso, o elenco está em sintonia com o espírito da obra, oferecendo atuações sanguíneas e expressivas, devendo-se destacar também a bela e climática trilha sonora. No geral, não dá para dizer que essa seja a versão cinematográfica definitiva da obra em questão, talvez esse título caiba à magnífica recriação forjada por Roman Polanski em 1971. Ainda assim, é um esforço bem digno e recompensador por parte de Kurzel.

terça-feira, janeiro 05, 2016

Whiplash, de Damien Chazelle **

A premissa do roteiro de “Whiplash” (2014) é simples – o protagonista Andrew (Miles Teller) é um baterista que busca o extremo aprimoramento técnico e artístico em seu instrumento e para isso se submete aos rigorosos e abusivos métodos de ensino do professor sádico Terence Fletcher (J.K. Simmons). A partir dessa trama, o filme do diretor Damien Chazelle se desenvolve sob uma tradicional formatação de melodrama de superação, típico de uma escola expressiva do cinema norte-americano. Não chega a ser um problema em si essa vinculação ao convencionalismo narrativo. O que incomoda é que não há uma transcendência estética ou temática nessa abordagem de Chazelle. É claro que há méritos na obra: a trilha sonora é ótima e o trabalho de edição é competente em sua dinâmica na combinação música e dramaturgia. Mas no geral, o tratamento formal apenas fica numa assepsia pouca impactante. Mesmo a festejada atuação de Simmons não é todo esse bicho que tanto se louva, pois a caracterização de Fletcher cai várias vezes na caricatura unidimensional (provavelmente mais por culpa da direção de atores do que próprio Simmons). Também é frustrante a falta de profundidade do roteiro em relação ao assunto primordial de sua história – afinal, qual seria a real motivação dos personagens principais em relação à maneira doentia com encaram a música? Eles fazem isso por amor à arte? Ou apenas por arrivismo? Por melhor que seja a música tocada, em nenhum momento transparece o prazer puro em tocar um instrumento ou simplesmente ouvir um tema de jazz. No final das contas, poderia-se trocar a temática música por alguma modalidade de esportes ou o sucesso profissional em alguma outra atividade laboral que não faria diferença alguma para o filme.

segunda-feira, janeiro 04, 2016

MELHORES FILMES DE 2015


1)      Mad Max: A estrada da fúria, de George Miller
2)      O pequeno Quinquin, de Bruno Dumont
3)      Corrente do mal, de David Robert Mitchell
4)      Últimas conversas, de Eduardo Coutinho
5)      Mapa para as estrelas, de David Cronenberg
6)      Sniper americano, de Clint Eastwood
7)      Vício inerente, de Paul Thomas Anderson
8)      Love, de Gaspar Noé
9)      A pele de vênus, de Roman Polanski
10)   Nós somos as melhores, de Lukas Moodysson
11)   Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard
12)   O ano mais violento, de J.C. Chandor
13)   Nick Cave: 20000 dias sobre a Terra, de Iain Forsyth
14)   La Sapienza, de Eugène Green
15)   O cheiro da gente, de Larry Clark
16)   Mia madre, de Nanni Moretti
17)   Mil e uma noites: Volume 1 – O inquieto, de Miguel Gomes
18)   O expresso do amanhã, de Joon-Ho Bong
19)   A colina escarlate, de Guillermo Del Toro
20)   Jornada ao Oeste, de Tsai Ming-liang
21)   Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan
22)   Pasolini, de Abel Ferrara
23)   Rainha e país, de John Boorman
24)   Orestes, de Rodrigo Siqueira
25)   Dois dias, uma noite, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
26)   Homem comum, de Carlos Nader
27)   Dívida de honra, de Tommy Lee Jones
28)   Sangue azul, de Lírio Ferreira
29)   Jauja, de Lisandro Alonso
30)   Acima das nuvens, de Olivier Assayas

Orestes, de Rodrigo Siqueira ***1/2

Em Orestes (2015), o diretor Rodrigo Siqueira formata sua narrativa a partir de três planos. Num deles, mais tradicional, são colhidos depoimentos de pessoas que tiverem parentes mortos violentamente na ditadura militar ou por suspeitos enfrentamentos com a polícia anos após o fim da mesma ditadura, além de serem mostradas imagens de arquivo referentes aos assuntos em questão. Num segundo plano narrativo, essas mesmas pessoas participam de uma espécie de terapia em conjunto, gerando sessões de psicodrama onde interpretam episódios e conflitos relacionados aos seus históricos particulares. Por fim, há uma outra encenação, dessa vez relacionando motes da clássica tragédia grega “Orestes”, de Eurípides, a um fictício crime de parricídio contemporâneo, gerando uma audiência judicial simulada. Apesar da estrutura aparentemente intrincada, a intenção de Siqueira é clara – suas escolhas artísticas revelam um método dialético para expor sua visão de mundo em relação à questão da violência estatal contra o indivíduo, principalmente aquele pertencente a camadas sociais mais baixas, mostrando que o comportamento abusivo e repressor dos órgãos de segurança é uma herança nefasta do período de ausência de um efetivo Estado de Direito na época da ditadura militar. Talvez esse processo criativo de Siqueira possa ser considerado panfletário por alguns, mas ele parece não temer isso e nem negar suas ideias. Os seus mecanismos de narrativa referendam uma perspectiva de forte caráter humanista ao questionar conceitos tão banalizados na mídia conservadora ou por políticos oportunistas e fundamentalistas religiosos: bandidos merecem serem mortos barbaramente pela polícia? A questão da violência e da marginalidade tem relação apenas com uma luta entre “o bem e o mal”? Orestes é uma obra profundamente questionadora da concepção reacionária de que a matéria da segurança pública se resume apenas a um caso de polícia. Para isso se utiliza de um arsenal de contundentes recursos estéticos e narrativos para fazer valer seu engajamento social. Nesse sentido, Siqueira mostra que a arte pode ser alentadora no sentido de afastar a humanidade da barbárie, afinal a própria peça de Eurípides, datada de 408 A.C., foi um dos primeiros registros da literatura ocidental a contestar a lei de talião (a da máxima “olho por olho, dente por dente”). A continuidade que o cineasta propõe para essa tradição milenar da arte é ambiciosa e fascinante, um tríptico de política-psicologia-arte, que resulta numa obra singular e impactante. O cerne criativo de Orestes está nos catárticos psicodramas, que extrapolam até mesmo os limites entre o terapêutico e o artístico. As encenações são elaboradas com um vigor e sensibilidade tão intensos, a expor medos, tristezas, frustrações e hipocrisias, que acabam por constituir um cinema instintivo e memorável.