O fato de “México bárbaro” (2014) ser uma obra composta de
episódios dirigidos por nove cineastas praticamente não afeta em nada a sua
unidade formal e temática. Sua síntese narrativa é baseada numa insólita e
perturbadora equação artística: influências e elementos tradicionais de
diversas vertentes do gênero horror (com uma queda especial para o grafismo
explícito do gore), referências a lendas regionais e retrato pessimista do
conturbado quadro social contemporâneo do México. De certa forma, faz lembrar
bastante o que o capixaba Rodrigo Aragão vem fazendo aqui no Brasil. O
resultado final dessa produção mexicana é arrasador, bem distante daquele padrão
asséptico e óbvio que grassa na maioria do que tem sido feito no gênero nos últimos
anos. Os episódios são plenos de brutalidade e de atmosferas sórdidas, sem
abrir mão, contudo, de uma constante e consistente tensão dramática, levando o
espectador para uma viagem sensorial memorável. Além disso, há variedade
estimulante na ambientação das histórias, indo desde uma caracterização estética
crua, beirando o bagaceiro, até um barroquismo plástico de toque perverso.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, julho 31, 2015
quinta-feira, julho 23, 2015
À procura,de Atom Egoyan ***
O diretor canadense Atom Egoyan vem em suas últimas obras se
dedicando a uma espécie de reconstrução do cinema de gênero, mais
especificamente os filmes de suspense. Ele se apropria de clichês narrativos
típicos de “thriller” e procura os reconstruir sob uma sutil perspectiva
autoral. Na superfície, tais produções se apresentam dentro de uma formatação
tradicional. São em discretas nuances estéticas e na abordagem emocional
distanciada que tais trabalhos se mostram diferenciados e instigantes. Dentro
de tal concepção artística, alguns filmes se mostram bem sucedidos (“Verdade
nua”, “Sem evidências”) e outros ficam deixando a desejar (“O preço da traição”).
Em relação ao mais recente “À procura” (2014), dá para dizer que as coisas ficaram
em um meio termo. O que incomoda de forma primordial é a falta de uma tensão
mais efetiva e envolvente, decorrência provável de uma queda excessiva por
convencionalismos formais e temáticos. Ainda sim, Egoyan é um cineasta de
estilo pessoal e marcante, conseguindo em preciosos momentos deixar o seu
registro pessoal evidente, como se pode perceber na bela fotografia, na edição
elegante e na caracterização insólita de alguns personagens (principalmente os “vilões”)
– o conjunto dessas qualidades gera uma obra de atmosfera sórdida e
perturbadora, longe de ser uma obra-prima, mas que ainda assim consegue ser
memorável.
terça-feira, julho 21, 2015
Terapia intensiva, de Arnaud Desplechin **
É bem provável que aqueles que se admiraram com a encenação contundente
e a ironia perversa de “Reis e rainha” (2004) e “Um conto de natal” (2008), os
ótimos filmes anteriores do diretor francês Arnaud Desplechin, irão se
decepcionar com “Terapia intensiva” (2013), a estreia de Desplechin numa
produção norte-americana. A premissa da trama dessa obra mais recente, baseada
em fatos reais, é até bem interessante, mostrando a relação entre um traumatizado
índio veterano de guerra (Benicio Del Toro) e o psicanalista francês (Mathieu
Amalric) de abordagem não-ortodoxa responsável pelo seu tratamento. O roteiro
apresenta nuances psicológicas e intimistas amadurecidas e que fogem das
obviedades. O que incomoda, entretanto, é que o filme peca justamente naquilo
que os trabalhos franceses de Desplechin tinham de melhor – narrativa e
encenação. O diretor adota um incômodo tom solene na forma com que conduz a
história, quase como se fosse uma espécie de literatura filmada. Faltou vigor
na forma com que as situações e personagens são caracterizados. Mesmo atores
diferenciados como Del Toro e Amalric se congelam em composições dramáticas
opacas, como se estivessem contaminados pela falta de criatividade e entusiasmo
que perpassa a atmosfera de “Terapia intensiva”.
segunda-feira, julho 20, 2015
Tokyo-Ga, de Wim Wenders ****
Pode ser que se esteja forçando a barra, mas talvez uma das
melhores maneiras de se entender “Tokyo-Ga” (1985) seja o encarar sob uma
perspectiva histórica-política. De forma simples resumida, seria assim:
Alemanha e Japão se associaram na Segunda Guerra Mundial ao fazerem parte do
Eixo. Com a respectiva derrota militar desses últimos no conflito, os referidos
países acabaram devastados em termos econômicos e infraestrutura. Seus
reerguimentos como nação foram bastante dependentes de empréstimos e perdões de
dívidas, sob o preço de terem recebido uma massiva influência cultural externa,
principalmente dos Estados Unidos. Assim, a partir do final de década de 40, a
discussão sobre a identidade nacional passou a ser frequente em boa parte da produção
artística nipônica e germânica. Dentro dessa abordagem, dá para dizer que pelo
menos dois cineastas foram fundamentais: Yasujiro Ozu e Wim Wenders. “Tokyo-Ga”
versa justamente sobre a relação existencial e artística entre esses dois
diretores.
Em um primeiro momento, a narrativa parte de uma premissa
simples: Wenders se apresenta como admirador e discípulo indireto de Ozu, indo
para o Japão em busca de uma maior compreensão do universo que circundava seu
mestre. Afinal, quando o alemão conheceu os filmes de Ozu esse último já era
falecido. Dentro desse conceito, Wenders faz o aparentemente previsível –
conversa com pessoas que trabalharam com Ozu, visita locais onde ele filmou
suas produções, exibe trechos de alguns dos mais importantes filmes do seu
homenageado. Ocorre, entretanto, que Wenders encaixa esses elementos de uma
forma muito particular, dentro de um sentido que extrapola a mera exposição
cronológica de fatos. A preocupação é inserir tudo isso dentro de um conjunto
de forte teor sensorial, como se Wenders quisesse emular a atmosfera e estilo
típicos dos clássicos de Ozu, mas sob uma ótica “estrangeira”. Como complemento
essencial dessa visão, “Tokyo-Ga” apresenta cenas da capital japonesa na época
em que o documentário foi realizado (anos 80), indo do cotidiano até sequencias
marcadas por uma certa bizarrice, confrontando o contemporâneo com a ótica
pessoal de Ozu, cujo o conjunto de sua filmografia expressava a sua visão de
uma série de tradições seculares se desintegrando de forma gradual e
inexorável. Dentro dessa concepção insólita e poética de formatar o seu
documentário, Wenders constrói um contundente trabalho impressionista e melancólico
ao procurar traduzir para o espectador o ideário e a essência estética de um
artista genial.
sexta-feira, julho 17, 2015
Homem-Formiga, de Peyton Reed ***
O britânico Edgar Wright era o nome inicialmente previsto
para dirigir “Homem-Formiga” (2015). Devido a tradicionais diferenças criativas
com produtores, acabou cedendo o lugar para Peyton Reed. Ainda sim, dá para
sentir algo do particular talento de Wright no filme em questão (ele é até
creditado como um dos autores do roteiro). A combinação entre aventura
escapista e toques de humor não é tão azeitada quanto nos brilhantes “Chumbo
Grosso” (2007) e “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010), mas ainda sim rende uma
obra bem satisfatória dentro do gênero “super-herói”. Ao contrário dos excessos
melodramáticos e das cenas de ação genéricas de “Vingadores – A era de Ultron”
(2015), “Homem-Formiga” se destaca pela concisão de sua trama e por sequências marcantes
de pancadaria. O roteiro faz uma eficiente síntese entre elementos típicos de
HQs e ficção-científica B (aliás, as explicações científicas sobre os fenômenos
da redução de tamanho e comunicação com formigas são até bem convincentes e
divertidas), além de revelar uma veia cômica afiada, sem cair naquelas
piadinhas infames e burocráticas de Tony Stark. As trucagens digitais de grafismo
expressivo estão em sintonia com o espírito nostálgico da produção. No mais, “Homem-Formiga”
consegue manter o padrão de qualidade dos estúdios Marvel – a adaptação se
mostra acessível para neófitos e também agrada aos “marvetes” roxos ao
preservar a essência dos quadrinhos. E cada vez mais a interação entre as
produções do estúdio se mostra natural e coerente, configurando um universo de interessantes
possibilidades criativas.
quinta-feira, julho 16, 2015
Saint Laurent, de Bertrand Bonello ****
É bem curioso o fato de que em um espaço de quatro anos o
estilista Yves Saint-Lauren tenha merecido três cinebiografias. Dá até para
dizer que o documentário “O louco amor de Yves Saint Lauren” (2010) e “Yves
Saint Lauren” (2014) se confundem na abordagem comportada e cronológica, de
discreto tom melodramático, que fazem sobre a vida de seu protagonista. Em
termos de efetiva relevância estética e temática, contudo, a pegada é bem mais
forte nesse “Saint Lauren”. O diretor Bertrand Bonello preserva o seu estilo
rarefeito e refinado que havia deixado aflorar com contundência no extraordinário
“L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância” (2011). A obra não se preocupa
apenas na recriação de fatos reais marcantes na vida do artista, mas também é
bastante voltada na recriação da ambientação sensorial que circundava a figura
de Saint Lauren (Gaspard Ulliel). Nesse sentido, fica evidente uma atmosfera de
hedonismo e lassidão que envolve o cotidiano de seu principal personagem que se
choca de forma contraditória com as reuniões de negócios do amante/sócio Pierre
Bergé (Jérémie Renier) para defender os interesses da grife de ambos. Ao contrário
dos filmes mencionados antes sobre Saint Lauren, a obra de Bonello não se
vincula a uma visão romântica e sentimental dos romances e conquistas de seu
protagonista. Prevalece uma certa frieza na caracterização de situações e
personagens, o que reforça ainda mais o caráter de estilização da produção. Os
trabalhos de direção de fotografia e de edição são primorosos, configurando um
audiovisual hipnótico e perturbador. De lambuja, dá até para dizer que é um dos
grandes filmes rock and roll dos últimos tempos (só as sequências embaladas por
canções de Velvet Underground e Creedence Clearwater Revival já valeriam o
ingresso/locação).
quarta-feira, julho 15, 2015
Vida de casado, de Ira Sachs ***
O modus operandi do diretor Ira Sachs é simples e eficiente
nas suas intenções e resultados. Na superfície, seus filmes enveredam pela
estrutura do melodrama tradicional. Com o desenvolver da narrativa, toques irônicos
e por vezes até perversos configuram contundentes e amargos contos morais. Tal
estilo particular se cristalizou de forma bastante consistente em “Deixe a luz
acesa” (2012) e “O amor é estranho” (2014). Em “Vida de casado” (2007), um de
seus primeiros trabalhos, ele já insinuava de forma expressiva suas concepções
artísticas. O roteiro estabelece alguns motes básicos e aparentemente até
banais, centrando a trama em temas típicos como insatisfação matrimonial e
traições conjugais. São em sutis e desconcertantes detalhes, entretanto, que
essa produção se diferencia. Sachs opta por atmosfera e formalismo que evocam
uma estilização entre o nostálgico e o sensual. Nesse sentido, o trabalho de
direção de arte valoriza de maneira minuciosa o imaginário que se tem sobre os
anos 50. Essa estética é a moldura mais que adequada para os conflitos e
dilemas morais que rondam a trama, uma espécie de inventário das hipocrisias
sexuais e sentimentais da classe média norte-americana na época. Sachs se
permite algumas ousadias desconcertantes nas soluções de sua história, em que
cenas habituais de descaminhos amorosos convivem naturalmente com preceitos do
gênero suspense, fazendo de “Vida de casado” uma engenhosa crônicas de costumes
da sociedade ocidental.
terça-feira, julho 14, 2015
O crítico, de Hernán Guerschuny **
A trama da produção argentina “O crítico” (2013) obedece a uma equação insólita
– mostrar os dilemas e contradições na vida do crítico cinematográfico Víctor Tellez
(Rafael Spregelburd) dentro de uma narrativa que se formata como uma comédia
romântica, justamente o gênero que o protagonista menos aprecia. Em um filme
cuja temática envolve o próprio universo do cinema, é quase óbvio que referências
e citações a outras produções serão recorrentes. Nesse quesito, a obra do
diretor Hernán Guerschuny tem alguns achados narrativos e estéticos bem
interessantes. Como a história é vista pelo olhar do personagem principal, há
momentos em que imagens e sons evocam alguns clássicos do cinema,
principalmente relacionados ao movimento da Nouvelle Vague (os pensamentos de
Tellez são em francês, por vezes as imagens são em preto-e-branco, trilha
sonora que evoca um jazz atemporal). Esses truques, entretanto, acabam sendo
insuficientes para dar um estofo artístico satisfatório para o filme. Ao
mostrar o cotidiano profissional de Tellez, a narrativa se revela esquemática e
superficial, obedecendo a uma lógica simplista – o rigor do personagem com
obras “água com açúcar” seria um reflexo do seu endurecimento emocional, de uma
falta de sensibilidade com as coisas simples da vida. Mesmo quando a bela Sofía
(Dolores Fonzi) entra em cena, é por uma questão formulaica, pois ela será o
vetor de abrandamento da personalidade dura de Tellez. Nesse instante, a
proposta existencial de “O crítico” fica ainda mais confusa: é uma obra que
converte em um sacana pastiche de comédia romântica? Ou é uma homenagem ao gênero,
resgatando os seus preceitos básicos? Essa indefinição de rumo retira o impacto
da produção, pois ela não consegue cativar o espectador pelo seu grau emocional
e nem por um possível caráter de ironia. Isso sem falar que levanta uma dúvida
que chega as raias do absurdo: quer dizer que alguns dos melhores trabalhos da
Nouvelle Vague, por exemplo, têm as suas reais importâncias condicionadas ao
humor de críticos?
segunda-feira, julho 13, 2015
Happy, happy, de Anne Sewitsky **1/2
Pela perspectiva da temática, a produção norueguesa “Happy,
happy” (2010) guarda forte relação com boa parte da cinematografia nórdica,
principalmente quando se pensa em Ingmar Bergman. O roteiro disseca as relações
intimistas entre duas famílias de origens culturais diversas que acabam tendo
uma convivência mais próxima pelo fato de serem vizinhas. A partir dessa
premissa de trama, a diretora Anne Sewitsky aborda assuntos complexos como
adultério, homossexualidade, insatisfação sexual, conflitos familiares e
racismo. Por vezes, o desenrolar da história até evoca um certo caos emocional
no momento em que os matrimônios se desestabilizam quando os desejos dos
personagens começam a aflorar com mais intensidade. Nesse sentido, o filme até
vislumbra um caráter de contestação dos valores morais vigentes da sociedade
ocidental. Sewitsky adota uma narrativa formatada dentro do gênero comédia dramática,
o que acaba conferindo à obra alguma leveza irônica. O que quebra a
possibilidade de um maior impacto sensorial e existencial para “Happy, happy” é
que a produção não leva para níveis mais avançados as suas inquietações artísticas.
A sensação de desordem sentimental se dissipa com a necessidade da trama se
acondicionar a soluções conciliadoras e um tanto conservadoras. É como se o
filme ficasse com medo das consequências morais de sua trama e redirecionasse
tudo para uma conclusão careta, em que a unidade familiar deve ser preservada a
qualquer custo. Nesse sentido, a comparação inicial que fez nesse texto com
Bergman acaba soando covarde. O diretor sueco, afinal, nunca foi de se melindrar
em diatribes contra a hipocrisia das relações humanas.
sexta-feira, julho 10, 2015
Meu verão na Provença, de Rose Bosch *
Na obra-prima “Sangue negro” (2007), o diretor Paul Thomas
Anderson focava a sua narrativa na exposição crua e sem concessões de um indivíduo
mesquinho e antissocial, mostrando que sua misantropia revelava diversos traços
de comportamentos inerentes à condição humana. Não havia redenção ou alguma espécie
de transcendência epifânica para o protagonista Daniel Plainview (Daniel
Day-Lewis em um trabalho de composição dramática que mais parecia uma possessão).
Em “Meu verão na Provença” (2014), a trama também é centrada em um indivíduo
bronco e com dificuldades de se relacionar com as pessoas, principalmente com a
filha e os netos. Parte dessa personalidade pode se atribuir à sua atividade de
fazendeiro – é como se a rudeza de sua atividade acabasse se refletindo na sua
vivência social. A diferença entre a obra de Anderson e essa produção mais
recente da cineasta de Rose Bosch, entretanto, é uma escancarada e abissal
profundidade artística: enquanto “Sangue negro” é uma obra de grande rigor estético
e temático, “Meu verão na Provença” é destituída de uma abordagem mais
consistente. É possível dar um desconto para a competente fotografia, que
valoriza bastante as belas paisagens campestres em que se desenvolve a sua história.
Fora disso, é uma narrativa trôpega e banal, cuja encenação se baseia em clichês
superficiais e sem uma efetiva densidade dramática. A transformação do
carrancudo Paul (Jean Reno) em um senhor boa praça é apressada e artificial.
Bosch se apóia exclusivamente em melosos e simplórios clichês sentimentalóides
na resolução dos dilemas do roteiro. Elementos que poderiam configurar algumas
doses de contradição e questionamento (conflitos de geração, alcoolismo,
nostalgia em relação aos ideais dos anos 60) são esvaziados de interesse e tensão.
O resultado final é um filme anódino e pouco memorável dentro da sua irrelevância
formal e mesmo textual.
quinta-feira, julho 09, 2015
Almas silenciosas, de Aleksei Fedorchenko ***1/2
O grande mote da narrativa de “Almas silenciosas” (2010) é o
contraponto dos extremos. Se num primeiro momento as concepções estética e temática
dessa produção russa denotam um viés realista, com o a avançar da trama passam
a surgir alguns toques metafísicos. Isso porque a história contida no roteiro
alude a um confronto entre o cotidiano melancólico e cinzento dos personagens
de um vilarejo russo com as suas tradições envolvendo estranhos rituais e
particulares misticismos distantes dos padrões morais das religiões cristãs
ocidentais. Nesse sentido, novamente a ideia da contradição se evidencia, em
que elementos tecnológicos da rotina normal de indivíduos contemporâneos
(computadores, celulares) convivem dentro de um ambiente bastante marcado por
costumes centenários e atavismos. Por mais que esses seres estejam inseridos
numa sociedade ocidental de valores pequeno-burgueses, eles trazem dentro de si
uma espécie de herança telúrica, cuja ligação com a natureza e os seus próprios
instintos é praticamente inerente às suas condições existenciais. O contexto
narrativo de “Almas silenciosas” vai se tornando cada vez mais difuso e enigmático,
fazendo com que as ações de seus personagens carreguem um sentido simbolista de
fortes tons poéticos. Nessa lógica, erotismo e morbidez se confundem de maneira
perturbadora, mas também notavelmente coerente, gerando assim uma obra de
extraordinário encanto sensorial.
quarta-feira, julho 08, 2015
O exterminador do futuro: Gênesis, de Alan Taylor ***
Não é novidade que a grande inspiração para o primeiro “O
exterminador do futuro” (1984) foi a HQ “Dias de um futuro esquecido”, clássica
saga dos X-Men. Aliás, esse arco de histórias é tão bom que acabou recebendo
uma bela adaptação para o cinema no mais recente filme da franquia dos
mutantes. A produção original dirigida por James Cameron levou aquela
influência dos “comics” para um patamar diferenciado, combinando o clima sórdido
de ficção científica B com uma dinâmica de aventura típica dos gibis de
super-heróis. Na continuação dirigida por Cameron em 1991, havia uma
ambientação mais grandiosa, épica, mas ainda em sintonia com aquela equação
artística da primeira parte. O grande mérito de “O exterminador do futuro:
Gênesis” (2015) é justamente retomar esse pique dos dois primeiros filmes da
série. É claro que o diretor Alan Taylor está bem longe de ter a mesma classe
formal de Cameron. Ainda sim, seu filme é bem convincente na mescla de
reciclagem e atualização dos cânones da franquia. Há cenas que evocam elementos
antológicos das obras dirigidas por Cameron, principalmente em detalhes de
trucagens e enquadramentos. Por outro lado, esse novo capitulo aprofunda o
conceito sobre viagens no tempo e a possibilidade de existência de dimensões
paralelas, gerando algumas soluções criativas para a trama que oscilam entre o
estapafúrdio e o bem sacado. Nesse contexto, o filme de Taylor faz a franquia
se aproximar novamente da ambientação de aventura alucinada das HQs. Esse sopro
renovador joga essa retomada da saga para algo além da continuação oportunista
e deixa até uma curiosidade para o que vem por aí nas inevitáveis continuações.
sexta-feira, julho 03, 2015
Migração alada, de Jacques Perrin, Jacques Cluzaud e Michel Debats ***
Num primeiro momento, “Migração alada” (2001) não parece
diferir de inúmeros documentários sobre animais selvagens e sua relação com a
natureza que aparecem frequentemente nos Animal Planet e National Geographic da
vida. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, alguns detalhes o diferenciam
de tais produções. Ao mostrar as diferentes fases da corrente migratória de
diversos tipos de pássaros, o filme em questão oferece uma dinâmica narrativa que
remete a uma verdadeira aventura épica, sem que com isso deixe de preservar o
rigor científico dos fatos. É de se destacar ainda o apuro formal na captação
das imagens, cujo registro capta nuances fenomenais no cotidiano dos animais. A
proximidade das câmeras em relação aos seus “personagens” nas sequências de voos,
por exemplo, tem um impacto sensorial memorável.
quinta-feira, julho 02, 2015
Pais & filhos, de Hirokazu Koreeda ***
O drama familiar parece ser o gênero cinematográfico
preferido do diretor japonês Hirokazu Koreeda. Ele já havia enveredado por esse
tipo de produção em expressivas obras anteriores como “Ninguém pode saber” (2003)
e “O que eu mais desejo” (2012). “Pais & filhos” (2013) é mais um exemplar
desse direcionamento autoral por parte de Koreeda. Na comparação com os filmes
anteriores, esse trabalho mais recente do cineasta apresenta uma tendência mais
ostensiva para elementos de melodrama. Isso não quer dizer, entretanto, que se
descambe para sentimentalismo excessivo. Koreeda consegue preservar boa parte
de sua habitual sobriedade emocional ao narrar a história de uma troca de bebês
descoberta alguns anos poucos anos depois, com as respectivas crianças já
devidamente integradas às suas famílias. Os sentimentos e dilemas dos
personagens são expostos de forma mais direta. Ainda assim, o roteiro revela
uma certa sutileza no desenvolvimento de alguns meandros da história contada,
principalmente ao relacionar a temática em questão com alguns dos valores mais
caros da moderna sociedade japonesa (pressão social por sucesso profissional,
forte sentimento de competitividade). Ainda que “Pais & filhos” não
apresente a mesma austeridade estética e textual de outros trabalhos de
Koreeda, é de se louvar que ele mantenha um direcionamento existencial que faz
com que a complexidade de personagens e situações mostradas não se resolva em
soluções fáceis e banais. O final em aberto e de considerável caráter humanista
deixa clara a capacidade do cineasta de instigar o espectador.
quarta-feira, julho 01, 2015
Minions, de Pierre Coffin e Kyle Balda *
Assim como os pinguins psicóticos de “Madagascar”, os
minions fazem aquela linha de coadjuvantes engraçadinhos e esquisitos que
acabam ganhando mais popularidade que os protagonistas de seus respectivos
filmes e merecendo um filme só para si. Em ambos os casos, as produções em que se
tornam figuras principais não justificam tal ascensão e até mesmo evidenciam
suas fragilidades em termos de construção de personagem. No caso de “Minions”
(2015), isso fica evidente de maneira que beira o constrangedor. Se nos filmes
da franquia “Meu malvado favorito” (que já não eram grande coisa) as
criaturinhas já pareciam uma piada de graça já limitada, na animação em questão
fica difícil sustentar interesse apenas nelas. Os minions até fazem lembrar,
devido ao seu dialeto sem sentido e visual “monstrinho”, os marcianos dementes
do sensacional “Marte ataca!” (1996). Só que os diretores Pierre Coffin e Kyle
Balda estão bem longe de ter o senso de humor perverso e genial de Tim Burton.
Não há caracterização convincente de personagens e nem alguma tensão que se
extraia da trama. Predomina apenas a banalidade sem graça de uma produção
oportunista, em que mesmo as referências à cultura dos anos 60 que permeiam o
roteiro soam pueris e gratuitas.
Rainha & país, de John Boorman ***1/2
É claro que “Rainhas & país” (2014) não se enquadra no
mesmo nível artístico de obras-primas clássicas do cineasta britânico John Boorman
como “Amargo pesadelo” (1972), “Excalibur” (1981) e “Esperança e glória” (1987)
– essa última, por sinal, produção da qual essa mais recente é continuação
natural. Ainda assim, é um trabalho de relevo, com o veterano diretor
conduzindo sua narrativa com uma elegância formal notável. Assim como já havia
feito no ótimo “O alfaiate do Panamá” (2001), Boorman se vale de um gênero
tradicional, no caso o melodrama, e de elementos estéticos e temáticos que
beiram o clichê para construir a sua narrativa. Encenação, enquadramentos e
edição formam um conjunto marcado pela clareza audiovisual e ausência de
maiores invencionices. Essa opção pela convencional, entretanto, não resulta em
assepsia ou irrelevância. O grande barato do filme é justamente transcender a
partir daquilo que é aparentemente óbvio e banal. Por trás de uma trama
memorialista e de fortes tons românticos, há um subtexto contestador e repleto
de fina ironia. Com sutileza, Boorman questiona a opressiva disciplina militar,
o vazio da retórica nacionalista que incentiva guerras oportunistas, o
moralismo familiar e até mesmo a alienação insensível do dito amor romântico. O
processo de amadurecimento do protagonista Bill Rohan (Callum Turner) é
mostrado de forma convincente e com consistente dimensão humanista. Assim, “Rainhas
& país” se mostra muito além de ser uma mera sequência oportunista,
reforçando o expressivo traço autoral da cinematografia de Boorman.
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