A conjunção entre horror e comédia se deu em vários e diferentes momentos dentro da história do cinema. Mesmo no Brasil tal vertente encontrou espaço, vide algumas pérolas do "terrir" de Ivan Cardoso. É inegável, entretanto, que o diretor norte-americano Frank Henenlotter atingiu um patamar singular nessa combinação. "Basket Case" (1982) é exemplo claro disso. Os efeitos especiais podem parecer precários devido ao orçamento apertado, especialmente na caracterização visual do monstro protagonista, e fazer parecer que o filme seja uma produção trash oitentista qualquer. Com o desenrolar da trama, essa aparente tosquice gráfica acaba se revelando de um impacto imagético impressionante em virtude da criatividade formal de Henenlotter. Por mais que a trama possa ser absurda nos seus exageros melodramáticos e caia no francamente ridículo por vezes, o cineasta estabelece uma constante atmosfera de sordidez e sarcasmo na história de dois irmãos gêmeos ex-siameses (um monstro, outro "normal") que buscam vingança contra os médicos que realizaram a operação que os separaram na infância. Pode-se até rir das bobagens que aparecem no roteiro, mas também há uma tensão efetiva nas cenas de violência sanguinária e dilemas morais dos personagens. Além disso, poucas vezes Nova Iorque teve o seu lado obscuro e decadente tão bem registrado quanto nas tomadas de quartos de hotéis vagabundos e becos sujos que grassam na narrativa de "Basket Case", sendo esse mais um dos fatores que levaram essa produção de Henenlotter a ser tornar uma dos mais cultuados trabalhos da cinematografia independente norte americana dos anos 80.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, agosto 29, 2014
quinta-feira, agosto 28, 2014
Um outro mundo, de Richard Stanley ***1/2
A trajetória artística do diretor sul-africano Richard Stanley é bastante emblemática do comportamento da indústria do cinema nas últimas décadas. Diretor de clássicos cult do gênero fantástico na virada anos 80 para os 90 ("Hardware - O destruidor do futuro", Dust Devil - O colecionador de almas"), Stanley viu as oportunidades para filmar minguarem de forma considerável pelo fato do sua abordagem autoral do cinema de gênero (principalmente na vertente horror) não encontrar espaço em um mercado cada vez mais asséptico e despersonalizado. Assim, a forma de se ver alguma produção recente de Stanley é em trabalhos independentes como esse "Um outro mundo" (2013). Na primeira impressão, trata-se de um documentário onde o cineasta fala sobre a região francesa Montségur, onde reside na atualidade, e que segundo Stanley seria local onde há uma espécie de portal para outras dimensões. A narrativa é um híbrido esquisito entre técnicas documentais tradicionais e encenações de experiências místicas transcendentais do diretor. Pode até ser que o espectador ache tudo uma grande picaretagem em relação às teorias metafísicas de Stanley e de alguns dos idiossincráticos depoentes que aparecem ao longo da trama, mas periga também ficar fascinando pela engenhosidade de uma narrativa envolvente na exposição de histórias fantásticas e pelas peculiares visões de mundo expostas pelos seus personagens outsiders. Além disso, tal junção entre realidade e fantasia também serve como libelo pessoal de Stanley contra uma sociedade ocidental cada vez mais imersa num modo de visa desumanizado e repressor, onde não há espaço para a fantasia e a criatividade. "Um outro mundo" também reforça o forte caráter autoral que sempre marcou a cinematografia de Stanley - as mulheres guerreiras, a visão desesperançada em relação ao futuro e o gosto pelo fantástico são elementos que frequentemente nortearam as produções do cineasta.
quarta-feira, agosto 27, 2014
Dust Devil - O colecionador de almas, de Richard Stanley ***1/2
Assim como já havia ocorrido em "Hardware - O destruidor do futuro" (1990), o diretor sul-africano Richard Stanley consegue um notável feito em "Dust Devil - O colecionador de almas" (1992) ao estabelecer uma forte marca autoral dentro dos padrões formais e temáticos pré-estabelecidos do cinema de gênero (no caso em questão, o horror). Dessa forma, também honra uma faceta importante do cinema B: a de "contrabadear" ideias artísticas mais ousadas no meio de uma aparente produção rotineira comercial. Contando novamente com uma bela trilha sonora climática de Simon Boswell, Stanley elabora uma narrativa que se constrói a partir de influências de faroeste espagueti, atmosferas oníricas/lisérgicas e até mesmo melodrama intimista, sabendo ainda extrair grandes momentos de beleza visual das desoladas paisagens dos desertos da África do Sul. O cineasta demonstra tamanha classe estética que consegue tirar de letra detalhes como clichês, orçamento reduzido e a canastrice geral do elenco, fazendo de "Dust Devil" um pequeno clássico cult/fantástico dos anos 90.
terça-feira, agosto 26, 2014
Eu e você, de Bernardo Bertolucci ***
É evidente que os anos
que se passaram sem o lançamento de algum filme novo do diretor
italiano Bernardo Bertolucci provocaram uma forte expectativa para
“Eu e você” (2012). Ainda mais que a última obra do cineasta
tinha sido o vigoroso “Os sonhadores” (2003). Nessa perspectiva,
a produção mais recente em questão acaba sendo decepcionante – é
provável que seja o pior filme da carreira de Bertolucci. Não há
aquela perturbadora e sexy atmosfera desesperada de “O último
tango em Paris” (1972) ou “O céu que nos protege” (1990), o
rigor estético e emocional de “O conformista” (1970) e “La
Luna” (1979) ou a narrativa juvenil vivaz de “Beleza roubada”
(1996) e “Os sonhadores”. “Eu e você” soa mais como uma
reciclagem de elementos formais e temáticos (incesto, desajuste
juvenil, drogas, trilha sonora pop/rock and roll) que já tinham sido
melhor explorados em produções anteriores. Mesmo assim, está longe
de ser um filme ruim. Bertolucci preserva sua elegância e graça no
filmar, criando algumas sequências memoráveis e extraindo atuações
carismáticas da jovem dupla de protagonistas. Pode parecer pouco
para quem já criou tantas obras-primas cinematográficas, mas ainda
é acima da média em relação ao que tem aparecido nas telas nos
últimos anos.
segunda-feira, agosto 25, 2014
Bastardos, de Claire Denis ****
A diretora Claire Denis propõe uma sofisticada e perversa formatação em "Bastardos" (2013). Ela pega boa parte do clichês básicos de filmes policiais envolvendo vingança e investigação de fatos obscuros e os remodela sob uma ótica bastante pessoal. Quando o protagonista Marco (Vincent Lindon) envereda para um mundo sombrio em busca das razões que levaram ao suicídio de seu cunhado e ao declínio mental de sua sobrinha Justine (Lola Creton) o espectador pode ter até a impressão inicial que verá uma tradicional trama envolvendo busca de pistas, descobertas surpreendentes (ou nem tanto) e uma conclusão catártica envolvendo violência e redenção. Ocorre, entretanto, que para Denis interessa muito mais os liames psicológicos e a conotação simbólica da trama que expões do que elaboradas coreografias de tiros e lutas. O processo de descoberta dos segredos sórdidos que envolvem sua família não tem o significado apenas da solução de um crime, mas, mais impactante ainda, representam uma desolada jornada de autodescoberta existencial para o próprio protagonista, em que ficam evidenciados o seu vazio e alienação emocionais, não havendo possibilidade de seus pecados por inócuos atos de brutalidade. A rigorosa abordagem estética de Denis enfatiza ainda mais a atmosfera melancólica de desesperança do filme - encenação, fotografia e edição remetem a um cinema descarnado e objetivo, que dispensa floreios formais e elimina quaisquer possibilidades de abrandamento sentimental para os personagens. A conclusão de "Bastardos" é coerente com as intenções da diretora, tanto no anticlimática morte de Marco quanto na exposição das imagens granuladas de um vídeo amador mostrando o estupro de Justine com um sabugo de milho cometido pelo próprio pai.
sexta-feira, agosto 22, 2014
That's sexploitation, de Frank Henenlotter ***
Para contar a história dos filmes que usaram (e usam) a nudez como seu principal atrativo, "That's sexploitation" (2013) contou com um diretor bastante adequado para tal temática, o norte-americano Frank Henenlotter, autor de notáveis podreiras oitentistas e capaz de perceber as nuances sacanas e históricas que o assunto poderia proporcionar. Henenlotter tem a sua disposição um vasto material de arquivo, com trechos de vários filmes de praticamente todas as décadas do século XX, além de contar com os depoimentos esclarecedores e engraçados de especialistas no gênero e até de produtores de algumas dessas obras. Henenlotter consegue estabelecer com clareza a evolução do "sexploitation" a partir dos diferentes contextos históricos em que o gênero se desenvolveu, fazendo com que o documentário sirva também como um interessante panorama da história do próprio cinema. A narrativa é convencional, por vezes enfadonha, mas o filme tem o seu encanto perverso e nostálgico ao retratar momentos da cinematografia mundial em que pudores estéticos e morais eram avacalhados de uma forma que oscilava entre o sardônico e o ingênuo, evidenciando também que nos cínicos e assépticos dias atuais produções na linha "sexploitation" teriam suas realizações inviabilizadas por não obederecem a um padrão de cinema sanitizado e de "bom gosto".
quarta-feira, agosto 20, 2014
Hardware - O destruidor do futuro ***1/2
Em um primeiro momento, "Hardware - O destruidor do futuro" (1990) poderia ser encarado apenas como uma cria típica da época em que foi lançado, na sua mistura de aventura futurista apocalíptica na linha "Mad Max" com terror B repleto de violência explícita. E isso não seria demérito algum - operando dentro dos lugares comuns habituai s dos gêneros em questão e contando com um orçamento bem abaixo das produções norte-americanas de grandes estúdios, o diretor sul-africano Richard Stanley, em seu longa-metragem de estreia, revela-se bastante eficiente na condução da narrativa ao combinar com maestria cenas de ação bem coreografadas, uma tensa atmosfera sombria, sanguinolência na medida exata e uma criativa direção de arte na caracterização visual de um futuro poeirento, sórdido e desolado. Além disso, Stanley consegue imprimir um toque pessoal e diferenciado em sua obra nas nuances metafísicas e metafóricas que acrescenta à trama. A simbologia que permeia o roteiro pode ser simples na contraposição de seus signos (a sensibilidade feminina da protagonista versus a aridez emocional da máquina assassina), mas ganha uma dimensão sensorial extraordinária em algumas sequencias, principalmente naquela da morte do amante da personagem principal, cuja encenação adquire um grau de poética religiosidade na forma sutil com que se desenrola. E a ótima trilha sonora de Simon Boswell, que faz lembrar os temas de faroeste-espaguete de Enio Morricone numa perspectiva eletrônica/rocker, coroa mais uma das escolhas artísticas acertadas de Stanley e é mais um dos motivos para que "Hardware" seja esse pequeno clássico da ficção científica a ser descoberto.
terça-feira, agosto 19, 2014
Não pare na pista, de Daniel Augusto *
Parece que Paulo Coelho e o pessoal da produção de "Não pare na pista" (2013) confundiram cinebiografia com vídeo institucional de autopromoção. É a única explicação para uma obra de concepção e execução tão equivocada quanto essa. E não adianta o diretor Daniel Augusto tentar engrupir com uma narrativa metida a moderninha ao estabelecer uma narrativa que se alterna em três planos temporais que se desenvolvem de forma simultânea, pois o recurso é nulo na sua falta de capacidade de extrair alguma efetiva tensão dramática - se Augusto tivesse optado por uma tradicional narrativa linear o efeito teria sido o mesmo. O formalismo do filme é mecânico e artificioso ao extremo: roteiro laudatório e sem noção de sutileza, elenco com composições dramáticas que parecem desconhecer nuances, direção de arte burocrática, fotografia de luz estourada e leitosa na linha publicitária. Tais escolhas artísticas desperdiçam o considerável potencial dramático dos fatos históricos que a produção pretendia retratar (Raul Seixas, por exemplo, é mostrado apenas como um bêbado oportunista com algum talento), preferindo se concentrar em manjadas lições de vida de superação ou em mal ajambrados conselhos místicos. Pior ainda: em nenhum momento se tem alguma mostra dos motivos estéticos e existenciais que fizeram da literatura de Coelho uma arte que cativou tantos leitores ao redor do mundo. Do jeito que ficou, "Não pare na pista" mais ficou parecendo uma ode a um barato arrivismo econômico e social, aos moldes do nefasto "Os dois filhos de Francisco" (2005).
segunda-feira, agosto 18, 2014
Chef, de Jon Favreau **
A trama de "Chef" (2014) parece traçar um paralelo com a própria carreira artística de Jon Favreau, diretor do filme em questão, ao mostra a história do chef de cozinha Carl Casper (Favreau) que após ser demitido de um restaurante de prestígio e ter uma crise histérica com um crítico culinário acaba se tornando dono e principal cozinheiro de um velho trailler que vende sanduíches mexicanos, e nesse processo acaba reencontra a essência no prazer de cozinhar e até mesmo se torna um melhor pai para o seu filho pequeno. Esse roteiro pleno de clichês sobre superação e lições de vida afins evoca de forma metafórica o fato de que Favreau se projetou inicialmente como protagonista de "Swingers" (1996), um dos clássicos do cinema independente norte-americano dos anos 90, e depois acabou se integrando dentro do esquema das grandes produções de Hollywood, com destaque para situação de ter se tornado o diretor das duas primeiras partes da franquia milionária "Homem de ferro". Nesse sentido, Chef poderia representar uma espécie de volta às raízes de Favreau a produções de menor orçamento em nome de um cinema mais "humano" ou "artístico". Se a intenção era essa, contudo, o resultado final acaba deixando bastante a desejar. "Chef" é convencional em excesso e destituído de qualquer espécie de ousadia formal e temática. Tanto que lá pela metade do filme se fica com a impressão de que todos os conflitos estão resolvidos da forma mais fácil possível, não havendo praticamente nada de tensão dramática e restando ao longo da metragem um desfile incessante de pratos aparentemente bastante apetitosos (e calóricos) sendo elaborados e devorados. Ou seja, é até fácil de ver, mas também de esquecer... Há muito mais vida e criatividade em qualquer um dos dois filmes do "Homem de ferro" que Favreau dirigiu. E se alguém estiver interessado em ver "Chef" porque gosta de relação cinema e comida, vale muito mais a pena assistir (ou mesmo rever) a algumas obras-primas cinematográficas gastronômicas como "A comilança" (1973) ou "A festa de Babette" (1987).
sexta-feira, agosto 15, 2014
Educação sentimental, de Julio Bressane ***1/2
A discussão sobre os limites entre meios de expressão como cinema, literatura e teatro é recorrente, em que se buscam conceitos que estabeleçam distinções sobre a “pureza” de tais linguagens. Assim, é comum se ler/ouvir expressões que até se tornaram lugares comum como “teatro filmado”, “cinema literário” e afins. Para Julio Bressane, entretanto, tais convenções parecem pueris. Seus filmes cada mais refletem um universo particular que faz sentido quase que exclusivamente dentro de sua filmografia. Na realidade, o leque é ainda mais amplo, pois inclui outras vertentes como cinema, dança e pintura. Nesse sentido, Educação sentimental (2013) é uma obra que se delineia a partir de ideias, sensações e obsessões que afloram dos devaneios do cineasta. Mas não se trata de mero cinema aleatório – essa gama de elementos variados passa pelo filtro de um rigoroso senso estético de Bressane, dando à narrativa uma coesão notável e desconcertante. E para que esse sofisticado formalismo se manifeste, fundamental é o trabalho criativo da direção de fotografia de Walter Carvalho, que envereda por aqueles enquadramentos e iluminação que evocam um estilo pictórico que beira o renascentista na sua disposição cênica e nos jogos de claro e escuro, recursos imagéticos esses que já tinham sido trabalhados com brilhantismo semelhantes em outras obras fotografadas por Carvalho como A febre do rato (2011) e A erva do rato (2008), esta última também dirigida por Bressane.
E por falar em A erva
do rato, Educação sentimental é
continuação natural daquele trabalho, não só pela cinematografia de Carvalho,
mas também por nuances formais como os sinuosos diálogos literários, o roteiro
carregado de simbolismos intrincados e a encenação anti-naturalista (essa
última reforçada pela extraordinária atuação no estilo possessão de Josie
Antello). Há, inclusive, também como em A
erva do rato, as cenas nos créditos finais trazendo um “making-of” que
apresenta o próprio processo de desenvolvimento criativo como matéria dramática
para o filme. Em se tratando de Bressane, entretanto, não dá para falar em mera
reciclagem – o que se vê na tela é o cineasta burilando atos e noções pouco
usuais no cinema contemporâneo, mas que reforçam o papel do diretor como nome
singular e fundamental no panorama do cinema brasileiro.
quinta-feira, agosto 14, 2014
O mercado de notícias, de Jorge Furtado ***
Mais do que simplesmente um documentário político, “O
mercado de notícias” (2014) tem a cara de uma obra que retrata as obsessões
formais e temáticas de um artista, no caso, o diretor Jorge Furtado. Tanto a
obra tem esse forte caráter pessoal que o próprio cineasta se coloca como
personagem ativo de seu filme por várias vezes – ele interage de forma
ostensiva com os entrevistados, debate com os atores que atuarão na peça de Ben
Jonson epônima do filme, fala diretamente para a câmera. Mesmo em entrevistas
de divulgação da produção Furtado faz questão de ressaltar a sua ideologia para
enfatizar o tom subjetivo do filme. Dentro de tais concepções estéticas e
textuais, “O mercado de notícias” se filia a uma vertente de documentários cujos
limites entre a verdade e a ficção ficam imprecisos, difusos, e que vem se
tornando recorrentes no cinema nacional dos últimos anos, vide produções como “Elena”
(2012) e “Mataram meu irmão” (2013). E isso pode parecer até contraditório para
um filme onde se fala tanto na “verdade factual”. Esquerdista declarado, o
diretor deixar claro que ao discutir o papel da imprensa na sociedade contemporânea
está fazendo por vias indiretas a defesa do governo federal petista. Discutível
ou não em suas intenções panfletárias, entretanto, também é inegável que “O
mercado de notícias” é o longa-metragem mais sanguíneo, autoral e ousado
lançado por Furtado. Aqueles acostumados com a verborragia metida a espertinha
e a encenação indulgente de trabalhos como “Meu tio matou um cara” (2004) e “Saneamento
básico” (2007) levarão um susto com a contundente mistura de preceitos de
cinema verdade e tomadas de ensaios e encenação da referida peça teatral de
Jonson. Por vezes essa combinação não encaixa de maneira tão precisa, fazendo
com que o texto de Jonson fique de difícil compreensão, mas em outros momentos
a boa edição de Giba Assis Brasil faz com que a fusão de cinema e teatro atinja
uma síntese bastante eficiente. No quesito montagem, vale ainda mencionar que a
formatação da narrativa, principalmente quando Furtado adota a linha “investigativa”,
faz lembrar alguns maneirismos de obras clássicas da cinematografia política
como “Z” (1969) e “JFK – A pergunta que não quer calar” (1991). No final das
contas pode ser que alguém discorde das teses sócio-políticas de “O mercado de
notícias”, mas também não deixará de se surpreender com essa volta de um
Furtado mais inventivo, nos moldes daquele que encantou muita gente com o antológico
curta-metragem “Ilha das Flores” (1989).
quarta-feira, agosto 13, 2014
Walesa, de Andrzej Wajda ***
A combinação entre Andrzej Wajda e a temática política
sempre é potencialmente explosiva, vide até o recente e extraordinário “Katyn”
(2007). Assim, a expectativa para “Walesa” (2013) era considerável, até porque
a vida do líder sindicar e ex-presidente polonês Lech Walesa é contemporânea à
boa parte da própria vida do cineasta, fazendo com que essa proximidade histórica
entre eles pudesse tornar a cinebiografia ainda mais contundente. O resultado
final, entretanto, acaba ficando aquém do esperado. Não é um mau filme, afinal
Wajda é um diretor tarimbado e consegue estabelecer um ritmo narrativo
envolvente, isso sem falar que a própria história do carismático protagonista é
repleta de fatos interessantes e marcantes. O que incomoda na produção é um
padrão formal por vezes excessivamente acadêmico, além do roteiro que
simplifica muitas questões complexas, tanto na caracterização um tanto
superficial dos principais personagens quanto na visão maniqueísta de algumas
situações históricas, vide a abordagem em relação ao papel da igreja católica
no conflito entre trabalhadores e o governo comunista.
terça-feira, agosto 12, 2014
O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes ***1/2
A união entre os cineastas Cao Guimarães e Marcelo Gomes
para dirigir “O homem das multidões” (2012) não é gratuita. Ainda que marcados
por alguns detalhes de encenações diferentes, seus filmes anteriores apresentam
semelhanças significativas na concepção e condução de suas narrativas. Essa
sintonia existencial/artística se mostra cristalina na obra em questão. O que
se vê na tela é um cinema descarnado, depurado de excessos supérfluos e que se
concentra em nuances inusitadas e em um contundente sensorialismo audiovisual.
A trama e a encenação podem sugerir uma certa aridez emocional e estética, mas
aos poucos o filme vai se mostrando estranhamente sedutor no rigor de seus
planos-sequência, no contraste da sutileza da interpretação de Silvia Lourenço
com o despojamento da composição dramática de Paulo André, nas longas tomadas minimalistas
pelos cenários urbanos de Belo Horizonte. A partir desses preceitos formais, a
obra vai se constituindo tanto como um estranho e intimista conto sentimental
como para um perturbador e opressivo retrato da solidão na sociedade contemporânea.
segunda-feira, agosto 11, 2014
Guardiões da Galáxia, de James Gunn ****
Dentro da estratégia do estúdio da Marvel, “Guardiões da Galáxia”
(2014) representam um novo e ousado passo. Ao invés dos heróis clássicos
criados por Stan Lee na década de 60, entram em cena personagens obscuros
criados na década seguinte por outros autores (Steve Gerber, Jim Starlin, Bill
Mantlo). Tais escritores e artistas estavam mais em sintonia com um espírito
hedonista e libertário, uma espécie de rescaldo do ideário do período flower
power. A maioria de suas criação se enquadrava em uma encruzilhada que
combinava sátira, misticismo e ficção científica. O cineasta James Gunn,
egresso da escola de escatologia trash dos estúdios de Lloyd Kaufmann e a
diretor de bobagens divertidas como “Seres rastejantes” (2005), entendeu
direitinho esse contexto histórico e existencial e acabou concebendo uma produção
extraordinária na sua combinação de aventura desenfreada e comicidade sagaz.
Tudo aqui parece na medida: personagens ultra-carismáticos, ação dirigida com
muita clareza e inspiração, roteiro sem enrolações e um senso de humor
efetivamente engraçado e irreverente (e não aquelas piadinhas metidas a besta
do último “Homem de Ferro”). Além disso, “Guardiões da Galáxia” faz a delícia
dos apreciadores mais dedicados da Marvel na caracterização fiel e repleta de
boas sacadas de personagens e situações emblemáticas do universo das histórias
cósmicas da editora, em que mesmos personagens secundários na trama como Thanos
e o Colecionador recebem caracterizações dramáticas marcantes.
sexta-feira, agosto 08, 2014
Grand Central, de Rebecca Zlotowski ***1/2
A diretora francesa Rebecca Zlowowski parece atraída por
dicotomias e extremos em “Grand Central” (2013). O filme se formata dentro de
um tradicional modelo de melodrama e se diferencia de demais produções do gênero
em alguns detalhes formais e temáticos. Apesar da sobriedade de sua atmosfera,
caracterizada na trilha sonora de discretas tintas solenes e no conjunto
fotografia/edição de talhe clássico, a narrativa vai ganhando no seu decorrer um
viés cada vez mais ultra-romântico ao retratar um triângulo amoroso entre
funcionários de uma usina nuclear, o que dá ao filme um tom mórbido. À medida
que o desejo e o amor do protagonista Gary (Tahar Rahim) por Karole (Léa Seydoux)
crescem, ele também vai se tornando mais descuidado em relação às suas
perigosas atividades dentro de um reator nuclear. Dessa forma, para ele, ficar
perto dela também é se aproximar da morte. Dentro dessa conjunção de amor e
morte, Zlotowski contrapõe de forma perturbadora cenários idílicos de relvas
verdejantes e lagos límpidos que circundam a usina com o asséptico e desolado interior
dessa, como se evocasse tanto o lirismo quanto o lado destrutivo de um
relacionamento amoroso. O belo final em aberto de “Grand Central” acentua ainda
mais esse caráter atribulado e desesperado do filme.
quinta-feira, agosto 07, 2014
Sem evidências, de Atom Egoyam ***1/2
O diretor canadense Atom Egoyam demonstra uma notável
engenhosidade narrativa na concepção de “Sem evidências” (2013). Na superfície,
o filme se enquadra no gênero suspense, focando na história, baseada em fatos
reais, do desaparecimento e assassinato de três crianças numa cidade
interiorana dos Estados Unidos. Egoyam se vale de sua habitual elegância formal
e sutileza temática para que a produção não se afunde nos clichês inerentes ao
gênero em questão – os lugares comuns estão todos lá, mas trabalhados com
depuração, estabelecendo uma atmosfera sombria e melancólica e fazendo com que
a produção se configure quase como um opressivo conto gótico. Nesse sentido, “Sem
evidências” aos poucos vai ser convertendo em algo muito mais profundo.
Evidencia-se um sofisticado e lúcido subtexto sobre o preconceito moral e a
intolerância religiosa que assolam boa parte da população norte-americana, com
a se constituindo assim como uma contundente metáfora sobre o avanço do
pensamento obscurantista na sociedade ocidental.
quarta-feira, agosto 06, 2014
A farra do circo, de Roberto Berliner e Pedro Bronz **1/2
Boa parte dos registros visuais de arquivo que compõem a
narrativa do documentário “A farra do circo” (2013) é composta por filmagens
provenientes de fitas de VHS, em tomadas que oscilam entre trechos de
reportagens e material cuja captação beira o amador. Por outro lado, os
diretores Roberto Berliner e Pedro Bronz dispensam a presença de um narrador
que com sua voz dê alguma ordem cronológica e didática para o filme. Assim, as
imagens são jogadas na tela, bastando a “explicação” dos depoimentos de época,
ou com o próprio audiovisual em si bastando para contextualizar o que se está
assistindo. No final das contas, as escolhas formais da produção acabam lhe
dando um certo caráter caótico e mambembe. Essa aparente esculhambação estética,
entretanto, acaba ganhando um sentido existencial para a história que se quer
contar no filme: a trajetória do Circo Voador, lendário espaço cultural da
cidade do Rio de Janeiro. Surgido no início dos anos 80, o Circo foi palco para
o surgimento de diversas manifestações artísticas que ansiavam por espaço para
se expandirem diante do marasmo repressivo provocado pela ditadura militar
(ainda que na época ela estivesse nos seus momentos finais), indo das
perfomances anárquicas e irreverentes do grupo teatral Astrubal Trouxe o
Trombone, passando pelos passos iniciais do rock brasileiro oitentista (Barão
Vermelho, Blitz, Paralamas do Sucesso) e chegando até em happenings de poesia e
dança com alguns dos mais expressivos poetas “malditos” da época. O filme por
vezes fica um tanto cansativo pela falta de uma ordem formal mais depurada, mas
também tem o seu encanto ao mostrar um período fascinante na história cultural
do Brasil em que ingenuidade, amadorismo e sensibilidade conviviam aos trancos
e barrancos diante de uma indústria de entretenimento ainda insipiente e bem
menos tomada por interesses corporativos, além de mostrar que figuras hoje bem
adaptadas ao mainstream já tiveram os seus dias de militância intensa e
selvagem na vanguarda e no underground.
terça-feira, agosto 05, 2014
Planeta dos macacos: O confronto, de Matt Reeves **1/2
“Planeta dos macacos: A origem” (2011) abria horizontes
promissores para que a franquia dos símios voltasse a se desenvolver de forma
interessante e com certa constância (se bem que sou daqueles que acha bem
divertida a versão concebida por Tim Burton em 2011). O filme de Rupert Wyatt
apresentava uma perspectiva contemporânea e renovada para a saga da ascensão
dos macacos como os novos donos do mundo, combinando roteiro eficiente,
personagens carismáticos e boas cenas de ação. Em “Planeta dos macacos: O
confronto” (2014) todas essas boas idéias e concepções, entretanto, acabam
caindo por terra diante de uma abordagem politicamente correta em demasia que
acaba sacrificando até o ritmo da narrativa. Há uma preocupação excessiva em
humanizar tanto os macacos como os próprios humanos!! O resultado é uma obra
que a cada 5 minutos tem alguma seqüência envolvendo alguma lição de vida ou um
personagem chorando e se lamentando. Ou seja, nada daqueles macacos durões que
desciam o cacete nos incautos humanos como ocorria nos filmes clássicos da série,
e dá-lhe macacos em dúvidas existenciais entre conviver na boa com humanos sacanas
e preconceituosos ou partir para a guerra contra eles. Sintetizando: é como se
tivéssemos a versão emo de “O planeta dos macacos”....
segunda-feira, agosto 04, 2014
Transformers 4: A era da extinção, de Michael Bay **
Quando o primeiro filme da franquia “Transformers” foi
lançado em 2007, despertou um forte entusiasmo com a forma com que o diretor
Michael Bay conduzia as coisas. A produção tinha aquele pique de aventura
alucinada dos anos 80 (o nome de Steven Spielberg nos créditos não era
gratuito) aliada a efeitos especiais bastantes funcionais para a porradaria
geral entre autobots e decepticons. Mesmo Bay, um diretor dado a exageros de câmeras
tremendo sem parar e edição estilo vídeo-clip, se apresentava mais contido,
respeitando ainda a mitologia dos personagens que havia se estabelecido no
universo das animações televisivas. Assim, era lógico que se criasse uma boa
expectativa para as partes seguintes da franquia. Ocorre que nenhuma das
continuações se apresentou perto do nível alto do primeiro filme. “Transformers
4: A era da extinção” (2014) padece dos principais problemas que já afetavam as
continuações anteriores. Bay opta por uma narrativa sombria, como se quisesse
dar um ar de seriedade legitimadora para o escapismo descerebrado típico da série,
mas a realidade é que essa pretensa abordagem mais “pessimista” cai em excessos
de soluções formais e temáticas formulaicas. Ou seja: nos dois terços iniciais
do filme se vê autobots escondidos e em escasso número sendo perseguidos e
detonados por seus inimigos, para que no terço final venha a sua redenção a
base de pancadaria e lições edificantes de humanismo. As seqüências de ação por
vezes são divertidas, mas não trazem aquela clareza gráfica do primeiro filme –
tudo é meio embolado e apelando para cenas climáticas de forma constante. Na
verdade, os transformers aparecem bem menos que nas produções anteriores,
dando-se uma atenção exagerada para os draminhas insípidos dos personagens
humanos. E talvez esse seja o problema central de “A era da extinção”: uma
falta de foco, em que em um cansativo filme com quase três horas de duração o
espectador fica com a sensação de que personagens e situações foram mal
caracterizadas.
sexta-feira, agosto 01, 2014
O prazer, de Max Ophüls ****
Dentro da relação literatura e cinema, o cineasta austríaco
Max Ophül atinge um patamar diferenciado em “O prazer” (2013). Adaptando três
contos do escritor francês Guy de Maupassant, o diretor encontra soluções
formais extraordinárias para transformar o texto original numa narrativa
cinematográfica bastante autoral. Para tanto, ele traz um narrador que faz as
vezes do próprio Maupasssant, contando com um tom sóbrio e levemente impessoal
pequenas fábulas morais relacionadas ao prazer, preservando as minúcias da bela
prosa do escritor. Ophüls, entretanto, não se limita a fazer uma “literatura
filmada”. Na verdade, o que dita o ritmo da sua narrativa é o seu requintado
trabalho de direção de fotografia, em que a câmera flutua soberbamente em
planos seqüência que são muito mais reveladores da complexidade e ironia das
situações e da profundidade psicológica dos personagens do que o próprio texto
do narrador. Esse barroquismo visual característico de Ophüls combinado ao
misto de leveza, melancolia e ironia das histórias concebidas por Maupassant
resultam numa obra de estranho encanto estético e textual, que parecem
pertencer a uma outra dimensão existencial e não apenas ligada a um simples
realismo.
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