Tudo aquilo que parece aleatório ou casual em “Os pássaros
de Massachusetts” (2019) na realidade revela um domínio rigoroso e notável da
narrativa cinematográfica por parte do diretor Bruno de Oliveira. Os fatos da
trama se sucedem de maneira fluida, beirando o espontâneo, mas o que dá
realmente essa impressão de leveza é a encenação precisa engendrada pelo
cineasta. O tratamento estético-existencial do filme evoca tanto clássicos de
Eric Rohmer quanto a sofisticação narrativa disfarçada de amadorismo do coreano
Hong Sang-soo, ou seja, a obra de Oliveira remete a um desconcertante híbrido
de modernidade e nostalgia. Dentro dessa curiosa formatação, é de se destacar o
registro audiovisual de uma Porto Alegre melancólica e crepuscular, mas que por
vezes também soa como um insólito e algo encanador universo paralelo (em
contraste, por exemplo, com o retrato depressivo e assustador da capital rio-grandense
em “Tinta bruta”). Num contexto geral, uma das mais curiosas revelações do
cinema gaúcho dos últimos anos.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
segunda-feira, dezembro 30, 2019
sexta-feira, dezembro 27, 2019
Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ****
Excessos tomam conta de “Bacurau” (2019). Mas são aqueles
excessos típicos de quem assistiu muito filme bom na vida e quer colocar o
máximo disso num filme só (além de deixar evidente algumas convicções
existenciais/políticas). O grande mérito dos diretores Kleber Mendonça Filho e
Juliano Dornelles é justamente fazer com que referências e citações não se
amontoem como se fossem uma mera colcha de retalhos estética, realizando uma
obra que tem uma unidade artística coerente e impressionante. O lírico
sensorialismo de algumas sequências e o misto desconcertante de poesia e prosa
de determinados diálogos remetem ao melhor do que o Cinema Novo e o Cinema
Marginal brasileiros produziram em seus respectivos auges, assim como a
encenação da violência tem algo do barroquismo brutal de mestres do faroeste
como Peckimpah e Leone e mesmo do horror operístico de Fulci e Argento. E no
meio desses arroubos formais e narrativos, preserva-se um senso humanista
lúcido e comovente. Nesse conjunto artístico, cristaliza-se um trabalho
emblemático para o cinema brasileiro, tanto em seus antológicos detalhes
cênicos como na capacidade de captar um perturbador zeitgeist.
sexta-feira, setembro 13, 2019
No coração do mundo, de Gabriel e Maurílio Martins ***1/2
Em um primeiro momento, a narrativa de “No coração do mundo”
(2019) parece se configurar como uma sóbria junção de elementos de drama
intimista e crônica social, com uma trama que mostra as insatisfações
econômicas e existenciais de um grupo de personagens na periferia da cidade
mineira de Contagem (o mesmo cenário, aliás, dos memoráveis “A vizinhança do
tigre” e “Temporada”). O roteiro é bem delineado e aprofunda de maneira madura
os desejos e dilemas de seus personagens, impressão essa que se acentua pela
encenação que investe em um naturalismo de notável desenvoltura e que por vezes
evoca trejeitos documentais. Nesse sentido, é de se valorizar também um ótimo
trabalho de direção de elenco que valoriza tanto a espontaneidade amadora de
alguns atores quanto a precisão dramática de uma artista poderosa como Grace
Passô. De maneira sutil e coerente, entretanto, a narrativa vai se convertendo
ainda em um tenso thriller policial. O tradicional formato “planejamento de um
roubo perfeito” se insere com naturalidade na ambientação da trama e vai dando
para o filme uma atmosfera cada vez mais sufocante. De certa forma, é como se a
linhagem formal-temática do clássico cinema noir norte-americano e as trucagens
estéticas de Michael Mann se incorporassem de maneira mais que convincente
nesse contemporâneo cinema nacional de forte teor sócio-político. Essas
escolhas criativas, situada naquela zona limite entre a tradição e a
originalidade, se cristalizam de forma vigorosa no ato final de “No coração do
mundo”, em uma bela síntese entre ação cinematográfica, tensão dramática e
melancolia.
sábado, setembro 07, 2019
Vermelho sol, de Benjamin Naishtat ***1/2
O cineasta argentino vem construindo sua filmografia a
partir de um olhar bastante singular dentro do gênero do cinema político. Se em
“Bem perto de Buenos Aires” (2014) a narrativa partia de uma abordagem
intimista para chegar em uma ácida visão sobre os conflitos de classe e em “O
movimento” (2015) a aventura de época se convertia com sutileza demolidora no
retrato de um atavismo da opressão social, na obra mais recente do diretor, “Vermelho
sol” (2018), a estruturação de suspense traz em seu âmago uma recriação
assustadora e impiedosa da Argentina de meados dos anos 70 prestes a ser tomada
de vez por uma ditadura militar. A concepção formal/existencial de Naishtat
para o seu filme é cirúrgica – a narrativa se constrói aos poucos de maneira
sóbria, sem apelações. Nesse sentido, encenação e direção de fotografia compõem
uma obra de atmosfera sufocante, em que a impressão perturbadora de uma força
repressora a pairar sobre as relações humanas é constante. O roteiro de “Vermelho
sol” também se distancia dos meros maniqueísmos fáceis, ao evidenciar que as
ações totalitárias não partem simplesmente “de cima para baixo”, mas também são
corroboradas por uma classe média hipócrita, obscurantista e arrivista, o que
pode ser atestada na sinistra sequência de abertura do filme. Aliás, não muito
diferente do que acontece na sociedade brasileira atual governada pela besta
fera.
quinta-feira, setembro 05, 2019
O homem que matou Don Quixote, de Terry Gillian **
Todas as histórias e mitos que
envolveram a conturbada realização da particular visão do diretor Terry Gillian
sobre o personagem mais célebre da literatura ocidental estiveram por décadas
nos imaginários não só dos admiradores do cineasta em questão como dos
cinéfilos em geral – algumas delas, inclusive, acaram rendendo o extraordinário
documentário “Lost in La Mancha” (2002). Todos pensavam nas várias
possibilidades criativas que a recriação da figura de Don Quixote poderia
render nas mãos do artista que concebeu obras delirantes e antológicas como “Brazil
– O filme” (1985), “O barão de Munchausen” (1988), “Os doze macacos” (1995) e “Medo
e delírio em Las Vegas” (1998). Pois agora que finalmente a produção tão
desejada por Gilian e um considerável público se concretizou, a pergunta que
fica é: valeu a pena tanta espera e alarde? Diante do resultado final de “O
homem que matou Don Quixote” (2018), a resposta é um frustrante não. Não chega
a ser exatamente um filme ruim – é até pior que isso, pois a impressão
constante durante boa parte da narrativa é de um trabalho anódino, previsível,
sem graça. Toda aquela lógica estética-temática marcada por uma ligação
insólita entre o real e a fantasia que caracterizou boa parte do melhor da
filmografia de Gillian se sujeita e diminui a um barroquismo estéril e a uma
atmosfera de excessivo sentimentalismo. A impressão geral é a de releitura
equivocada do clássico de Cervantes por um viés desajeitado de realismo
fantástico típico de Garcia Marquez pela severa perspectiva anglo-saxã de
Gillian (aliás, nem parece que se trata de um ex-Monty Python). Ou seja,
Gillian realizou seu sonho, mas para boa parte da plateia é capaz que a lenda
de uma possível obra-prima que nunca se concretizou por infortúnios do destino seja
bem mais atraente.
segunda-feira, agosto 26, 2019
Abaixo a gravidade, de Edgar Navarro ***1/2
Talvez em tempos mais tranquilos e
menos brutalizados, um filme como “Abaixo a gravidade” (2019) poderia ser analisado
como uma obra a versar com melancolia e ironia, além de um viés surrealista,
sobre a velhice, em que a conexão com o filme mais celebrado de seu diretor, “Superoutro”
(1989), está justamente no contraponto em que este último representaria uma
explosiva manifestação estética e existencial enquanto que no longa mais
recente esse caráter de intensa anarquia artística foi filtrado por um olhar
mais sereno (ainda que igualmente desconcertante). Mas já que “Abaixo a
gravidade” foi lançado em meados de 2019, com o país dominado pelo designíos de
uma besta-fera e seus fervorosos admiradores/defensores, o trabalho de Navarro
ganho uma conotação ainda mais ampla e desafiadora. A trajetória do idoso Bené
(Everaldo Pontes) em busca de algum sentido em sua vida em meio a um caos
social e à indiferença de boa parte da sociedade se enquadra em uma narrativa
libertária e a um roteiro repleta de bizarras e poéticas simbologias. Bené busca
para sua vida uma síntese de paz interior, justiça social e possibilidade de extravasar
sua sexualidade e acaba esbarrando em mundo cada vez mais neurótico e desigual.
Na condução dessa pequena saga intimista, Navarro insere elementos de ficção
científica e algo de nonsense, sem nunca perder, entretanto, a coesão de
encenação e narrativa. Assim, aquilo que se inicia com uma abordagem realista
ao poucos se manifesta tanto como sombria fábula quanto como onirismo
encantador.
quinta-feira, agosto 08, 2019
Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes ****
Pode-se dizer que “Estou me guardando para quando o carnaval
chegar” (2019) tem como produção gêmea em termos artísticos/existenciais outra
obra expressiva do cinema nacional recente, a obra-prima “Arábia” (2017). Em
ambos os filmes, há uma visão humanista crítica e sutil sobre o “progresso”
sócio-econômico no Brasil deste século (e mesmo milênio) dentro de estruturas
estéticas-formais em que gêneros cinematográficos tradicionais são pervertidos
com elementos narrativos insólitos. No caso do documentário de Marcelo Gomes,
uma obra que a princípio poderia parecer uma investigação beirando o
jornalístico-histórico sobre uma cidade do interior pernambucano aos poucos se
converte em um amargo e irônico ensaio sensorial sobre os descaminhos da
sociedade capitalista contemporânea, com direito ainda a um certo viés
intimista/memorialista. O resultado final é desconcertante, principalmente no
confronto que se estabelece na visão de Gomes entre um passado idealizado e
mais humanizado e um presente marcado pela opressão mal disfarçada da busca
arrivista e incessante de ascensão sócio-econômica que automatiza e brutaliza
as individualidades. Entre os registros secos do cotidiano de trabalho manual e
mecânico constante e dos depoimentos entusiasmados daqueles que “venceram” na
vida, são inseridos na narrativa trechos reveladores de um atávico caráter
desafiador e malandro de parte dessas pessoas que ainda resistem, mesmo sem
saber, em se deixar suplantar totalmente por essa lógica conformista do “trabalho
dignificante”. Nesse sentido, o terço final da narrativa, quando a população de
Toritama desarma o seu conservador discurso “pró-trabalho eterno” e se rende a
alguns dias de diversão inconsequente no carnaval, é revelador dessa condição
de rebeldia e contestação quase involuntária que marca tanto o filme de Gomes
quanto a própria natureza de parcela do povo brasileiro.
quarta-feira, agosto 07, 2019
The mongolian connection, de Drew Thomas ***
Dentro dos cada vez mais restritivos (e obscuros) critérios
de escolhas do mercado de distribuição de filmes no Brasil, talvez o destino de
“The mongolian connection” (2019) fosse o de ser exibido por aqui em algum
serviço de streaming e olhe lá (até porque nem em DVD mais esse tipo de filme
tem chegado por aqui – afinal, ainda existe locadora disso?). Graças ao
FANTASPOA, entretanto, o espectador porto-alegrense teve a chance de ver essa
produção policial norte-americana independente na tela grande. Não há nada de
particularmente original no filme, mas é uma reciclagem bem eficaz e divertida
de clichês do gênero. As coreografias de tiroteios, porradarias e perseguições
automobilísticas são bem-feitas, encenação e caracterizações garantem alguma
densidade dramática e o roteiro até oferece exotismo ao situar grande parte da
ação na Mongólia. Ou seja, o diretor Drew Thomas pode estar distante de ser um
Michael Mann, mas pelo menos entrega um filme policial bem decente e que
sustenta o interesse do espectador por uma hora e meia. O que não deixa de ser
um feito.
segunda-feira, agosto 05, 2019
Deodato Holocaust, de Felipe Guerra ***
Quem acompanha o trabalho de Felipe Guerra sabe que ele,
além de cineasta, é um misto de admirador, incentivador e estudioso do gênero
fantástico no cinema, indo de clássicos do estilo até as mais excêntricas
obscuridades e tranqueiras do gênero. Assim, um filme como o documentário “Deodato
Holocaust” (2019) serve não apenas como uma interessante amostragem da carreira
artística do cineasta italiano Ruggero Deodato como também evidencia essas
diferentes facetas do próprio Guerra. A escolha narrativa de priorizar como fio
condutor um longo depoimento de seu protagonista é arriscada, pois poderia
fazer com que o longa tivesse um caráter estritamente histórico e jornalístico.
Guerra evita que seu filme caia nessa armadilha ao usar uma edição que sabe
conciliar com uma dinâmica inteligente trechos com declarações contundentes de
Deodato e expressivas imagens de arquivos e dos filmes mencionados pelo
diretor. Além disso, a entrevista ainda consegue evitar a simples enumeração de
fatos e datas, fazendo com que seu protagonista profira declarações que variam
entre confissões existenciais e artísticas e um misto de ironia e desafio na
forma com que Deodato enfrenta os pontos mais polêmicos levantados nas
perguntas feitas por Guerra e equipe (principalmente no que diz respeito à toda
controvérsia que envolveu a realização e lançamento de “Canibal holocausto”). E
no que era para ser um simples documentário biográfico de um diretor, a obra
destaca de maneira sutil um subtexto que faz o retrato de uma geração de
artistas que desenvolveram seus trabalhos dentro dos ditames comerciais e
estéticos da época (anos 60 e 70 e primeira metade dos 80), mas que preservaram
um senso artístico particular, herdeiro da influência de alguns mestres que os
antecederam e com quem até mesmo trabalharam (Dario Argento, Mario Bava e
Deodato foram colaboradores, respectivamente, de Sergio Leone, Federico Fellini
e Roberto Rossellini).
sexta-feira, julho 26, 2019
Quatro irmãos, de John Singleton ***
Recentemente falecido, o diretor norte-americano John
Singleton sempre passou a impressão de uma grande promessa que não seu cumpriu.
“Os donos da rua” (1991) criou uma forte expectativa em torno de seu nome por
se tratar de um trabalho vigoroso em torno de uma temática problemática
envolvendo racismo e jovens negros dos subúrbios envolvidos com a
criminalidade, revelando ainda alguns atores em início de carreira que depois
obtiveram algum prestígio. Ainda que fosse um trabalho memorável, em termos
formais e narrativos não trazia grandes ousadias, o que talvez caracterizasse
que a tal expectativa sobre seus próximos trabalhos fosse até exagerada. A
verdade é que Singleton se tornou um artesão competente dentro dos padrões comerciais
tradicionais do cinema de ação contemporâneo (e não o “grande cineasta autoral”
que a crítica e parte do público esperavam). Nesse sentido, “Quatro irmãos é um
trabalho emblemático dentro desse direcionamento artístico. É uma obra que traz
uma carga considerável dos clichês estéticos e temáticos inerentes ao gênero,
mas trabalhados de forma segura o suficiente para garantir o interesse da
plateia. Por outro lado, Singleton até se permite realizar algumas bem-sacadas
referências ao cinema blaxploitation, principalmente na utilização da trilha
sonora funk-soul e na encenação algo estilizada de algumas sequências. Ou seja,
nesses termos, “Quatro irmãos” por vezes até se mostra acima da média e fora do
rotineiro.
quarta-feira, julho 24, 2019
Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story By Martin Scorsese, de Martin Scorsese ****
Eu tenho uma espécie de convicção pessoal em relação ao
prêmio Nobel de literatura que Bob Dylan ganhou em 2016 – a de que uma das
razões para tal premiação, além dos motivos óbvios da grande qualidade
artística de boa parte das letras que compôs e do ótimo livro “Memórias”, seria
a genialidade de algumas entrevistas que ele concedeu ao longo de sua carreira.
Alguns desses depoimentos são verdadeiras pérolas de criação literária, onde a
realidade e a mitificação (ou simplesmente a mentira) se entrelaçam como uma
coisa só, dificultando a visualização da tênue fronteira que as separam. E é
esse caráter de brilhante loroteiro/contador de causos de Dylan que fica
explícito no “documentário ficcional” “Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story
By Martin Scorsese” (2019). Em um primeiro momento, o filme de Scorsese pode
parecer um simples registro da longa turnê misto de concertos e shows de
vaudeville que Dylan promoveu em meados dos anos 70. E é claro que estão lá a
captação de momentos musicais antológicos de tais apresentações. Só que com o
desenvolver da narrativa o universo do filme se expande para algo como uma
junção alucinada/poética que também inclui ensaio sócio-político repleto de
amarga ironia, inventário cultural iluminado e encenações maliciosas (até
depoimentos contemporâneos de Dylan e outras pessoas que estiveram envolvidas
com a Rolling Thunder se encontra nessa zona nebulosa entre a verdade e a
mentira). Assim como no brilhante “Não estou lá” (2007), o filme de Scorsese
está mais preocupado em expor a complexidade artística/existencial de Dylan do
que em simplesmente esclarecer de maneira linear detalhes da vida de seu
protagonista. As inquietações estéticas/temáticas do diretor e a síntese de
trovador lúcido e cara-de-pau jocoso composto na persona de Dylan resultam em
uma obra fascinante e repleta de obscuras e sedutoras nuances que exigem um
olhar atento e contemplativo do espectador para esse atordoante mosaico de
referências culturais e políticas, o que acaba se configurando como um grande
desafio artístico nesses tempos em que filmes conservadores/corporativos de
super-heróis se tornaram a grande referência cultural da sociedade ocidental.
segunda-feira, julho 22, 2019
Só você, de Norman Jewison **
Quando se vê nos créditos de um filme o nome de um cineasta
como Norman Jewison na direção, o mesmo cara que dirigiu filmes memoráveis como
“A mesa do diabo” (1965), “No calor da noite” (1967) e “Feitiço da lua” (1987),
além do fotógrafo favorito de Ingmar Bergman (Sven Nykvist), é claro que
expectativa só pode ser alta. O resultado final de “Só você” (1994),
entretanto, é tão banal e derivativo que fica difícil acreditar que os artistas
mencionados realmente trabalharam nesse abacaxi. Provavelmente deve ter faltado
algum dinheiro para pagar as contas para ambos e eles precisavam quebrar o
galho de alguma forma qualquer, pois em nenhum momento da narrativa dá para
perceber alguma espécie de transcendência estética ou temática. A não ser que
alguém ache divertido ver a Marisa Tomei tentando ser a nova Audrey Hepburn de
qualquer maneira.
sexta-feira, julho 19, 2019
Mulher infernal, de Dennis Dugan ***
O diretor norte-americano Dennis Dugan é uma espécie de
especialista de comédias na linhagem besteirol. Não quer dizer, entretanto, que
seja exatamente um exímio artesão no gênero. Pelo contrário – na maioria das
vezes, seus filmes oscilam entre o médio e o escancaradamente ruim. Por vezes,
consegue acertar e fazer algo de memorável. “Mulher infernal” (2001) é uma
dessas exceções. É uma obra que consegue ironizar com verve e boas sacadas
cômicas aqueles clichês machistas juvenis de uma parcela de “jovens adultos” do
seu país. Steve Zahn e Jack Black conseguem extrair de seus papéis cativantes
caracterizações e garantem boa parte do interesse pelo filme. É de se ressaltar
também um certo talento de Dugan na encenação de algumas sequências de humor
físico bem acentuado, beirando o pastelão grosseiro. No cômputo final, é claro
que está bem distante de ser uma obra-prima da comédia, mas é bem acima da
média em relação ao que Dugan costuma fazer.
quarta-feira, julho 17, 2019
Johnny English, de Peter Howitt *
Não adianta: a missão de vida de Rowan Atkinson é
interpretar o Mr. Bean. Fora do personagem, é como se o ator perdesse a sua
magia e ficasse ruminando maneirismos típicos de sua clássica criação. “Johnny
English” (2003) é exemplar claro disso – trata-se de mais uma recriação cômica
da figura de James Bond (desde os anos 60 periodicamente aparece alguma
produção fazendo isso...). Por vezes, o filme chega a ser quase engraçado,
principalmente em suas sequências iniciais. Lá pela metade da narrativa,
entretanto, o interesse pela obra já se dissipou e tudo fica chato de vez. No
fim das contas, é bem mais negócio rever algum episódio do Mr. Bean...
terça-feira, julho 16, 2019
Sicário: Dia do soldado, de Stefano Sollima **
Ainda que tivesse um roteiro um tanto derivativo, “Sicário:
Terra de ninguém” (2015) impressionava por uma notável conjunção entre uma
encenação precisa e uma concepção formal apurada, destacando uma direção de
fotografia fenomenal e uma música incidental bastante singular. Nesse
expressivo conjunto artístico, era impossível não lembrar de algumas das
melhores produções dirigidas por Michael Mann. Sua continuação, “Sicário: Dia
de soldado” (2018), na comparação, deixa muito a desejar. Sua articulação narrativa-estética
é apenas correta, transcendendo quase nada dentro daquilo que se faz no gênero
policial/ação atualmente. A trama continua pecando pela pouca originalidade,
além de pender para incômodos clichês machistas. Ou seja, a típica continuação
irrelevante que talvez nem precisasse existir.
segunda-feira, julho 15, 2019
Anos 90, de Jonah Hill ***1/2
Aqueles que acham que a caracterização pueril e estereotipada
de adolescentes em “Homem-Aranha: Longe de casa” (2019) pode ser considerada
algo convincente acabarão por levar um susto se assistirem a “Anos 90” (2018).
Esse filme dirigido por Johan Hill, mais conhecido como ator por algumas
interpretações antológicas (“Superbad”, “O lobo de Wall Street”), é um retrato
da juventude marcado por uma concepção estética-temática que sintetiza crueza e
poesia. Mesmo uma junção que hoje em dia pode parecer tão batida quanto skate e
música pop/rock (a trilha é um belo apanhado de raps e hardcores memoráveis dos
anos 80 e 90) acaba ganhando uma dimensão imagética-sensorial surpreendente na
forma com que Hill conduz a narrativa. É como se “Kids” (1995) fosse recriado
sob uma perspectiva menos afetada e fetichista e se concentrasse em um olhar
mais humanista. A caracterização de personagens e situações tem complexidade e
profundidade psicológica, ao mesmo tempo que a narrativa é fluente, envolvendo
o espectador a partir de uma encenação que privilegia a forte expressão
dramática e corporal do elenco (nesse aspecto, toda a ala de crianças e
adolescente é um capítulo à parte em termos de atuações intensas – é provável
que os anos como intérprete de Hill tenham contado como efetiva experiência
para a sua excelente direção de atores).
sexta-feira, julho 12, 2019
Megarromântico, de Todd Strauss-Schulson *
Uma comédia romântica tirando sarro das comédias românticas,
mas que ao mesmo tempo se rende a todos os clichês do gênero? Sim, isso já foi
feito várias vezes e na maioria das vezes o resultado final foi desastroso. E
com “Megarromântico” (2019) essa tradição não muda.
quinta-feira, julho 11, 2019
Homem-Aranha: Longe de casa, de Jon Watts **1/2
Por mais que se exalte uma coerência mercadológica e
artística dos Estúdios Marvel na elaboração e execução de seu universo
cinematográfico, coisa que outras franquias de super-heróis nas telas não
conseguem ter, fica cada vez mais evidente em seus filmes recentes que seus
criadores estão ficando perto de um beco estético-temático sem saída. “Homem-Aranha:
Longe de casa” (2019) é exemplo claro dessa encruzilhada – é um filme divertido
por vezes, há algum carisma em seus personagens, mas a impressão final é de
algo tão pueril que pouco consegue extrair alguma efetiva tensão dramática de
seus momentos cruciais. Ainda que ocorra vez e outra algumas boas soluções
narrativas, com destaque para as cenas em que o herói aracnídeo e seu
antagonista Mysterio duelam em meio a cenários delirantes de uma realidade que
se transforma constantemente, o que prevalece para o espectador é a sensação de
uma colcha-de-retalhos preguiçosa, misturando de maneira mecânica elementos
diversos de comédia-romântica adolescente, aventura estilo James Bond (com
diretos a vários cenários exóticos/turísticos) e a fórmula típica (e asséptica)
de filmes contemporâneos de super-herói. Quem quiser ficar com uma obra
memorável recente do alter ego de Peter Parker pelo jeito vai ter de ficar
mesmo com a ótima animação “Homem-Aranha no aranhaverso” (2018).
quarta-feira, julho 10, 2019
O homem duplicado, de Denis Vileneuve **
Por vezes, pode-se perceber na narrativa de “O homem
duplicado” (2014) alguma tentativa de transcender a obviedade dentro da
temática do duplo, principalmente quando aborda a questão do vazio existencial
que perpassa as vidas dos dois personagens interpretados por Jake Gyllenhaal.
Em tais momentos, pode-se perceber fragmentos de uma visão mais sutil e
irônica, característica típica da escrita de José Saramago, autor da obra
literária na qual o filme de Denis Vileneuve. Mas são apenas em algumas
sequências que se pode perceber essa fuga da previsibilidade artística.
Vileneuve é até um diretor competente, principalmente no que diz respeito a uma
dinâmica cênica que se evidenciou em bons filmes como “Sicário” (2015) e “A
chegada” (2016). Em outras obras, entretanto, sua concepção estética-temática
se revela superficial, resvalando em clichês formais e textuais poucos
inspirados, o que representa bem o caso desse “O homem duplicado”.
segunda-feira, julho 08, 2019
Uma relação delicada, de Catherine Breillat ***
Há uma densa relação de prolixidade dos diálogos e intensa
carnalidade em “Uma relação delicada” (2013), combinação essa característica de
boa parte do cinema francês. Para a diretora Catherine Breillat, o estranho
relacionamento entre a renomada cineasta Maud (Isabelle Huppert) e o picareta
Vilko (Kool Shen) é um agudo pretexto temático para esmiuçar de maneira sutil e
sardônica os conflitos de classe e o vazio existencial do mundo pequeno-burguês
ocidental. Na narrativa árida do filme, o sentimentalismo passa longe, e o que
predomina é uma incômoda sensação de interesses e desejos que estão sempre
escusos ou mal explicados. O que era para ser uma espécie de pesquisa de campo
ou mesmo uma jornada de autodescoberta para Maud acaba se transformando em uma
espécie de pesadelo, quase como um mergulho no coração das trevas de um
ordenamento social que ela achava conhecer. Boa parte da força dramática do
filme se concentra na delicada composição cênica de Huppert, que varia sua
interpretação com notável versatilidade entre um ar blase e a pura perplexidade
patética.
sexta-feira, julho 05, 2019
Divino amor, de Gabriel Mascaro ***1/2
Pela filmografia prévia do diretor Gabriel Mascaro e por sua
temática polêmica (uma sociedade brasileira futurista distópica onde religiões
evangélicas capturaram o estado nacional), era de se imaginar que em “Divino
amor” (2019) o tom da narrativa e a abordagem existencial da matéria tivessem
um teor mais explosivo. Pois é justamente o contrário que ocorre no filme.
Mascaro investe em um tom contemplativo e ambíguo, em que os elementos cênicos
e textuais se inserem com sutileza e naturalidade. Mesmo a concepção visual
inerente ao gênero ficção científica onde a obra se insere recebe um tratamento
quase que apenas de nuances, em que detalhes imagéticos da fotografia e direção
de arte fazem essa sugestão de um futurismo beirando o naïf. Tal direcionamento
artístico não é gratuito: nesse contexto de um país amplamente dominando por
uma doutrina religiosa de forte teor obscurantista, a insipidez clean de
cenários e figurinos denota uma ambientação entre o inexpressivo e o opressor.
Se por vezes há uma insinuação de um hedonismo quase inconsciente em festas
rave-gospel e em surubas controladas por pastores, em outros momentos a
indigência intelectual de pregações e canções e o moralismo exacerbado de
aconselhamentos configuram uma atmosfera de pesadelo sufocante. Tais contrastes
na narrativa provocam uma sensação de desconforto desconcertante para o
espectador. E de maneira progressiva, aquilo que era para ser um retrato entre
o intimista e o sócio-político de um futuro marcado pela alienação e
desolamento vai se convertendo aos poucos em uma espécie de perversa parábola
bíblica. Na conclusão de “Divino amor”, todos aqueles elementos narrativos que
pareciam dispersos e contrastantes convergem para uma perturbadora síntese de
ironia, amargura e desafio, em um resultado final memorável que provavelmente
ficará grudado no imaginário de quem assiste por um bom tempo.
terça-feira, julho 02, 2019
Uma juventude alemã, de Jean-Gabriel Périot ****
Estranhas coincidências... Há poucas semanas passadas foi
exibida no Cinema Capitólio a versão do diretor Luca Guadagnino para “Suspiria”
(2018), sendo que nessa recente adaptação a trama fica situada na Berlin de
meados dos anos 70, havendo várias referências históricas à atuação do grupo de
esquerda radical Baader Meinhof. Poucos dias depois, o mesmo cinema exibiu “Uma
juventude alemã” (2015), documentário que expõe a trajetória do referido grupo.
É curioso que ambos os filmes evitam tanto o olhar moralizante quanto a anódina
abordagem acrítica. Se o horror ficcional de Guadagnino faz um perturbador
paralelo existencial entre o grupo e uma confraria de bruxas (que também é uma
escola de balé!), no sentido de serem agrupamentos de ações violentas de
caráter libertário/contestatório, a obra documental dirigida por Jean-Gabriel Périot
é um fascinante de misto de viagem sensorial e relato histórico sobre o
controvertido histórico do Baader Meinhof. O fato do grupo ter entre seus
membros estudantes de cinema e jornalistas parece influenciar na própria
formatação narrativa do documentário, fazendo com que fique estabelecida quase
que de maneira constante uma contraposição dialética na colagem/edição do
material de arquivo. Assim, as filmagens de reportagem da época, a reproduzirem
debates e ações de conflito nas ruas, trazem em seu âmago um discurso
oficialista e conservador, sempre em tom desaprovador das ações do grupo (tanto
nos debates e protestos pacíficos quanto nas ações terroristas), enquanto o
material cinematográfico confeccionado por membros do próprio Baader Meinhof e
os trechos de filmes ficcionais relativos a essa temática de insurreições
ironizam e desconstroem esse mesmo discurso oficial. E na tensão entre tais
estéticas e discursos é que se evidencia o particular caráter artístico/político
de “Uma juventude alemã” – mais do que uma pretensa (e mentirosa) abordagem “isenta”,
é uma obra que evita o maniqueísmo fácil e ressalta a complexidade
sócio-ideológica dos conflitos da época. Nesse vórtice atordoante
imagético-textual, fica por vezes em primeiro plano a brutalidade das ações
terroristas do Baader Meinhof, mas também se valoriza que por trás de um
discurso de radicalismo também havia um arguto e legítimo raio x sobre as ações
discriminatórias e opressivas de um governo submetido aos ditames políticos e
econômicos de interesses exclusivos da ala burguesa da sociedade alemã. A
melancólica e poética conclusão de “Uma juventude alemã” realça com
brilhantismo esse olhar lúcido e nada banal sobre um conflito que em sua
essência perdura até os dias de hoje em âmbito mundial.
segunda-feira, julho 01, 2019
Vidas duplas, de Olivier Assayas ***
Por vezes, a produção francesa “Vidas duplas” (2018) passa a
impressão que o seu diretor Olivier Assayas estava mais interessado no filme
como um veículo para impressões culturais-políticas-existenciais sobre o mundo
contemporâneo do que propriamente entregar uma obra perfeitamente acabada em
termos narrativos. Não que o filme padeça de alguma indigência formal – na realidade,
é até um trabalho bem envolvente para espectador em alguns momentos. Pesa no
filme, entretanto, uma prolixidade nos diálogos, que aparentam uma necessidade
urgente em abarcar vários dilemas da pós-modernidade que nos afligem. Nessa
ânsia, dá para dizer que há um exagero em discussões tecnológicas e econômicas
que fazem com que o longa tenha um certo ar datado, distante, dessa forma, da
beleza atemporal de obras como “Depois de maio” (2012) e “Personal shopper” (2016),
primorosos trabalhos anteriores de Assayas. Ainda assim, a sobriedade da
encenação e o desempenho dramático preciso do elenco fazem com que o filme
adquira em algumas sequências uma frequência sensorial algo hipnotizante, em
que a profundidade dos diálogos e situações do roteiro e uma interessante
atmosfera mista de ironia e melancolia levam o espectador para uma serena zona
entre o encanto e a reflexão.
quarta-feira, junho 26, 2019
Dor e glória, de Pedro Almodóvar ***
Na maioria das oportunidades, quando um cineasta de forte
traço autoral resolve realizar um filme de teor autobiográfico, o resultado final
costuma ser memorável. Afinal, há um artista de visão criativa e existencial
diferenciada a refletir sobre o próprio passado sob uma perspectiva subjetiva
particular e mais livre das amarras mercadológicas. Dentro de tal concepção,
por exemplo, diretores consagrados como Federico Fellini, Ingmar Bergman, John
Boorman e Woody Allen conceberam trabalhos antológicos como, respectivamente, “Amarcord”
(1973), “Fanny e Alexander” (1982), “Esperança e Glória” (1987) e “A era do
rádio” (1987). Assim, um filme como “Dor e glória” (2019) acaba sendo um tanto
decepcionante. Afinal, trata-se de obra baseada nas lembranças pessoais de seu
diretor, o espanhol Pedro Almodóvar, um dos grandes diretores em atividade. É
claro que não chega a ser ruim – pelo contrário, por vezes é até uma obra bem
envolvente. A impressão constante, entretanto, é que alguns elementos temáticos
e estéticos presentes no longa em questão já foram muito melhor trabalhados em
trabalhos anteriores de Almodóvar. As sequências em aparente flashback são
exemplos claros de uma certa falta de vigor de “Dor e glória” – são corretas,
mas genéricas, quase nem parecendo que são de autoria de alguém de abordagem
artística tão original e característica quanto Almodóvar. É claro que alguns
detalhes fazem o filme valer uma conferida, principalmente pela ótima atuação
de Antonio Banderas e o conjunto fotografia-direção de arte repleto de belos
achados imagéticos. Ainda assim, pode ficar para o espectador aquela sensação
de que no conjunto geral poderia ter sido bem melhor.
sexta-feira, junho 21, 2019
Suspiria, de Luca Guadagnino ****
No terreno das refilmagens, poucas obras podem ser
consideradas como verdadeiras recriações tais como a recente versão de “Suspiria”
(2018). Se o filme original dirigido por Dario Argento, lançado em 1977, era
uma combinação brilhante de violento terror gráfico e barroquismo beirando o
delirante, aliada a um roteiro que respeitava a tradicional divisão maniqueísta
entre o bem e o mal (nesse último caso, representado na figura das
feiticeiras), na revisão do cineasta Luca Guadagino permanece um formalismo de
forte caráter virtuosístico, mas o horror agora recebe uma forte conotação de
simbologias sócio-políticas. O papel das bruxas ainda é a de antagonistas,
ainda que se contextualizando em aspectos existenciais mais complexos. A trama
é inserida em um conturbado contexto local-histórico – a Alemanha de meados dos
anos 70 tomadas por manifestações estudantis em prol de grupos terroristas. Se
tais organizações eram vistas por alguns como legítimas contestações ao
ordenamento burguês-cristão-patriarcal da sociedade ocidental, as bruxas que
comandam uma academia de dança moderna em Berlin acabam ganhando de maneira
perversamente sutil (e cortante) essa conotação de desafio à ordem vigente. Sem
simplificar essas questões histórico-políticas, o filme faz um inventário
artístico-temático sensível e contundente de fatos decisivos na formação
cultural do século XX – 2ª Guerra Mundial, Guerra Fria, contracultura –
evidenciando para a humanidade um período em que os conflitos armados, a
exploração sócio-econômica e a opressão religiosa-comportamental criaram um
ambiente de paranoia e violência (com reflexos que sentimos até os dias de
hoje). Guadagnino ainda aproveita as possibilidades criativas de boa parte da
história se desenvolver em uma academia de dança expondo na tela sequências
luxuriantes e perturbadoras de balés coreografados com precisão e originalidade
atordoantes. Nesse sentido, a síntese entre dança e horror faz lembrar outra
obra extraordinária lançada recentemente, “Clímax” (2018). É claro que a
particular concepção artística engendrada por Guadagnino provocou repulsa em
boa parte dos apreciadores do longa de Argento e mesmo de fãs de terror convencional,
mas o que realmente frustraria seria tentar adaptar a obra original mimetizando
preguiçosamente maneirismos estéticos e textuais de quarenta anos atrás. Nesse
sentido, a visão autoral de Guadagnino na verdade também serve para atestar a
atemporalidade do filme de Argento mostrando a impossibilidade de apenas tentar
repetir aquilo que já havia sido feito com brilhantismo nos 70.
quarta-feira, junho 12, 2019
Compra-me um revólver, de Julio Hernández Cordón ***1/2
A referência mais óbvia que vem à mente ao se assistir à
produção mexicana “Compra-me um revólver” (2018) é “Mad Max – Além da cúpula do
trovão” (1985). Afinal, o filme dirigido por Julio Hernández Cordón é uma
ficção-científica futurista distópica tendo entre seus principais personagens crianças
órfãs abandonadas sobrevivendo em um ambiente hostil. Ao invés de adotar o tom
espetaculoso/apoteótico do clássico oitentista de George Miller, esse longa-metragem
mais recente se utiliza de uma concepção narrativa-estética mais contida e de
uma encenação sóbria, em que efeitos especiais praticamente inexistem e a
economia de recursos é determinante em termos de direção de arte e fotografia.
E tudo isso que poderia ser visto como um limitador criativo na verdade se
converte em uma grande força artística no filme de Cordón, pois aproxima um
possível futuro tenebroso de um presente não muito diferente, causando para o
espectador um efeito sensorial/existencial perturbador (caos social, exploração
humana, violência desmedida, machismo e abandono infantil não estão distantes
da realidade do México e de vários outros países da América Latina). O limite
entre a sufocante tensão dramática de um thriller de suspense e a reflexão
melancólica do subtexto de forte teor sócio-político é sempre difuso, fazendo
com que a ligação entre esses dois lados da obra seja intrínseca de maneira
contundente. Ainda que a dureza temática e formal predomine na narrativa, “Compra-me
um revólver” sabe se permitir nos momentos certos uma certa dose de poesia,
conforme se pode perceber em sua evocativa sequência de conclusão.
terça-feira, junho 11, 2019
Thriller - Um filme cruel, de Bo Arne Vibenius ****
Na sessão comentada da produção sueca “Thriller – Um filme
cruel” (1973) realizada na última edição do FANTASPOA, a atriz Christina
Lindberg disse que o filme em questão teria sido feito pelo diretor Bo Arne
Vibenius com a intenção principal de ganhar um bom dinheiro, tendo em vista que
o cineasta na época se encontrava na época em séries dificuldades financeiras,
abusando, dessa forma, de alguns dos preceitos básicos do cinema exploitation
da época, principalmente nos quesitos violência gráfica e sexo explícito. Por
mais que a obra seja apelativa no uso constante de tais elementos de choque,
entretanto, seu resultado final acabou extrapolando os meros fins lucrativos
aludidos por Lindberg. Por mais que a brutalidade e pornografia estejam
presentes, elas são incorporadas dentro de uma atmosfera desolada e uma
narrativa sóbria, por vezes quase rarefeita, além de um subtexto repleto de ironia
perversa, o que faz com que o conjunto estético-temático possua aquela bizarra
síntese de repulsa e encantamento dos melhores filmes da linhagem exploitation
setentista. Detalhes cênicos como as estranhas sequências de ação em câmera
lenta e a atuação icônica de Lindberg fazem entender por que Quentin Tarantino
sempre cita “Thriller” como uma das suas grandes inspirações criativas.
segunda-feira, junho 10, 2019
Viagem ao mundo da alucinação, de Roger Corman ***1/2
Ainda que seja um diretor bastante cultuado, Roger Corman
foi antes de mais nada um grande homem de negócio dentro do cinema. Mesmo os
antológicos filmes que realizou adaptando a obra literária de Edgar Allan Poe
são frutos principalmente de um afiado senso de oportunidade mercadológica e de
utilização de recursos de produção. Essa mesma lógica artística-comercial o
levou a realizar alguns longas dentro da temática sexo-drogas-rock and roll quando
essa tríade estava no auge em meados dos anos 1960. “Viagem ao mundo da
alucinação” (1967) talvez seja o exemplar mais emblemático de tal tendência,
tendo também relevante conotação histórica por trazer em seu elenco e equipe
criativa os nomes de profissionais que poucos anos mais tarde estouraram em
Hollywood como Jack Nicholson, Denis Hooper, Peter Fonda e Bruce Dern. Por
outro lado, o filme de Corman transcende a mera curiosidade histórica ou comercial,
tendo um peso artístico considerável. Em meio a maneirismos típicos de um
caráter exploitation há momentos efetivamente antológicos, em que as angústias
e inquietações existenciais do roteiro encontram uma moldura estética-narrativa
mais que adequada. Truques imagéticos baratos, encenação vigorosa e uma trilha
sonora que sintetiza rock psicodélico e easy listening de maneira notável
formam um todo sensorial entre o atordoante e o encantador. Nessa levada, Corman
articula com sensibilidade e ironia a sua particular visão sobre o universo
lisérgico sessentista.
quinta-feira, junho 06, 2019
Mutant Blast, de Fernando Alle ***
Uma produção portuguesa de baixo orçamento envolvendo zumbis
e uma sociedade pós-apocalipse? É claro que uma obra assim só poderia ser
encarada como comédia. E o diretor Fernando Alle tem a plena consciência disso
na realização de “Mutant Blast” (2018), fazendo de suas limitações de recursos
e de uma sagaz criatividade formal/artesanal seus principais trunfos para
realizar um longa divertido tanto em termos de ação quanto de ironia ácida. E o
próprio fato dos atores falarem seus diálogos repleto de clichês do gênero com
um sotaque lusitano dá um charme cômico para tudo isso ainda maior. É claro que
nem sempre o tom debochado/esculachado do filme consegue garantir o equilíbrio
narrativo, mas a série considerável de boas sacadas estéticas e textuais segura
o interesse do espectador – nesse sentido, é de se destacar a atuação bonachona
de Pedro Barão Dias no papel principal e a caracterização física-existencial de
um refinado homem-lagosta!
quarta-feira, junho 05, 2019
Mormaço, de Marina Meliande ***
Não há como não traçar paralelos entre “Mormaço” (2018) e “A
sombra do pai” (2018). Ambas são obras dirigidas por mulheres que enveredam
para o gênero fantástico visando configurar alegorias sócio-políticas do Brasil
contemporâneo. Se no filme de Gabriela Amaral Almeida há a predominância de um
viés intimista, no longa dirigido por Marina Meliande a trama abarca um
espectro maior, focalizando as ações do governo carioca para desalojar várias
famílias de seus lares para executar as obras das Olimpíadas de 2016 e a contrarreação
de populares para evitar tais despejos. Ainda que bem-intencionadas e louváveis,
as sequências de caráter mais realista a focalizar discussões em gabinetes e
tribunais e enfrentamentos físicos entre agentes da segurança e moradores por
vezes têm uma fluência narrativa e mesmo encenação mais truncadas, pouco
fluidas. O filme de Meliande realmente transcendo quando parte para uma concepção
estética-temática que sintetiza teor imagético simbolista e horror metafísico,
principalmente no terço final da narrativa, quando a doença de pele da
protagonista Ana (Marina Provenzzano) se acentua e a personagem entra em um
processo de fusão com o prédio deteriorado onde mora. O subtexto é claro e
perturbador – a dissolução física de Ana corresponde à deterioração moral-ética
da própria capital carioca, em que o antigo e tão decantado Rio de Janeiro
marcado por um imaginário gentil e poético dá lugar a uma metrópole desumana e
implacável contra aqueles sócio-economicamente fragilizados, em um retrato
metafórico que serve também como moldura exata para o Brasil pós-golpe
parlamentar.
terça-feira, junho 04, 2019
Vingadores: Ultimato, de Joe e Anthony Russo ***
Em tempos conturbados e complexos como o que vivemos, um
filme-evento como “Vingadores: Ultimato” (2019) acaba não se tratando de apenas
mais um blockbuster milionário. Por mais que a obra dos diretores Joe e Anthony
Russo tenha mobilizado e emocionado milhões de espectadores, não há como
dissociar suas conquistas das táticas de marketing agressivo/predatório de
produtores e distribuidores. É só pensar, por exemplo, que o fato de ter
abocanhado quase 90% das salas em território brasileiro contribuiu bastante
para sua performance arrecadatória. É claro que quando a Marvel ascendeu como
editora relevante de quadrinhos nos anos 1960 tinha como fim o sucesso
comercial. É fato também, entretanto, que as HQs de Stan Lee e companhia tinham
um caráter de reflexão cultural do mundo naquela época, o que ficou ainda mais evidente
nas sutis tendências no subtexto de caráter libertário e crítica social de
algumas de suas principais revistas na década de 70 (presente, inclusive, nas
tramas cósmicas envolvendo Thanos). Assim, é algo decepcionante que o tom
conformista e previsível de “Vingadores: Ultimato” seja predominante. A gente
pode perceber a coerência temática que se construiu ao longo de anos em que
filmes interagiram dentro desse universo com naturalidade, além de um
competente padrão estético-narrativo na concepção visual e na coreografia da
ação – “Ultimato”, aliás, coroa com eficácia tais atributos. A produção,
contudo, pouco transcende dessa formatação, culpa de um roteiro fortemente
esquemático. Há a pretensão de se apresentar épico, grandioso, mas a duração
excessiva e as quedas seguidas para golpes melodramáticos tornam o filme por
vezes bem anticlimático. Todas essas considerações não querem dizer que temos
uma produção ruim. Pelo contrário – “Vingadores: Ultimato” diverte, até
emociona em algumas passagens, além de não dar aquela impressão “nas coxas” dos
filmes da DC. O que frustra mesmo é a sua incapacidade (ou mesmo falta de
vontade) de sair dos ditames corporativos dos seus donos.
quarta-feira, maio 15, 2019
A sombra do pai, de Gabriela Amaral Almeida ***1/2
Apesar de ter apenas dois longas-metragens em seu currículo
como diretora, pode-se observar nessa ainda breve filmografia de Gabriela
Amaral Almeida uma notável coerência artística-existencial. Ambas as obras, “O
animal cordial” (2018) e “A sombra do pai” (2019), vinculam-se ao gênero
horror, mas com sutis e decisivas diferenças. Se o primeiro filme se estrutura
como um tenso suspense psicológico a retratar em seu subtexto a desagregação
ética e intelectual da classe média brasileira, no trabalho mais recente da
cineasta a abordagem narrativa se desenvolve dentro do universo fantástico para
fazer uma radiografia pungente e melancólica da opressão sócio-econômica sobre
as camadas mais desfavorecidas da sociedade nativa. É fascinante como “A sombra
do pai” concilia de maneira fluente os preceitos narrativos típicos do tradicional
horror sobrenatural, com direito a citações explícitas a “A noite dos mortos-vivos”
(1968) e “Cemitério maldito” (1989), com elementos temáticos e estéticos do
sincretismo religioso e cotidiano brasileiros (nesse sentido, não há como não lembrar
do extraordinário “Quando eu era vivo”, obra em que Gabriela era também
roteirista). Nessa combinação de influências diversas, ainda que o filme traga
alguns memoráveis momentos assustadores na caracterização de almas penadas e situações
de magia negra, fica evidente que na visão da obra a efetiva ação de uma força “das
trevas” está no processo de desumanização e embrutecimento das classes
trabalhadoras diante de uma rotina laboral de exploração econômica e alienação
que as converte em uma massa de zumbis desolados e suicidas. Ainda assim, “A
sombra do pai” consegue oferecer de maneira comovente alguma esperança em sua
bela conclusão de tom fabular e teor desafiador contra o ordenamento
burguês-cristão.
terça-feira, maio 14, 2019
Em trânsito, de Christian Petzold ***1/2
Em seus últimos trabalhos, o diretor alemão Christian
Petzold elaborou uma instigante síntese narrativa, em que preceitos
convencionais do gênero melodrama e de filmes de época se entrelaçam com
discretas nuances de estilização. “Em trânsito” (2018), sua obra mais recente,
radicaliza essa particular concepção artística. O roteiro tem fortes vínculos
com a escola de realismo, mas encenação e direção de arte formulam um universo
existencial paralelo – a trama até deixa claro que se situa na tomada da França
pelos alemães na 2ª Guerra Mundial, só que figurinos e a caracterização
ambiental são contemporâneas. A simbologia é simples, quase óbvia, e também
altamente eficaz, ao fazer a relação com os procedimentos de perseguição étnica
e social adotadas pelos nazistas com as práticas desumanas na atualidade de
ataques xenofóbicos a imigrantes e em outras ações de opressão econômica-social
por parte de vários governos no mundo ocidental contemporâneo. Ao longo da
narrativa, a abordagem temática-estética de Petzold vai se revelando cada vez
mais intrincada, fazendo com que elementos literários e teatrais sejam
inseridos e demonstrem fluências na fusão com a própria linguagem
cinematográfica da obra. São notáveis, por exemplo, as sequências em que a
narração over mostra uma sintonia frágil com aquilo que está em cena, como se
soubesse apenas fragmentos da história que está sendo contada. Tal concepção
realça ainda mais a complexidade dos personagens e situações do roteiro,
reforçando uma visão poética e fatalista em relação àquilo que está em cena.
sexta-feira, maio 10, 2019
Romeu tem que morrer, de Andrzej Bartkowiak ***
A premissa inicial do roteiro de “Romeu tem que morrer”
(2000) faz presumir uma picaretice – a trama “atualiza” o clássico de
Shakespeare “Romeu e Julieta” na cidade de San Francisco do final do século XX
em meio a uma guerra de gangues entre afro-americanos e chineses (de certa
forma, algo parecido até foi feito na obra-prima “Amor, sublime, amor”). E na
realidade, o filme dirigido por Andrzej Bartkowiak realmente tem algo de oportunismo
mercadológico. Agora, se encararmos essa parte textual da produção como mero
pretexto para algumas boas sequências de pancadaria no estilo arte marcial, dá
até para dizer que as coisas funcionam e o resultado final da obra é bem
divertido. As coreografias de lutas protagonizadas por Jet Li tem desenvoltura
e criatividade, fazendo uma memorável junção dos preceitos estéticos do cinema
oriental do gênero com a formatação tradicional do policial norte-americano.
Claro que não há nada aqui de necessariamente revolucionário, mas tem os seus
momentos acima da média.
quinta-feira, maio 09, 2019
A lenda dos oito samurais, de Kinji Fukarasu **1/2
Mesmo para um padrão de aventura japonesa oitentista “A
lenda dos oito samurais” (1983) pode ser considerado uma tremenda tosquice. É
uma junção desajeitada entre fantasia e a mitologia samurai e que, apesar de
datada em vários aspectos, tem os seus momentos divertidos e por vezes até
inquietantes, principalmente pelo fato de investir em um grafismo mais violento
e sórdido. Funciona como curiosidade. E quase só...
quarta-feira, maio 08, 2019
Jurassic World: Reino ameaçado, de Juan Antonio Bayona *
Se “Jurassic World: O mundo dos dinossauros” (2015) era uma
retomada anódina do universo de dinossauros da franquia “Jurassic Park”, esse “Jurassic
World: Reino ameaçado” (2018) descamba de vez para a picaretice descarada. É
como se os produtores pegassem as ideias mais estapafúrdias de produções
oportunistas que imitaram a série cinematográfica criada por Spielberg, dessem
recursos milionários típicos de grandes estúdios e entregassem a direção para
um cara qualquer nota. O resultado é uma obra que emula preguiçosamente ideias
visuais e clichês textuais dos filmes anteriores, incapaz de gerar alguma
tensão dramática ou mesmo alguma cena que fuja do trivial. Salva um pouco a
barra do longa dirigido por Jan Antonio Bayona o terço final da narrativa, no
sentido de ser tão cretina a ideia de um leilão de dinossauros que acaba
rendendo alguns momentos de humor involuntário. Resta no final a curiosidade em
se imaginar o quão baixo os produtores da franquia descerão no próximo filme
(afinal, as enormes bilheterias na arrecadação e os ganchos escancarados na
conclusão dão a certeza de mais uma produção com dinossauros digitalizados).
terça-feira, maio 07, 2019
Pequena grande vida, de Alexander Payne **
No melhor de sua filmografia, o diretor norte-americano
Alexander Payne foi responsável por uma fina síntese narrativa de ironia ácida
e densidade dramática. É só conferir isso em “Eleição” (1999), “As confissões
de Schmidt” (2002) e “Nebraska” (2013). Sua particular concepção artística,
entretanto, desmorona em “Pequena grande vida” (2017). O que era para ser uma
sardônica ficção científica repleta de subtexto sócio-político acaba se
convertendo em uma pálida fábula. O início do filme é até promissor: o roteiro
insinua alguns rumos interessantes, as trucagens digitais com as pessoas
miniaturizadas têm um divertido charme imagético e a encenação apresenta
originalidade na forma com que realismo e absurdo se alternam. Aos poucos, as
boas promessas criativas vão se esvanecendo com a falta de um rumo mais
definido da trama e o tom apático das interpretações. Não chega a ser
especialmente ruim, é só anódino de maneira anestesiante.
sexta-feira, maio 03, 2019
Wilson, de Craig Johnson **
Se você quer conhecer um filme que serve como exemplo de
como não se deve adaptar uma ótima história em quadrinhos para o cinema,
recomendo que assista a “Wilson” (2017). Toda aquela sardônica narrativa da
graphic novel original escrita e desenhada pelo brilhante quadrinhista Daniel
Clowes, que combina melancolia e ironia destinadas a fazer um ácido retrato dos
valores pequeno-burgueses da sociedade norte-americana, acaba sendo reduzida a
um conto fofinho de autoajuda. O início do filme até dá uma enganada, é onde se
concentra os momentos de humor mais sacana do roteiro, mas ao longo da trama
isso vai se diluindo em doses enjoadas de assepsia visual e diálogos
engraçadinhos. A esforçada interpretação de Woody Harrelson no papel título
procura dar alguma dignidade para o longa. Acaba senso insuficiente,
entretanto, diante da direção preguiçosa e sem graça de Craig Johnson. Se você
não conhece a HQ de Clowes, corra para ler e esqueça esse filme medíocre.
quinta-feira, maio 02, 2019
A maldição da chorona, de Michael Chaves *1/2
A franquia “Invocação do mal” e seus derivados estão mais
vinculados a um conceito de “terror carola cristão”, ou sejam, parece que sua
preocupação maior está em difundir os valores católicos (e religiões
assemelhadas) do que propriamente em construir uma obra de horror convincente
em termos artísticos. “A maldição da chorona” (2019) é exemplar enfático dessa
tendência da franquia. Assim como em “Anabelle” e “A freira”, a estrutura
narrativa apenas repete uma fórmula gasta, algo como uma derivação qualquer
nota de “O exorcista” (1973). Os truques de sustos são previsíveis a um ponto
de serem incapazes de provocar algum susto satisfatório, enquanto a
caracterização visual é preguiçosa e pouco imaginativa (a personagem-título
repete todos os maneirismos imagéticos da assombração de “A freira”). Todo esse
conjunto formal-narrativo embala uma trama óbvia e conservadora de doer – com direito
a um ex-padre renegado como herói durão e uma série de situações estereotipadas
reveladoras de uma visão de mundo reacionária e preconceituosa. De certa forma,
o filme do diretor Michael Chaves está em perfeita sintonia existencial com os
tempos de obscurantismo e opressão sócio-religiosa que vivemos.
terça-feira, abril 30, 2019
O valor de um homem, de Stéphane Brizé ***
Em sua filmografia, o diretor francês Stéphane Brizé costuma
se vincular à cartilha estética-temática do realismo. Se em “Mademoiselle
Chambon” (2010) e “Uma primavera com minha mãe” (2013) essa abordagem artística
se enquadrava dentro de um roteiro de caráter intimista, em “O valor de um
homem” (2016) o enfoque da trama se concentra em um forte teor social (sem que
com isso se esqueça, entretanto, do lado subjetivo dos personagens). Se Brizé
não apresenta a mesma classe formal-narrativa de Ken Loach e dos irmãos
Dardenne, grandes mestres dessa linhagem cinematográfica, ainda sim o seu filme
apresenta forte impacto para o espectador pela misto de austeridade e humanismo
com que expõe os dilemas éticos de um homem desempregado (Vincent Lindon,
excelente) diante de um cotidiano marcado por injustiças, desmandos e
humilhações derivados de uma cruel ordenamento sócio-econômico “moderno” e
neoliberal. Brizé não se furta de escolher um lado na história que conta– seu panfletarismo
é contundente e sincero, o que carrega ainda mais a sua narrativa em termos de
pungência e tensão dramática.
segunda-feira, abril 29, 2019
3 faces, de Jafar Panahi ***1/2
O diretor iraniano Jafar Panahi retomar as suas habituais
obsessões estéticas e temáticas em “3 faces” (2018). O que não dizer que isso
signifique comodismo artístico. Muito pelo contrário. O cineasta demonstra
precisão e sensibilidade na construção do realismo de seu filme: o uso
preferencial do plano-sequência, a montagem invisível, a encenação de forte
teor naturalista. Tudo isso se junta à sua também costumeira dissecação da
própria linguagem cinematográfica, em um jogo cênico em que o metalinguístico,
a ficção e o real se combinam de maneira fluente e inquietante. Na trama de uma
garota de interior aspirante a atriz/diretora que pede a ajuda de maneira
dramática para o diretor e uma atriz famosa no país (Behnaz Jafari) diante da
fúria conservadora de sua família e da comunidade que a cerca, Panahi faz com
que o humanismo inerente ao roteiro encontre uma moldura formal/narrativa
sóbria e insinuante. A forma com que o diretor expõe o cotidiano do vilarejo
onde a história se desenvolve, captando detalhes da rotina das pessoas e os
depoimentos/pensamentos rústicos dos moradores, faz pensar no clássico
documentário “O fim e o princípio” (2006) recriado como ficção. No longa de
Panahi, entretanto, a captação dessa ambientação rural e dessa “sabedoria” algo
primitiva ganha contornos de uma sutil e desolada crítica à opressão religiosa
e patriarcal de uma sociedade de valores ancestrais.
quinta-feira, abril 25, 2019
O anjo, de Luis Ortega ***
O cinema mainstream argentino tem como característica básica
a emulação fiel dos preceitos narrativos do cinema norte-americano clássico, o
que para muitos é a explicação maior pelo fato de ser melhor sucedido em termos
comerciais e artísticos do que as produções brasileiras populares. Se esse
direcionamento artístico em vários casos acaba rendendo obras assépticas e
despersonalizadas, em outras oportunidades até surpreende ao dar origem a
alguns filmes inquietantes. Nesse último caso dá para enquadrar “O anjo”
(2018). Nada no longa-metragem dirigido por Luis Ortega remete à alguma efetivo
sopro de originalidade ou de grande sobressalto criativo em termos narrativos
ou temáticos. É mais um filme policial dentro daquela tradicional linhagem a
mostrar a ascensão e queda de um meliante – e que geralmente se baseia em fatos
reais (o que é exatamente o caso do filme de Ortega). Tem até direito a
sequências de ação e violência regadas a muito rock and roll setentista (impossível
de não lembrar de cenas semelhantes de obras-primas de Martin Scorsese como “Os
bons companheiros” e “Cassino”). Ainda assim, é uma obra que por vezes cativa o
espectador pela competência e convicção de Ortega em ficar remexendo clichês
narrativos, além de contar com um desempenho magnético e memorável de Lorenzo
Ferro no papel do protagonista Carlitos Puch. As sequências dele saltando muros
e telhados, fazendo caras e bocas, disparando tiros ou simplesmente dançando
estilosamente demonstram uma impressionante expressão corporal e valorizam
ainda mais a encenação elegante concebida por Ortega.
quarta-feira, abril 24, 2019
O lamento, de Na Hong-jin ***
Há momentos em “O lamento” (2016) que fazem lembrar a
expressiva síntese de originalidade e tensão de outras produções sul-coreanas antológicas
que enveredaram pelo gênero suspense como “Old Boy” (2003), “Medo” (2003), “Mother”
(2009) e “Em chamas” (2018). O diretor Na Hong-jin se utiliza de uma encenação
que foge dos padrões tradicionais ocidentais para esse tipo de filme, principalmente
quando a narrativa se formata dentro de um padrão de comicidade. As reações dos
personagens diante de algumas situações limite do roteiro se aproximam mais de
um espanto cômico do que de arroubos melodramáticos ou de heroísmo. O grafismo
sanguinolento do filme também é mais brutal e cru do que aqueles que estamos
acostumados a ver nessa linhagem de produções vindas dos estúdios norte-americanos.
Esse conjunto artístico por vezes se mostra perturbador e angustiante, mas a
verdade é que “O lamento” não consegue manter esse nível de maneira mais
constante, principalmente quando se rende a alguns preceitos narrativos mais
convencionais. Ou seja, não está no mesmo nível artístico dos filmes
mencionados no início desse texto. Ainda assim, é uma obra de respeito e acima
da média do que vem se fazendo nos últimos anos no gênero.
terça-feira, abril 23, 2019
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora ***1/2
Faz algumas semanas que ouvi um depoimento extraordinário de
uma deputada indígena se contrapondo contra um pronunciamento preconceituoso e
reacionário da ministra da agricultura que ofendia a cultura do silvícola
brasileiro. No referido pronunciamento da deputada, ela colocava como era
reducionista tentar enquadrar o índio dentro de uma ótica capitalista-cristã,
quando na verdade a concepção existencial do indígena se baseia em uma visão
completamente diversa do ambiente e do trabalho. Essa lógica particular de vida
é algo que extravasa com um misto de sensibilidade e contundência na produção
brasileira “Chuva é cantoria na aldeia do morto” (2018), e que faz com que a
própria narrativa do filme dos diretores João Salaviza e Renée Nader Messora
tenha de se adaptar a uma linguagem estética bastante na contramão do que se
faz no cinema ocidental contemporâneo. No terço inicial da obra, o espectador
entra de cabeça em um universo paralelo de sensações audiovisuais – a encenação
respeita o ritmo de vida sereno e rústico de uma comunidade indígena Khahô, em
que os sons da natureza e uma imensidão de verde e terra absorvem os nossos
sentidos e fazem com que a união entre o realismo e o metafísico pareça natural
e coerente. Quando a narrativa se volta para um centro urbano, o contraste é
chocante, com uma poluição sonora e visual irrompendo com violência e que se
mostra em desolada sintonia com uma sociedade embrutecida típica das cidades
brasileiras contemporâneas. No terço final, com a trama sendo retomada para o
cotidiano da tribo, a narrativa se torna mais etérea, com danças, cantos e
sutis trucagens visuais constituindo um delicado e envolvente vórtice
sensorial, impressão essa que se reforça na misteriosa conclusão do filme, uma
primorosa cena em que natureza e misticismo se fundem de maneira antológica.
segunda-feira, abril 22, 2019
Los silencios, de Beatriz Seigner ***
A combinação de drama intimista, teor sócio-político e
realismo fantástico engendrada pela diretora Beatriz Seigner em “Los silêncios”
(2018) não se configura em uma narrativa sempre equilibrada. Isso se compensa,
entretanto, por alguns momentos de pungência arrebatadora. A forma com que os
planos do real e do metafísico se relacionam revela engenhosidade formal e sensibilidade
temática por parte do filme. Mesmo não se recorrendo a trucagens, há uma
fluência natural na forma com que situações e personagens transitam entre a
encenação naturalista e a caracterização do metafísico. O roteiro foge dos
estereótipos fáceis da religiosidade cristã moralista e envereda em uma
intersecção criativa entre melancólicas assombrações e forte e crítico
comentário sobre um cenário de exploração econômica e opressão armada no
interior da Colômbia. Há uma sutileza desconcertante e por vezes comovente na
forma com que fantasmas se manifestam no cotidiano de privações e trabalho duro
de um vilarejo na fronteira entre o Brasil e Colômbia. Seigner evita os truques
narrativos óbvios de melodrama convencional, privilegiando expressivos silêncios
e gestuais em sua encenação, além de uma certa crueza visual na concepção
imagética da direção de fotografia, o que não quer dizer que a obra não tenha
uma surpreendente beleza plástica rústica.
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