segunda-feira, outubro 27, 2014

Uma família em Tóquio, de Yoji Yamada ***

Na comparação com “Era uma vez em Tóquio” (1953), obra da qual é uma refilmagem, “Uma família em Tóquio” (2013) claramente sai perdendo. O diretor Yoji Yamada não apresenta o mesmo rigor estético característico de Yasugiro Ozu – ao invés da exatidão daqueles expressivos planos-sequência estáticos do filme original, predomina um estilo mais tradicional de narrativa. Além disso, também não há aquela desconcertante abordagem emocional mais contida inerente ao estilo de Ozu, com Yamada se vinculado a um formato clássico de melodrama, ainda que reciclado para a época atual. Apesar da desvantagem na comparação, essa produção mais recente está longe de ser um mau filme (até porque tentar recriar aquele que é considerado por muitos o melhor trabalho da cinematografia japonesa é uma tarefa bem ingrata). É inegável a capacidade de “Uma família em Tóquio” envolver e comover o espectador com o humanismo que flui naturalmente tanto da trama de viés realista quanto do sutil formalismo impresso por Yamada. Os dilemas e conflitos que predominavam em “Era uma em Tóquio” são adaptados com sensibilidade para o mundo contemporâneo e ressaltam ainda mais a perenidade da obra-prima de Ozu.

sexta-feira, outubro 24, 2014

Relatos selvagens, de Damián Szifron ***


Dentro do panorama atual do cinema argentino, repleto de melodramas e comédias de estrutura formal e temática convencional que remetem a quadradas produções televisivas, um filme como “Relatos selvagens” (2014) acaba sendo uma grata surpresa. As referências estéticas que pontuam a narrativa da produção dirigida por Damián Szifron fogem do previsível (ainda que o estilo do cineasta tenha um certo caráter asséptico na sua concepção visual): atmosferas tensas e sórdidas e explosões de violência que lembram o cinema italiano de horror e suspense dos anos 60 e 70 (por vezes, por exemplo, dá a impressão que estamos ouvindo algum tema do Goblin, banda que teve parceria fértil com Dario Argento), o ritmo narrativo cartunesco do melhor da cinematografia de Alex de La Inglesia, o senso de humor bagaceiro e ácido das comédias de Pedro Almodóvar – nesse último caso, não é surpresa que a própria El Deseo tenha produzido “Relatos selvagens”. Tais influências servem como moldura adequada para os contos de violência e vingança que compõem o filme. A condução da narrativa é eficiente e mantém com consistência o clima de perversa diversão para o público, com o roteiro trazendo também um intrigante subtexto, em que a profusão de brutalidade e humor negro também ilustram uma espécie de radiografia existencial da classe média ocidental perante aqueles que seria seu supostos algozes (Estados, classes baixas, criminalidade e seus próprios pares de classe). Nesse sentido, “Relatos selvagens” se revela uma obra emblemática no sentido de captar o espírito de uma época.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Terror 2000, de Christoph Schlingensief *


A proposta artística do diretor alemão Christoph Schlingensief para “Terror 2000” (1994) é interessante numa primeira impressão, juntando a estranha ironia política-comportamental de Fassbinder (a presença de Udo Kier não é gratuita), a fuleiragem demente das produções da Troma e o gosto por figuras e situações esquisitas dos melhores filmes de John Waters. O resultado final dessa equação, entretanto, é bem indigesta e desinteressante. Como narrativa, a obra de Schlingensief naufraga pela ausência de fluência e por uma tosquice formal enjoada. Se nas primeiras cenas os exageros e escatologias da trama até conseguem por vezes serem engraçados, com o passar do tempo se tornam apenas cansativos e beirando o insuportável. Dá para sentir em alguns momentos que por trás de toda as loucuras e excessos que permeiam o filme há um sentido político e existencial a retratar uma espécie de condição da “alma alemã”. Mas essa pretensão de subtexto acaba se perdendo diante da frouxidão da direção de Schlingensief.

quarta-feira, outubro 22, 2014

Viva a liberdade, de Roberto Andò ***


O diretor italiano Roberto Andò formata “Viva a liberdade” (2013) a partir de uma estrutura narrativa convencional de uma comédia de erros. A trama focaliza as confusões e enganos provocados por dois gêmeos, um senador em crise existencial e um professor recém saído de uma clínica psiquátrica, que por condições aparentemente involuntárias do destino acabam trocando de lugar. Num primeiro momento, o conflito do roteiro navega por um clichê básico – as diferenças de temperamento e concepções de vida dos irmãos seriam o mote principal da graça e do sentido do filme. Ocorre, entretanto, que com o desenrolar da trama esse conceito vai ficando cada vez mais difuso. Elementos do passado dos protagonistas vem à tona sutilmente e revelam que a força da relação dos dois talvez esteja nas semelhanças filosóficas e culturais que os unem. Esse tom obscuro da narrativa torna a obra cada vez mais intrigante e acaba evidenciando um notável caráter simbólico do filme, em que a complexidade do relacionamento entre os irmãos e também com aqueles que os rodeiam refletem a própria condição singular da política e da sociedade italianas. Dessa forma, não é por acaso que em determinado momento da produção aparece um vídeo do mestre Fellini desancando autoridades e políticas: os delírios fellinianos pairam como discreta influência dentro das curiosas soluções estéticas e temáticas estabelecidas por Andò em “Viva a liberdade”.

terça-feira, outubro 21, 2014

Trash - A esperança vem do lixo, de Stephen Daldry *


O diretor britânico Stephen Daldry até que causou uma boa impressão com “Billy Elliot” (1999) e “As horas” (2001), seus filmes iniciais. Ainda que bastante convencionais em termos formais, traziam vigor na encenação e considerável consistência dramática. Já nas duas produções que sucederam, os medíocres “O leitor” (2008) e “Tão forte e tão perto” (2011), as narrativas de ritmo arrastado se desenvolviam como novelões de excessos sentimentais. E agora em “Trash – A esperança vem do lixo” (2014) dá para dizer que Daldry chega a um novo patamar na sua carreira – ele conseguiu fazer um filme francamente ruim como poucos. A obra parece seguir a partir de uma indigesta mistura dirigida com uma mão pesada e burocrata – uma combinação nada sutil e sem inspiração de “Quem quer ser milionário?” (2008) e “Cidade de Deus” (2002) que se estrutura num roteiro derivativo no gênero “caça ao tesouro” (lembra a horrorosa franquia “A lenda do tesouro perdido”). O negócio se torna ainda pior quando se evidencia uma trama de visão preconceituosa e estereotipada da realidade brasileira e atores nativos deixando aflorar a canastrice com toda a intensidade. No cômputo geral, de tão patético o filme até acaba se tornando engraçado!

segunda-feira, outubro 20, 2014

A doença do sono, de Ulrich Kölher ***1/2


A temática que se insinua sutilmente na trama de “A doença do sono” (2011) tem uma forte recorrência não só na história do cinema quanto na própria cultura ocidental: a estranha relação de atração e repulsa entre o homem e a natureza. Na obra em questão, a formatação proposta pelo diretor alemão Ulrich Köhler é rigorosa na concepção e execução – não há trilha sonora, o estilo de filmar é seco e naturalista, os diálogos são econômicos e carregados de um subtexto cortante, as interpretações e caracterizações do elenco variam de forma notável entre a contenção dramática e a emoção pungente. Tal abordagem estética do filme por vezes até sugere um certo distanciamento emocional. Mas isso é apenas uma engenhosa forma para que a produção não descambe para soluções fáceis sentimentais. Com o desenvolvimento da trama, a tensão dramática vai ficando sufocante. O retrato que se faz da natureza bruta da África pode por vezes deslumbrar pelo belo registro visual de cenários verdejantes e exóticos, mas também revela uma perspectiva de medo e opressão perante aquilo que é desconhecido. A atmosfera de mistério que se original dos dilemas existenciais do roteiro é a tônica principal na narrativa de “A doença do sono” e que lhe dá um mórbido fascínio de sombrio conto moral.

sexta-feira, outubro 17, 2014

O soro do mal, de Frank Henenlotter ****


Assim como David Cronenberg, quando esse enveredava para o gênero horror, o diretor norte-americano Frank Henenlotter em seus filmes de terror sempre buscou uma temática ligada ao corpo humano e suas pulsões de desejo e morte, ao invés de se ligar na temática tradicional nesse tipo de produções. Assim, a tônica dominante de sua filmografia foi a escatologia e estranhas aberrações. Ao contrário de Cronenberg, entretanto, a atmosfera do melhor da obra de Henenlotter é marcada por um humor um tanto escrachado e por doses de violências mais explícitas, combinação essa típica da época de ouro do horror oitentista. “O soro do mal” (1988) marca o auge de tais concepções artísticas particulares de Henenlotter. Tudo aquilo que já havia sido burilado no clássico “Basket Case” (1982) aflora com uma intensidade perturbadora – as condições modestas de recurso acabam se tornando um trunfo diante da criatividade do cineasta na utilização de seus recursos, fazendo com que o filme tenha um estranho e constante clima de decadência e sordidez. O impacto dos efeitos especiais quase artesanais, distantes do realismo estéril do digital, acentuam ainda a desconcertante sensação ambígua entre o riso e a tensão dramática que permeia a trama. Nessa levada, o roteiro se desenvolve como um pesadelo urbano, com a ação evoluindo em prédios decrépitos e bares bagaceiros e ressaltando o aspecto mitológico singular de Nova Iorque, em que a mesma cidade que atrai pelas suas luzes e glamour também seduz pela ambiência de decadência e hedonismo, mostrando-se o cenário perfeito para o conto moral sangrento engedrado por Henenlotter, que combina com equilíbrio contundente na mesma narrativa desejo, morte, senso de humor doentio e melancolia. Nesse sentido, “O soro do mal” talvez seja a melhor tradução audiovisual da música selvagem e perversa de nomes fundamentais do cenário roqueiro nova-iorquino como Suicide, James Chance e Dead Boys.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Bad biology, de Frank Henenlotter **


Quando dirigiu “Bad Biology” (2008), Frank Henenlotter estava há mais de 15 anos sem lançar um longa-metragem. Em uma sessão com debate realizada na edição do FANTASPOA de 2014, ele colocou que estava muito decepcionado com as restrições que teve em “Basket Case 3” (1991) e assim resolveu dar um tempo em se envolver em outra produção cinematográfica. Só se sentiu à vontade para voltar quando constatou que teria mais liberdade artística para dirigir um filme da forma que quisesse. Ora, uma situação como essa faz imaginar maravilhas de como seria um filme do cineasta que concebeu a obra-prima “O soro do mal” (1988) se ele estivesse livre para dar vazão à sua criatividade. Nesse sentido, “Bad biology” acaba sendo uma experiência frustrante. As idéias e premissas da trama são promissoras, na sua combinação de escatologia e senso de humor doentio. O problema do filme está na sua execução mesmo: os anos de inatividade de Henenlotter cobram um preço caro, dando para sentir a sua mão pesada na condução de uma narrativa que quase nunca decola.

quarta-feira, outubro 15, 2014

O estudante, de Santiago Mitre ***


É quase óbvio classificar “O estudante” (2011) na vertente do gênero cinema político. Por mais que as desventuras sentimentais do protagonista Roque (Esteban Lamothe) pontuem a trama, o foco principal está no aprofundamento do seu envolvimento com a política estudantil universitária, com direto a boa parte dos truques textuais que um roteiro como esse exige – traições de correligionários, acordos obscuros, desilusões ideológicas. Na verdade, a abordagem do diretor Santiago Mitre é um tanto superficial sobre a sua temática. Não há aqueles momentos de ironias sutis ou lances dramáticos desconcertantes que grassavam com naturalidade nas melhores produções de nomes como Costa-Gavras ou Elio Petri (para ficar dentro do terreno do cinema político). Mitre prefere não arriscar e se contenta no terreno seguro de uma estrutura narrativa de “thriller”. É de se convir, entretanto, que faz isso com competência. “O estudante” é uma obra capaz de prender a atenção do espectador e criar alguma efetiva empatia com os seus personagens. Há ainda uma certa secura emocional pairando na obra, o que a voz de um narrador em terceira pessoa que por vezes irrompe ajuda a acentuar mais, dando ao filme uma maior contundência. A bela trilha sonora, misto de rock climático com percussões latinas, também é elemento fundamental na construção de uma tensão dramática diferenciada.

terça-feira, outubro 14, 2014

Garota exemplar, de David Fincher ****


Pode parecer que se esteja forçando a barra, mas dá para se ter a impressão de que David Fincher completou uma espécie de “trilogia do suspense” com “Garota exemplar” (2014). Em “Seven” (1995), o cineasta definiu alguns preceitos que se tornaram, para o bem e para o mal, paradigmáticos para o que se fez no gênero nos anos posteriores (a franquia “Jogos mortais” talvez seja o exemplo mais evidente de tal influência). Já na década seguinte, Fincher lançou o extraordinário, “Zodíaco” (2007), obra de abordagem sóbria e mais realista que parecia renegar as “regras” formais e temáticas que o próprio diretor havia sugerido em “Seven”. Agora em “Garota exemplar” ele parte para um outro estágio – os cânones do gênero representam apenas o ponto de partida para um filme cuja verdadeira força está na notável simbologia que sua trama evoca. Nesse sentido, procurar lógica e verossimilhança rigorosas no desenvolvimento do roteiro seria um reducionismo inútil. Fincher se vale do exagero e de um tom operístico para compor um distorcido conto moral que ironiza sem piedade a vacuidade moral e existencial da sociedade ocidental contemporânea. A impressão que se tem é que o diretor usou uma estrutura dramática semelhante àquelas de antigos seriados televisivos na linha dramalhão como “Dallas” e “Dinastia” associada a sua habitual e apurada estética, sendo que o resultado disso é uma obra de atmosfera sombria e algo alucinada, como se fosse um pesadelo “kitsch”. Aliás, mesmo a referida estética de Fincher acaba sendo pervertida por um misto de barroquismo e brutalidade que faz lembrar o Dario Argento dos melhores tempos. A sequência, por exemplo, em que Amy (Rosamund Pike) assassina um antigo namorado (Neil Patrick Harris) é um primor sensorial na sua combinação de grandiosidade formal e mau gosto. Nesse sentido, em que o exagero e o caricatural são fundamentais na composição dramática do filme, mesmo o histrionismo de Rosamund Pike e o ar inexpressivo de Ben Affleck ganham um sentido desconcertante e coerente dentro do espírito sarcástico e bufão de “Garota exemplar”.

segunda-feira, outubro 13, 2014

Hard Soil: As raízes da música americana, de M.A. Littler ****


Assim como em outras obras do diretor alemão M.A. Littler, os indivíduos que aparecem ao longo do documentário “Hard Soil: As raízes da música americana” (2014) são outsiders que aparentam estar fora do tempo e do espaço. A narrativa do filme se desenvolve em dois festivais de música folk, um nos Estados Unidos e outro na Europa, com a sua trama se concentrando em viscerais números musicais e em longos depoimentos em que os artistas filosofam e discorrem sobre suas vidas e culturas. Na maioria das vezes, são pessoas com um pé na marginalidade: estanhos caipiras, professores românticos, freaks alucinados e até mesmo ex-presidiários. Nesse estranho mosaico de tipos esquisitões e rústicas canções, forma-se uma visão bastante particular de uma contracultura que teima em resistir em um mundo em que a cultura ainda é fortemente acossada por modas e interesses corporativos. As bandas e artistas-solo que se apresentam nos festivais em questão não vendem milhares de discos, não estão entre os mais acessados nos youtubes da vida e nem são celebridades assépticas – são homens e mulheres em busca de uma maneira livre de expressar suas dores e alegrias. A musicalidade crua deles e uma temática nebulosa nas letras, onde o sacro e o profano convivem de forma perturbadora na mesma melodia, podem assustar a ouvidos incautos, mas também transmitem um efeito sensorial devastador. Littler demonstra notável sensibilidade na forma com que “Hard Soil” abarca esse universo: ao invés do didatismo distanciado, prevalece uma poética estética e que valoriza muito mais o sentimento do que o simples esclarecimento histórico do que está acontecendo em cena.

sexta-feira, outubro 10, 2014

Annabelle, de John R. Leonetti ***


Se o subtexto de “O protetor” (2014) trazia uma leitura escancarada do medo norte-americano da atual ascensão econômica e política na Rússia, em “Annabelle” (2014) também fica evidente na entrelinhas de seu roteiro uma nostalgia conservadora dos valores morais do velho “american way of life”. A trama do filme, situada na segunda metade da década de 60, chega a ser didática na sua concepção simbólica: o casal “bonzinho” é formado por uma adorável e loira dona de casa e um bem apessoado médico em início de carreira, sendo que passam a serem acossados por forças do mal cultuados por caricatos hippies satânicos. Ou seja, aquilo que era considerado uma sincera manifestação sócio-cultural por uma sociedade mais justa e libertária hoje em dia passa a ser uma influência maléfica para os nossos jovens... O diretor John R. Leonetti não se propõe a grandes ousadias na construção de sua narrativa, abusando de todos os maniqueísmos e truques baratos de sustos possíveis, ainda que guarde a sutiliza necessária para os momentos de tensão. E por mais óbvio que seja no seu formalismo e reacionário na sua visão temática, “Annabelle” consegue algo raro para os filmes de horror contemporâneos: em vários momentos consegue ser efetivamente assustador. Dá para dizer que em suas resoluções finais a produção adota algumas soluções fáceis de roteiro, mas também é inegável que há bons achados visuais (a caracterização de época da direção de arte é bastante eficiente na contraposição que faz entre o visual limpinho de subúrbios modorrentos e a sujeira sanguinolenta de quando a violência desponta) e uma atmosfera sombria que por vezes resvala no perturbador.

quinta-feira, outubro 09, 2014

Os Boxtrolls, de Graham Annable e Anthony Stacchi ***1/2


Ao contrário das animações blockbusters originárias de estúdios como Disney, Pixar e Dreamworks, “Os Boxtrolls” (2014) não é o tipo de lançamento no gênero que vai ser um fenômeno de bilheteria. Ainda que destinada a princípio ao público infantil, sua atmosfera sombria e sua caracterização gráfica mais “sujona” e estilizada, que por vezes evoca uma ambientação de pesadelo, fará com que o filme se enquadre naquele nicho de obras mais cultuadas por adultos, na linha de “Coraline e o mundo secreto” (2009) e “ParaNorman” (2012) – não por acaso, lançados pela mesma produtora de “Os Boxtrolls”. É claro que está lá o típico tom fabular moral e crianças e adolescentes podem curtir na boa o filme, pois boa parte dos personagens, inclusive vilões, é de caracterização cativante e as cenas de aventura são empolgantes no seu frenesi de ação frenética e moderada violência. Mas é no seu subtexto que tal animação se sobressai ainda mais, tanto no caráter simbólico da trama, que alude de forma até ácida a questões espinhosas como preconceito e desigualdades sociais, como na construção psicológica de alguns personagens, marcada por uma certa perversidade irônica e desconcertante.

quarta-feira, outubro 08, 2014

Sem pena, de Eugênio Puppo ***1/2


Uma das cenas iniciais de “Sem pena” (2014) é exemplar síntese da contundente concepção formal-temática do documentário em questão: num plano-sequência, a câmera retrata infindáveis corredores de um arquivo judiciário abarrotado de milhares (ou milhões?) de autos processuais, tudo ao som de um tema instrumental opressivo de John Cage. Em tais imagens, o diretor Eugênio Puppo já deixa claro que sua visão sobre o aparato estatal legal/repressivo não é das mais generosas. Mas o discurso afiado do filme não é apenas mais uma variação da linha denúncia que grassa tanto no cinema quanto na televisão nacional. O que diferencia a obra de Puppo são opções estéticas bastante criativas que acentuam ainda mais o impacto sensorial do seu complexo conteúdo. Quando a produção se foca para os depoimentos de várias esferas envolvidas no processo punitivo (polícia, apenado, juristas, parentes), são dispensados os enquadramentos diretos nos entrevistados – ficam somente as vozes, ilustradas por tomadas envolvendo o cotidiano das prisões ou de cenários de instituições (tribunais, prédios de faculdades de direito) que seriam responsáveis por uma justiça que na realidade se revela cada vez mais distorcida. Em outros momentos, Puppo apenas faz registros visuais que acentuam a melancolia e a desesperança de uma problemática que parece não ter solução, sensações essas que ganham uma conotação ainda mais sinistra pelas já aludidas músicas que beiram a dissonância de John Cage. A partir dessa narrativa singular, “Sem pena” consegue se expandir para além daquele tema que seria a princípio o seu mote principal: ao evidenciar a falência e a inutilidade de um sistema legal que não dá conta de apresentar soluções minimamente dignas para dilemas fáticos que deveria resolver, o filme quebra noções equivocadas que o senso comum de mídia, políticos e “opinião pública” tanto gostam de levantar e conclui que tudo isso acaba sendo o sintoma de uma sociedade tomada por profundas desigualdades sociais e hipocrisias diversas.

terça-feira, outubro 07, 2014

Amar, beber e cantar, de Alain Resnais ***


Mesmo estando distante do melhor que Alain Resnais já dirigiu, “Amar, beber e cantar” (2013) acaba sendo um emblemático epitáfio a ilustrar as particulares concepções artísticas do grande cineasta francês recentemente falecido. Estão lá alguns dos mais expressivos preceitos criativos que Alain burilou e aperfeiçou ao longo de sua expressiva cinematografia: as engenhosas tramas falsamente superficiais, o choque entre as linguagens naturalista e estilizada, a intersecção com os elementos de linguagens de outras mídias (teatro, literatura, quadrinhos). Essa obra derradeira pode não apresentar o mesmo vigor narrativo de outras produções de Resnais (nesse sentido, seu penúltimo trabalho, “Vocês ainda não viram nada”, seria até mais representativo), mas ainda é capaz de impressionar em alguns momentos, principalmente pela forma com que ele consegue equilibrar uma certa economia de recursos (poucos atores em cena e cenários de visual simplificado evocam uma espécie de grande ensaio em aberto) com uma atmosfera de fábula moral. Nesse sentido, colabora muito um elenco com interpretações bastante inspiradas, que variam de forma admirável entre o exagero teatral e a sutileza dramática. Há também uma simbologia intrigante dentro da trama que gira em torno de desenganos sentimentais envolvendo a figura de um personagem que é sempre mencionado pelos outros e que nunca aparece em cena, o que se acentua na conclusão do filme, onde há o funeral do tal personagem: seria ele uma figura ilustrativa da própria persona artística de Resnais? Esse é um questionamento que provavelmente nunca terá uma resposta e não deixa de ser mais um mistério fascinante a envolver o estranho universo de uma das grandes forças criativas da história do cinema.

segunda-feira, outubro 06, 2014

OcidenteS, de Carlos Gerbase, Fabiano de Souza, Bruno Polidoro e João Gabriel de Queiroz ***




Feito originalmente para a televisão, “OcidenteS” (2014) é um projeto de quatro episódios que mostram histórias que se passam em décadas diferentes sempre tendo como cenário o Bar Ocidente, mítico reduto da boemia alternativa porto-alegrense. Cada um dos pequenos filmes tem uma trama auto-contida, ou seja, podem ser vistos separadamente um do outro sem que isso traga prejuízo de entendimento. Vendo todos juntos em sequência, entretanto, em ordem cronológica de década, como foi exibido em algumas sessões no Cinebancários, a obra no seu todo adquire uma visão ainda mais rica e impactante. O primeiro curta, “As bateristas”, de Carlos Gerbase, tem a sua trama situada em algum momento dos anos 80 e é o que tem ritmo narrativo mais irregular. Gerbase se propõe a realizar uma espécie de revitalização das comédias românticas jovens na linha John Hughes envenenada com punk rock, lesbianismo e drogas. Os diálogos são truncados, as interpretações exalam amadorismo e a tosquice formal predomina, mas “As bateristas” tem muito mais vitalidade que qualquer coisa que seu diretor lançou nos últimos anos. Em “A última festa do século”, episódio que se desenvolve na década de 90, Fabiano de Souza atinge o ponto alto artístico de “OcidenteS”, num precioso conto nostálgico que combina onirismo, diálogos lapidares, poesia, clássicos temas psicodélicos de Júpiter Maçã e erotismo (pouquíssimas vezes uma mulher foi retratada no cinema gaúcho de forma tão languidamente sensual quanto Miriã Possani nesse curta). Em termos de temática e atmosfera, “Cinco cigarros e um beijo” e “Aurora”, episódios dirigidos por Bruno Polidoro (os anos 2000) e João Gabriel de Queiroz (a presente década), se aproximam bastante, retratando indivíduos angustiados e de sexualidade difusa que se arrastam em noites regadas a hedonismo, álcool e vazio existencial. O mérito dos diretores nesses curtas está na elegância narrativa e na sobriedade emocional com que conduzem suas respectivas tramas, pontuadas por cenas que carregam conotações simbólicas intrigantes.

Olhando em conjunto, os episódios de “OcidenteS” se relacionam de forma sutil e contundente. A estética nas coxas de Gerbase evoca um espírito misto de ingenuidade e malícia típico dos anos 80 e que acaba se tornando contrastante com o lirismo do trecho noventista de Fabiano de Souza e com o tom desiludido dos demais episódios. Como obra fechada, “OcidenteS” se mostra um contundente retrato existencial de diferentes gerações de um tipo específico de juventude (ou de “jovens adultos” como já diria os Walverdes em uma de suas canções...), aquela de classe média de valores pretensamente cosmopolitas, mas que vive numa sociedade de costumes provincianos. Nesse choque entre intenções e realidade, a obra não se furta de evidenciar com lucidez e sensibilidade os dilemas, contradições, desejos e frustrações da juventude das últimas décadas.

sexta-feira, outubro 03, 2014

Isolados, de Tomas Portella *1/2


O lançamento de um filme brasileiro de gênero, coisa rara nos dias de hoje, não deixa de ser um fato a ser louvado. Além disso, pode-se dizer que “Isolados” (2013) apresenta referências promissoras em sua trama: um casal isolado numa casa no meio do mato e acossado por forças obscuras (“A morte do demônio”), uma dupla de irmãos caipiras e psicopatas que aterrorizam nativos e turistas de uma cidade do interior (“O massacre da serra elétrica”) e alguns elementos dramáticos (delírios, necrofilia, sexualidade reprimida) que remetem a alguns contos de Edgar Allan Poe. Tudo isso, entretanto, não salva o filme da irrelevância, fruto da indecisão criativa do diretor Tomas Portela entre embarcar no puro horror violento e tenso ou buscar uma abordagem séria e simbolista ao se vincular a uma linha de suspense psicológico. E é nessa última perspectiva que a produção naufraga, pois as menções que se faz ao passado obscuro dos principais personagens acabam soando gratuitas e sem sentido nas resoluções dos principais conflitos e dilemas do roteiro. Além disso, a encenação concebida por Portela é desajeitada e confusa, o que se agrava ainda com as interpretações afetadas e pouco convictas do elenco (aliás, afinal, para que serve a participação de José Wilker no filme?).

quinta-feira, outubro 02, 2014

O protetor, de Antoine Fuqua **1/2


Filmes como “O atirador” (2007), “Atraídos pelo crime” (2009) e “Invasão a Casa Branca” (2013) atestam a boa mão do diretor Antoine Fuqua para filmes de ação. A retomada da parceria com Denzel Washington, celebrizada no excelente “Dia de treinamento” (2001), aumentou ainda mais a expectativa para “O protetor” (2014). A meia-hora inicial do filme até dá uma boa empolgada – há um tom de mistério intrigante em torno da figura do protagonista Robert McCall (Washington) e a seqüência em que ele massacra cinco bandidos da máfia russa é muito bem coreografada na sua profusão de brutalidade absurda. E quando entra em cena o sinistro Teddy (Marton Csokas) parece que as coisas vão melhorar ainda mais (a fusão de imagens que se faz entre o corpo tatuado do vilão com uma tomada noturna urbana é extraordinária). Com o desenrolar da trama, entretanto, a produção acaba se esvaziando em termos dramáticos. As cenas de ação são competentes na sua execução, mas a caracterização do personagem principal quase como um super-herói infalível retira a sensação de algum perigo efetivamente perturbador, requisito indispensável para que haja alguma tensão na obra. Assim, os principais dilemas do roteiro se resolvem com incômoda facilidade, sem que em nenhum momento se possa ter a sensação de que o protagonista fique em alguma situação limite.

quarta-feira, outubro 01, 2014

O batismo, de Marcin Wrona ***1/2


O diretor polonês Marcin Wrona consegue um feito notável em “O batismo” (2010). A partir de uma estrutura narrativa simples no gênero policial, ele constrói um pequeno conto trágico e brutal cuja atmosfera sombria alude a inevitabilidade do destino. A trama não apresenta concessões dramáticas ao retratar o calvário de um delator que se vê chantageado e sentenciado de morte pelos seus antigos companheiros. Wrona estabelece ambientações contrastante e perturbadoras – quando o protagonista Michal (Wojciech Zielinski) está em casa com a família, há uma impressão de beatitude e pureza, mas quanto mais ele vai se enredando no seu pesadelo pessoal e também surgem à tona seus algozes essa sensação de algo imaculado vai se pervertendo num cenário de violência e sangue. O amigo Janek (Tomasz Schuchardt) talvez seja o personagem que melhor sintetize o espírito do filme – angustiado por ajudar, cada vez mais se sente impotente diante da inexorabilidade dos fatos que se desenrolam na tela. As seqüências finais do filme se relacionam ao batismo do título e fazem lembrar as cenas finais marcantes de “O poderoso chefão” (1972). E assim como na clássica obra de Francis Ford Coppola, mostra que o ato religioso em questão se configura como um ritual vazio e hipócrita diante da realidade da crueldade humana.