quinta-feira, julho 31, 2014

Heli, de Amat Escalante ***1/2


O diretor mexicano Amat Escalante não se propõe a grandes invencionices em “Heli” (2013). Suas opções estética e temática são bastante simples e eficientes – através de um registro seco, por vezes beirando o documental, o filme conta a brutal história de um jovem trabalhador interiorano que tem a sua vida destroçada quando sua irmã caçula se envolve com um soldado pé-de-chinelo que resolve virar traficante. Por meio desse pequeno conto envolvendo humildes e marginais, Escalante faz um raio X de um país tragado pela violência e corrupção, mas sem perder o senso de uma narrativa dinâmica e envolvente, em que o cineasta obtém alguns seqüências antológicas, principalmente pelo vigor da sua encenação detalhista. Dessa maneira, a trama carrega diferentes perspectiva, tanto podendo ser encarara por esse viés social quanto por um caráter simbólico intimista, em que a frustrante vida sexual e a opressão econômico-social que marcam a vida do protagonista Heli (Armando Espitia) parecem encontrar ressonância na sua ânsia por vingança contra aqueles que seqüestraram e violentaram sua irmã. As soluções existenciais buscadas por Escalante não se baseiam em um padrão moralizante, mas em desejos atávicos de justiça e revanche, o que dá para “Heli” uma dimensão humanista impressionante.

quarta-feira, julho 30, 2014

Cães errantes, de Tsai Ming-liang ****


As noções de linguagem e narrativa cinematográficas para o diretor chinês Tsai Ming-liang parecem ficar cada vez mais particulares e arraigadas no seu modus operandi. Para o cineasta, o segredo da tensão dramática e da força imagética de seus filmes vem muito mais da sua encenação minimalista do que da sua montagem de poucos cortes. Esse conceito de cinema chega a um alto grau de depuração em sua obra mais recente, “Cães errantes” (2013). As características opções estética de Ming-liang encontram uma ressonância notável dentro da trama do filme em questão. A história de família de pais e dois filhos ainda crianças, recém abandonados pela mãe, que vaga por uma grande metrópole chinesa sobrevivendo através de subempregos e recursos precários de alimentação e moradia poderia facilmente cair em um viés melodramático caso enveredasse por moldes formais tradicionais. No olhar de Ming-liang, entretanto, essa saga intimista acaba ganhando uma conotação mais cruel e contundente. A poesia visual aparece com frequência, mas através de um registro que extrai um sensorialismo impactante da feiúra desoladora de cenários urbanos ora de assepsia desumanizada de um grande cenário urbano ora em ruínas deprimentes de antigas construções. Ming-liang leva o espaçamento temporal de seus planos-sequência a um limite exasperante, justamente para acentuar o tom de desespero e amargura de suas criaturas. Nesse sentido, “Cães errantes” tanto pode ser encarado como um retrato de expressiva simbologia sobre a conversão da China numa opressiva sociedade consumo como a visão existencial e universal do desconforto do ser humano no mundo moderno.

Tudo por justiça, de Scott Cooper ****



O diretor norte-americano Scott Cooper parece despontar como o novo cronista cinematográfico da macheza, algo como o John Millius da sua geração. Em Coração louco (2009) ele retratava com um misto de crueza e sensibilidade a rotina de hedonismo e autodestruição de um cantor country em decadência no plano comercial, mas que mantinha intacta a inspiração em versos e melodias. Já em sua obra mais recente, Tudo por justiça (2013), esse lado de sensibilidade parece se extinguir de forma inexorável para indivíduos que andam quase à deriva em meio a um país marcado por guerras caças níqueis e falta de perspectivas econômicas para os seus nativos. Como mote de sua estrutura narrativa, a obra de Cooper se vale de uma trama de premissa até simples: a busca de vingança por parte do ex-presidiário e operário boa praça Russel (Christian Bale) contra o traficante e agenciador de brigas clandestinas Harlam (Woody Harrelson) que matou Rodney (Casey Affleck) seu irmão encrenqueiro. O filme se sobressai, entretanto, em detalhes estéticos e temáticos que revelam um olhar cinematográfico acima da média. O cenário que serve como pano de fundo para a sombria história de Tudo por justiça sublinha de forma precisa a essência das criaturas que acolhe: uma decadente cidadezinha de interior norte-americana circundada por montanhas. O registro da fotografia investe em planos amplos e tomadas panorâmicas que, aliado a montagem de moldes clássicos, constrói uma atmosfera sutilmente sufocante e fatalista, estabelecendo um paralelo simbólico entre as densas florestas e ruínas de fábricas com a dura e impenetrável natureza psicológica das personagens. Na realidade, o jogo de metáforas e simbologias é fundamental na encenação proposta por Cooper. Russel, nas horas vagas, é caçador experimentado. Já Harlam é uma verdadeira força da natureza, de índole agressiva que beira o bestial. As seqüências finais, assim, representam o despojamento das convenções sociais e morais – descrente do aparato legal e policial na capacidade de fazer justiça e das esperanças de ter uma vida social estruturada, para Russell só resta a sua vingança, na qual reproduzirá as artimanhas e frieza necessárias na captura e execução de uma fera selvagem. Cooper coreografa tais cenas emulando um sombrio e violento ritual de morte, dando ao seu filme uma conclusão contundente e melancólica, mas extraordinariamente coerente, em que as expressões de serena resignação tanto de Russel quanto Harlam com seus respectivos destinos reforçam ainda mais o caráter perturbador de Tudo por justiça.

terça-feira, julho 29, 2014

O teorema zero, de Terry Gillian ***


É claro que quando se assiste a um filme do homem que deu ao mundo obras-primas como “Brazil, o filme” (1985), “Os doze macacos” (1995) e “Medo e delírio em Las Vegas” (1998) é normal que haja uma expectativa maior. E se alguém for ver “O teorema zero” (2013) pensando em termos de comparações com as produções mencionadas, é provável que se decepcione. Nessa sua obra mais recente, o cineasta Terry Gillian dá uma impressão constante de que está reciclando ideias formais e temáticas que já havia trabalhado de forma mais satisfatória em trabalhos anteriores, como personagens esquisitos e solitários, trama unindo noções de cientificismo e delírio e barroquismo visual. Por mais que haja tal frustração, entretanto, também isso pode ser considerado uma marca autoral do diretor, revelando coerência com suas habituais obsessões estéticas e existenciais. Há de se convir também que por vezes algumas seqüências da obra oferecem algum prazer sensorial, tanto pela concepção visual perturbadora que mistura sujeira e tecnologia quanto pelo humor perverso destilado pelo roteiro, além do elenco que traz composições dramáticas bastante viscerais (Christoph Waltz e David Thewlis impressionam em caracterizações que transbordam idiossincrasias e fragilidade emocional, enquanto Mélanie Thierry é encantadora no seu misto de erotismo sacana e meiguice).

segunda-feira, julho 28, 2014

Vic+Flo viram um urso, de Denis Còté ***1/2


Depois do amorfo “Curling” (2009), o diretor canadense Denis Còté consegue conceber um formalismo mais vigoroso em “Vic+Flo viram um urso” (2013). Em seus primeiros momentos, a obra mantém uma atmosfera rarefeita, investindo num intimismo de talhe clássico envolvendo tanto a difícil adaptação à sociedade da ex-presidiária Victoria (Pierrette Robitaille) quanto o seu conturbado relacionamento lésbico com Florence (Romane Bohringer). A trama se desenvolve num microcosmo que abrange o pequeno sítio em que a protagonista mora e a cidade interiorana que fica perto de sua residência, com Cóté construindo uma narrativa de tons simbólicos a retratar questões como a inadequação social e o preconceito moral. Aos poucos, entretanto, a trama vai ganhando contornos mais sombrios no gênero suspense, principalmente quando entra em cena Jackie/Marina (Marie Brassard), uma sorridente e brutal psicopata, descambando no seu terço final para um misto de erotismo mórbido, demência e violência. A ambiência doentia da obra acaba resultando em algo entre o onírico e o delirante, mas com Còté nunca abdicando de uma estética de fotografia límpida e montagem se alternando em tomadas fixas e discretos planos-sequência, sendo que esse contraste entre clareza formal e temática nebulosa resulta num sensorialismo perturbador.

sexta-feira, julho 25, 2014

O que os homens falam, de Cesc Gay **


A pretensão do diretor espanhol Cesc Gay em “O que os homens falam” (2012) é até alta ao querer fazer uma radiografia da alma masculina na atualidade. Para isso, o cineasta se vale de uma estrutura narrativa episódica, havendo uma variação entre o drama e comédia em cada uma das histórias contadas. Gay busca um equilíbrio entre a crueza e a uma certa leveza cômica ao retratar os dilemas e contradições dos homens na sociedade moderna. Se a intenção dele é louvável, o resultado final, entretanto, fica bastante a desejar. A encenação concebida por Gay, por diversos momentos, é travada, sem fluidez. Personagens falam em demasia e a narrativa não apresenta desenvoltura. Contribui para isso também as concepções estereotipadas do roteiro do filme – em todos os episódios, os homens são retratados como fracos, imbecis e/ou aproveitadores, sendo que todas as mulheres são bem resolvidas em termos de caráter e maturidade. Tal misandria pode até ser divertida por vezes (como na seqüência da discussão em relação a um livro de psicomagia do cineasta e mago Alejando Jodorowiski), mas os seus excessos acabam tornando a produção cansativa nesses exageros simplórios.

quinta-feira, julho 24, 2014

Um episódio na vida de um catador de ferro-velho, de Danis Tanovic **1/2


A proposta artística do diretor bósnio Danis Tanovic em “Um episódio na vida de um catador de ferro-velho” (2013) tem um certo grau de ousadia, ao propor uma linguagem documental e de aparente desleixo formal para contar a contundente história de privações e injustiça social na família de um ex-soldado da guerra dos Bálcãs que no presente trabalha na informalidade. Por vezes, o cineasta consegue extrair alguns momentos de efetiva tensão dramática na sua encenação, estabelecendo em determinadas tomadas uma empatia do espectador diante das agruras de seus personagens. O que prevalece na produção em questão, entretanto, é uma impressão de enfadonho pela excessiva aridez de sua narrativa. Tanovic aposta em excesso na comoção da história que conta, deixando de lado uma elaboração mais envolvente na sua estética, fazendo com que o filme não tenha qualquer sequência efetivamente memorável. O fato de investir numa formatação naturalista não seria excludente na condição de extrair uma poesia mais aguçada no seu olhar ou mesmo um sensorialismo estimulante (vide, por exemplo, alguns clássicos do neo-realismo italiano).

quarta-feira, julho 23, 2014

No limite do amanhã, de Doug Liman ***1/2


O diretor norte-americano Doug Liman é um dos casos mais bem sucedidos na conversão de um ótimo cineasta de produções independentes para um criativo artesão de blockbusters (ou pelo menos pretendentes a esse status). Nos anos 1990, dirigiu dois pequenos clássicos indies, “Swingers” (1996) e “Vamos nessa” (1998), e a partir da década seguinte se dedicou a obras que transitam entre a aventura e o thriller. “No limite amanhã” (2014), seu mais recente trabalho, representa a sua volta à ficção científica, gênero no qual já tinha se dado muito com o excelente “Jumper” (2008). Liman estabelece um ritmo narrativo notável, em que a ação é frenética em alguns momentos, mas sempre preservando uma clareza gráfica, em que se percebe a sua composição detalhista de encenação e bastante longe daquele desgastado método de câmera tremendo e tudo se convertendo num grande borrão. Além disso, o roteiro sabe aproveitar muito bem as possibilidades criativas da temática de viagens no tempo, sem apelar a obviedades excessivas e nem deixando a trama confusa, estabelecendo também um certo senso de humor mórbido e desconcertante (afinal, qual o filme de aventura recente em que o protagonista morre diversas vezes em cena??). No mais, “No limite do amanhã” faz indagar como Liman não foi chamado para dirigir algum episódio na revitalização das franquias “Star Trek” e “Star Wars”...

terça-feira, julho 22, 2014

A culpa é das estrelas, de Josh Boone **


Confesso que a premissa inicial e mesmo o trailer de “A culpa é das estrelas” (2014) me despertaram alguma expectativa. Dois jovens com câncer em estágio avançado se apaixonam e vivem um caso de amor com os dias contados... Ora, convenhamos: há um certo grau de morbidez ultraromântica que beira o atípico para essas produções românticas adolescentes. O resultado final do filme, entretanto, fica bem distante de um possível tratamento mais criativo e perverso. A narrativa é fortemente esquemática, fazendo com que a cada cinco minutos venha alguma edificante lição de vida, retirando qualquer traço de espontaneidade e virulência que uma história de amor de romantismo desesperado poderia ter. O tratamento formal proposto pelo diretor Josh Boone contribui para essa atmosfera de assepsia da produção, com fotografia e montagem evocando uma estética de cartão-postal esmaecido, contrabalançada pela trilha sonora esperta de canções indie rock e algumas tiradas engraçadinhas do roteiro. Ou seja, fácil de ver, também fácil de esquecer.

segunda-feira, julho 21, 2014

Como treinar seu dragão 2, de Dean DeBois ***


No bastante povoado e disputado panorama das animações contemporâneas, a franquia “Como treinar o seu dragão” consegue se destacar com naturalidade. Nessa continuação lançada no corrente ano, ainda que não mantenha o mesmo ritmo narrativo e tenha soluções de roteiro mais convencionais do que a primeira parte, o diretor Dean DeBois mantém boa parte daquilo que o filme anterior tinha de melhor: a densidade dramática, a boa mão para as cenas de ação, a beleza deslumbrante do traço em algumas passagens e até mesmo doses consideráveis de violência sombria, atípicas para as produções infanto-juvenis do gênero (a cena em que o pai do protagonista é morto pelo dragão desse último, por exemplo, chega a ser surpreendente pelo nível de brutalidade e tensão).

sexta-feira, julho 18, 2014

Alabama Monroe, de Felix Van Groening ***1/2


Uma produção belga cuja trama traz protagonistas que são músicos fanáticos por bluegrass já deixa claro logo de cara que se trata de algo um tanto atípico. “Alabama Monroe” (2012) aprofunda suas idiossincrasias ainda mais. Ainda que sua narrativa tenha um talhe clássico e sua concepção visual apresente uma limpidez de forte encanto, o filme propõe uma verdadeira montanha russa sensorial para o espectador. Há idas e vidas constantes no tempo narrativo, fazendo com que essa alternância entre passado e presente evoque sentimentos intensos e contrastantes entre desejo, harmonia familiar, morte e redenção, tudo isso para ilustrar uma história que tem por tema principal o questionamento tanto da fé religiosa quanto do racionalismo exacerbado. Assim, o filme transpira tanto uma forte carnalidade na crueza do seu erotismo e na violência dos embates emocionais entre o casal de protagonistas quanto um misticismo epifânico nas soluções intimistas do roteiro. Essa constante dualidade da obra traz um caráter perturbador e também cativante, atmosfera ambígua essa que mais se acentua pelos celestiais números musicais que permeiam a narrativa.

quinta-feira, julho 17, 2014

O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson ***1/2


O formalismo bastante particular do diretor Wes Anderson permanece intacto em “O Grande Hotel Budapeste” (2014). O que há de diferente nessa mais recente produção do cineasta norte-americano é que ele adequa o seu habitual estilo de narrativa dentro do gênero dos filmes de guerra e espionagem. O resultado final é divertido e estimulante. Anderson abusa do refinamento de sua estética – suas composições visuais são detalhistas e de tons pictóricos, remetendo a quadros antigos do final século XIX e do início do século XX, além de uma encenação originalíssima no seu misto de naturalismo e toques teatrais. Tais noções artísticas se expandem numa forma de filmar e editar que trazem um forte traço de cerebralismo e sutileza e que se mostra em perfeita sintonia com o próprio espírito da trama, em que o tom de comédia levemente amalucada de mal entendidos e reviravoltas, típicas de uma história de espionagem, esconde um subtexto sofisticado no seu conteúdo melancólico e lúcido sobre a natureza das relações humanas. Aliás, nesse sentido temático, “O Grande Hotel Budapeste” é um dos trabalhos de Anderson cujo caráter humanista fica mais nítido, principalmente no belo elogio que faz da civilidade – o protagonista M. Gustave (Ralph Fiennes, em sua melhor interpretação em anos), por mais picareta que possa ser ao seduzir inúmeras senhoras ricas, sempre mantém como norma de conduta um comovente respeito pela dignidade humana. A seqüência, por exemplo, em que ele se desculpa com o parceiro Zero (Tony Revolori) por uma ríspida explosão emocional é de uma pungência poética.

O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese ****



Uma obra como O lobo de Wall Street (2013) é impossível de dissociar do seu contexto histórico. Vendo o filme de Scorsese, não há como não fazer associações em relação à crise econômica que estourou nos Estados Unidos em 2008 e se disseminou de forma implacável pelo resto do mundo, perdurando os seus efeitos até os dias de hoje. Por mais que analistas gastem o seu “economês”, a verdade é que tal “crack” teve por origem causas cujas razões não são tão incompreensíveis assim para leigos: mercado financeiro desregulamentado, especulações diversas atrás de lucro fácil, consumismo exacerbado, a ascensão social a qualquer preço vista quase como religião. De certa forma, seria a distorção de todos aqueles valores tomados como verdades incontestáveis no mundo ocidental, principalmente no pós-queda da União Soviética – a de que os mercados livres se auto-regulariam de forma natural, a de que bastaria o cidadão comum trabalhar sem o Estado atrapalhar para que ele fosse “bem sucedido”. Mas e se tudo isso não for distorção e apenas a consequência natural ao culto do individualismo? De qualquer forma, a crise econômica de 2008 (assim como outras que existiram na história mundial) acaba ganhando a conotação metafórica de ser o inferno do capitalismo, o momento em que as suas culpas estão sendo expiadas. Ora, e de culpa, expiação e inferno o cinema de Martin Scorsese entende muito bem! Na abertura de O lobo de Wall Street ele já procura sintetizar a essência de seu filme: começa com uma peça publicitária asséptica, louvando a respeitabilidade e a tradição da empresa de corretagem de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), para logo depois cortar em uma orgia nos escritórios da tal firma, onde o ápice consiste num torneio de arremessos de anões. O contraste entre o discurso hipócrita marqueteiro de moralidade e a realidade de puro hedonismo amoral nesse pequeno truque de edição pode até ser considerado um recurso barato, mas é eficiente e perturbador no efeito de causar sensações tanto de repulsa quanto de atração pelo mundo enlouquecido de picaretagens, sexo e drogas de Belfort. E é com base em tal ambiguidade que Scorsese norteia todo o seu vasto arsenal formal e temático ao longo das três horas de duração da sua mais recente produção.

É recorrente entre público e crítica a comparação que se faz entre O lobo de Wall Street e uma das mais estimadas obras de Scorsese, Os bons companheiros (1990), tendo em vista o fato de ambas as produções se basearem numa estrutura narrativa no estilo ascensão, apogeu e queda de um protagonista de moral e comportamento duvidosos. Tal relação procede, mas se a análise for mais minuciosa se poderá observar que esse tipo de abordagem é até habitual na trajetória do diretor. Afinal, O touro indomável (1980) e Cassino (1995) também obedeciam a tal preceito de estruturação de trama. Na verdade, O lobo de Wall Street não resgata apenas essa característica do cinema de Scorsese – também retorna a outras das suas obsessões estéticas e temáticas, já bastante delineadas em outros de seus filmes. Não se trata, entretanto, de mera reciclagem. Nessa nova empreitada, o cineasta filtra o seu conhecido material autoral sob uma ótima muito mais exagerada, chegando às raias do grotesco. As nababescas festas patrocinadas por Belfort, por exemplo, parecem um circo de freaks onde quase todas as depravações imagináveis podem se tornar realidade. Nesse sentido, esse pendor para o barroquismo bizarro, que Scorsese já havia tangenciado em O cabo do medo (1991), remete a uma influência daquele Fellini no auge de seus delírios visuais (Satyricon, Julieta dos espíritos) e a uma aproximação do virtuosismo de extremos de Brian De Palma em Scarface (1983) e O pagamento final (1993). E chega até ser engraçado que toda essa fúria sensorial de O lobo de Wall Street tenha vindo logo depois de uma obra bem mais doce e comportada que foi A invenção de Hugo Cabret (2011) – é como se Scorsese dissesse que nunca será domesticado.

À pretensão de O lobo de Wall Street não é explicar didaticamente as picaretagens praticadas no sistema financeiro da bolsa de valores ou expor com detalhes as razões da já mencionada crise econômica – para isso, já existem documentários esclarecedores como Capitalismo: Uma história de amor (2009) ou Trabalho interno (2010). A intenção é mais sutil e ambiciosa: é radiografar a alma de uma geração. Ao narrar os trambiques de Belfort na bolsa de valores e o seu hedonismo sem limites, o filme envereda por uma perspectiva que foge dos padrões moralistas óbvios quando se toca em assuntos como ambição econômica desmedida e comportamentos dionisíacos – a queda do anti-herói não traz a ideia de arrependimento típica de uma parábola moral. O conceito de culpa é muito mais nebuloso que aquele que o cristianismo nos ensina, e aí se chega a um ponto chave que norteia grande parte dos trabalhos de Scorsese. Jack LaMotta de O touro indomável, Henry Hill de Os bons companheiros, Sam Rothstein de Cassino e agora Jordan Belfort são retratados como sociopatas. Sendo assim, como se pode falar em culpa? E no caso de Belfort, talvez isso seja mais perturbador, pois até ser preso seu comportamento é aceito perante a sociedade que o cerca como legítimo, dentro daquele ideal em que o que interessa é “vencer na vida” dentro de um ambiente competitivo. Ou seja, o velho jogo entre predadores e presas dentro de uma selva moderna (e onde tais presas nem são tão vítimas assim). Não à toa, as primeiras lições que Belfort recebe de seu mestre Mark Hanna (Matthew McConaughey) são resumidas num canto de selva, com direito a batidas no peito estilo Tarzan.

E se O lobo de Wall Street representa uma espécie de conto de fadas perverso da deterioração do tão decantado sonho americano, dentro dessa linha conceitual mais coerente em termos artísticos e existenciais se torna a colaboração constante entre Scorsese e DiCaprio. A persona deste último sempre foi ambivalente, num sentido em que a sua aura de babyface carismático e transbordando autoconfiança, de certa forma o modelo imagético do imaginário do que o indivíduo norte-americano deveria ser, também esconde um lado obscuro, sombrio. Assim era o magnata visionário e obsessivo de O aviador (2004), o angustiado policial de Os infiltrados (2006) e o investigador/paciente psiquiátrico de A ilha do medo (2010). E a mesma construção dramática se aplica para Jordan Belfort, personagem cativante com as vítimas de suas falcatruas, generoso e paternal com seus sócios e subordinados, e que não hesita um segundo quando se trata de dar um golpe para ganhar uma boa grana. DiCaprio encarna com espantosa naturalidade tais facetas, indo de momentos de refinado cinismo até cenas de puro humor físico que beiram o pastelão. De lambuja, tem um parceiro de cena em absurda sintonia – Jonah Hill parece em possessão no papel de Donnie Azoff, sócio de Belfort, numa caracterização assustadora que oscila entre o hilário e o doentio.

Mais que um delírio opulento a retratar uma malfadada saga individual, O lobo de Wall Street é o retrato épico e sarcástico de uma época. Se Gangues de Nova Iork (2002) mostrava os primitivos passos da constituição moral e cultural não só de uma cidade mas também de uma nação em meio a barbárie e violência, em sua obra mais recente Scorsese mostra que nas entrelinhas de discursos, condutas e vestimentas ditos civilizados se esconde ainda a lei da selva.

segunda-feira, julho 14, 2014

O conselheiro do crime, de Ridley Scott ****



Junto a Prometheus (2012), O conselheiro do crime (2013) se configura como uma inesperada guinada na filmografia de Ridley Scott. Por mais que tenha atingido um alto grau de excelência artística em alguns de seus filmes anteriores, o diretor britânico sempre foi daqueles adeptos de uma narrativa clássica, tendo por foco “contar uma história”. Ocorre que Prometheus era uma obra bastante problemática em termos de roteiro, fruto dos conflitos criativos entre Scott e os produtores do filme, mas que compensava em termos de narrativa e requinte visual. O diretor enveredou por um cinema mais sensorial, elaborando atmosferas inquietantes, sombrias, e fazendo com que a produção mais estivesse para o terror gótico do que para a ficção científica. Nessa obra mais recente, o cineasta permanece com tal abordagem formal, só que agora aplicada para o gênero policial. O resultado é uma das coisas mais esquisita e inquietante a sair nos cinemas recentemente.

A trama de O conselheiro do crime é praticamente um fio de história – uma transação de drogas que dá errado, fazendo com que um advogado almofadinha (Michael Fassbender), um chefe de crime (Javier Barden) e um intermediário (Brad Pitt) fiquem marcados para morrer por um cartel mexicano. Só que para rechear o roteiro Scott contou com um mestre bastante inspirado, o cultuado escritor Cormac McCarthy. E o cara se esbalda! A concepção de texto foge completamente dos padrões vigentes para o gênero, beirando genialmente o irreal em alguns momentos – é como se Shakespeare baixasse no meio de um monte de bandidos pés-de-chinelo e peruas na fronteira entre os Estados Unidos e o México, dando um irônico ar trágico e fabular para um ordinário conto policial. O conceito da banalidade do mal está entranhado nos detalhes do texto. Numa determinada passagem, um assassino profissional elabora um minucioso plano para decepar um motoqueiro numa estrada. Poucas seqüências depois, o mesmo assassino morre de forma nada épica, como se fosse apenas uma casualidade. Os diálogos são sinuosos – as personagens conversam, filosofam, tergiversam, em falas carregadas de sutis simbologias. Nesse sentido, situações que parecem aleatórias e gratuitas aos poucos adquirem outras conotações, ganhando significados metafóricos fascinantes. As cenas de sexo entre as personagens de Fassbender e Penelope Cruz, por exemplo, que trazem desenvoltura e erotismo atípicos para os padrões habituais do cinemão norte-americano, oferecem uma dimensão humana extraordinária em meio a sordidez e crueldade que permeiam a trama. A conversa ao telefone entre o advogado e um chefão mexicano (Ruben Blades), que representa a definitiva condenação do primeiro, é quase como se fosse um teatro do absurdo: são quase 10 minutos de um longo discurso sobre as inevitabilidades do destino, em que se sabe desde o início do papo que o advogado se deu mal, e mesmo assim ele permanece ao telefone ouvindo aquela ladainha, numa tortura mental de tons delirantes. E a conclusão de O conselheiro do crime é brilhante na sua coerência com tudo o que foi mostrado até então – o diálogo de tom casual da traiçoeira Malkina (Cameron Diaz) com um comparsa é anti-climático, mas também sintetiza com perfeição o espírito cínico de toda a trama.

Se em Prometheus Ridley Scott se virava com brilhantismo em meio a um roteiro pouco consistente, em O conselheiro do crime ele valoriza cada palavra da história concebida por McCarthy. A verborragia latente do filme não o torna “literatura filmada”. Pelo contrário – Scott novamente mostra atenção especial para a construção de uma atmosfera sombria, o que acaba gerando um contraste perturbador com os cenários por vezes bastante luminosos na fronteira árida onde a trama se desenvolve. O tom predominante da narrativa não é o ostensivo, com o diretor privilegiando silêncios, olhares furtivos, diálogos circulares (em algumas oportunidades, as personagens parecem falar sobre tudo, menos sobre o que está acontecendo em cena), tomadas de tom documental, discretos temas musicais. No meio desse aparente sereno formalismo, quando a ação e a violência irrompem é de forma econômica e impactante, sem que Scott apele aos clichês do gênero. Ninguém mata ou morre de forma heróica, com o diretor registrando tiros e decepamentos com uma secura emocional impressionante e enfatizando muito mais o lado grotesco, sangrento e algo ridículo de tais mortes. O conselheiro do crime também representa um dos trabalhos de Scott em que ele melhor aproveitou o potencial de seu elenco. Michael Fassbender faz um trabalho de notável composição dramática (a cena em que sua personagem descobre que a transação deu errado, percebe que está com os dias contados e começa a chorar é um primor de desespero e ironia), enquanto Cameron Diaz tem a interpretação de sua vida ao construir uma figura que varia sem cerimônias entre o sensual, o vulgar e o perverso.

Admiradores de Ridley Scott podem dizem que ela já tinha deixado a sua marca no gênero policial com O gangster (2007), mas O conselheiro do crime representa mais que uma variação de algo que ele já tinha feito antes. Evidencia, também, um veterano cineasta que ainda é capaz de se reinventar de forma mais que convincente e oferecer alguns caminhos e ideias arejados em meio a tantas repetições de fórmulas e obviedades.

sexta-feira, julho 11, 2014

Os Muppets 2: Procurados e amados, de James Bobim **1/2


Quando os carismáticos bonecos retomaram suas aventuras em “Os Muppets” (2011), havia um certo frescor nessa volta, até porque o universo de histórias dos personagens que oscilavam na ingenuidade e citações irônicas à cultura pop acabava se mostrando até como novidade no meio de produções para o público infantil que esbarravam com frequência no óbvio. O sucesso do filme tornou o surgimento de uma continuação bastante natural. E no conceito de tais figuras, até isso rendia uma boa tiração de sarro. Assim, logo na abertura de “Os Muppets 2 – Procurados e amados” (2014) há um número musical bem humorado em que Caco e sua trupe fazem um comentário sardônico auto-depreciativo sobre o oportunismo de se realizar uma continuação, num belo exercício de metalinguagem. Tirando a ousadia desse início, entretanto, a produção trafega por vias mais previsíveis. É claro que não daria para esperar vôos mais altos do capítulo de uma franquia lucrativa, e o que os fãs dos personagens querem mesmo é vê-los fazendo as patetices e piadas que estamos acostumados. O problema, entretanto, é que a zona de conforto em que o filme se instala faz com que logo após a sua conclusão pouca coisa fique na cabeça do espectador.

quinta-feira, julho 10, 2014

Dominguinhos, de Mariana Aydar, Eduardo Nazarian e Joaquim Castro ***1/2

Assim como em "Olho nu" (2012), o documentário "Dominguinhos" (2014) se constrói como narrativa biográfica a partir de uma linguagem mais livre e sensorial. O recurso de depoimentos é utilizado com intensidade, mas a partir de trechos de entrevistas derivadas de material de arquivo. Os comentários de Dominguinhos sobre a sua vida e arte e os ótimos números musicais compõem um fascinante mosaico intimista e artístico, mostrando com sensibilidade as diferenças nuances da sua musicalidade (que vai do tradicional pé-de-serra até a uma abordagem que se aproxima do jazz), bem como o fato das suas experiências de vida estarem intrinsecamente ligadas à própria natureza dualista de melancolia e alegria de suas canções e interpretações. E também como na já mencionada obra que tem Ney Matogrosso como protagonista, os diretores Joaquim Castro, Eduardo Nazarian e Mariana Aydar procuram usar a vida e arte do seu protagonista como uma espécie de radiografia do sentimento e espírito de um povo - a música mestiça de Dominguinhos também reflete a natureza nômade de retirantes nordestinos na busca de uma vida mais próspera no "sul maravilha", e que resultou também na tremenda diversidade de ritmos e melodias que grassam no nosso cancioneiro, indo do telurismo de Quinteto Violado, Banda de Pífanos de Caruaru e Luis Gonzaga e chegando no universalismo de Gilberto Gil e Nara Leão (todos presentes no documentário em questão).

quarta-feira, julho 09, 2014

Malévola, de Robert Stromberg **1/2

É uma tendência no cinema norte-americano contemporâneo a intenção de realizar obras de fantasia que tragam uma pretensão visão adulta sobre clássicas lendas infantis ou conto de fadas, buscando um verniz psicanalítico ou sociológico sobre tais narrativas. De certa forma, é como se buscasse uma forma de legitimar essas históricas como arte séria (como se elas precisassem de algo assim...). Ou simplesmente pode ser encarado como uma nova forma de ganhar um dinheirinho recontando as velhas histórias de sempre. Nesse sentido, a presença de Robert Stromberg na direção de "Malévola" não é gratuita, pois ele esteve envolvido nas produções de "Alice no país das maravilhas" (2010) e "Oz, mágico e poderoso" (2013), obras que traziam também esse caráter revisionista. Nessa nova versão para as aventuras e percalços da Princesa Aurora (também conhecida como A Bela Adormecida), a trama até ganha uma conotação mais mundana: a bruxa Malévola (Angelina Jolie) se tornou má porque foi traída pelo grande amor de sua vida, o Rei Stefan (Sharlto Copley), pai de Aurora (Elle Fanning), o que justificaria a maldição da feiticeira para a princesa. Mas aquilo que poderia ser o conto de fada revisto sobre uma perspectiva mais sombria e simbolista acaba caindo para um banal tom novelesco politicamente correto. O filme tem os seus méritos, principalmente nas boas trucagens e na riqueza da caracterização visual de algumas sequências, mas a narrativa é rala na capacidade de constituir uma tensão dramática eficiente. E a canastrona atuação de Jolie não colabora muito... Por vias das dúvidas, é melhor ficar mesmo com a versão desenho animado da Disney.

terça-feira, julho 08, 2014

Olho nu, de Joel Pizzini ***


No meio de tantos documentários tendo a música como temática no panorama cinematográfico nacional contemporâneo, “Olho nu” (2012), obra que foca a carreira e o pensamento do cantor Ney Matogrosso, destaca-se pela narrativa insólita concebida pelo diretor Joel Pizzini. Ao invés de se concentrar numa estrutura linear e convencional, o diretor optou por uma estética que emula uma espécie de sensorialismo, como se os fatos e números musicais viessem num fluxo de lembranças e ideias. Há até uma ordem cronológica na exposição de fatos e canções, com Pizzini utilizando diversos trechos de entrevistas e shows com o seu protagonista, mas talvez a preocupação maior é como esses audiovisuais se relacionam com o imaginário do espectador e do próprio Brasil. Matogrosso sempre navegou por uma fronteira muito tênue entre o sofisticado e o exagero kitsch, num dilema que revela muito da própria essência da cultura brasileira. Assim, tanto a sua plateia podia delirar com ele interagindo com as dançarinas do Chacrinha quanto se comover com a sutileza de suas interpretações de clássicos do nosso cancioneiro tendo o acompanhamento de músicos como Arthur Moreira Lima, Raphael Rabello e Paulo Moura. Pizzini tem o indiscutível mérito de saber sintetizar em “Olho nu” essa essência controversa da arte de Matogrosso, resultando em uma obra que tanto pode fascinar antigos admiradores do cantor quanto estimular uma revisão de sua música por neófitos (aliás, logo após assistir ao filme, vi gente falando em ir atrás de discos de Matogrosso).

segunda-feira, julho 07, 2014

Oslo, 31 de agosto, de Joachim Trier ***1/2


Baseado na mesma obra literária francesa que deu origem à obra-prima cinematográfica “30 anos esta noite” (1963), “Oslo, 31 de agosto” (2011) busca uma abordagem diferente do clássico de Louis Malle. Se neste último a saga das últimas 24 horas de alcoólatra em recuperação possuía um viés de poética melancolia (acentuada pela trilha sonora repleta de temas marcantes de Erik Satie), no filme norueguês de Joachim Trier a jornada do protagonista ganha uma conotação diferente. Isso porque os sentimentos de inadequação e desesperança do toxicômano Anders (Anders Danielse Lie) apresentam um sentido de desafio e questionamento. Passo a passo, o personagem vai constando que o mundo que lhe oferecem para sua “regeneração” não é tão atraente: empregos vazios, vida social e rotina marcadas por relações superficiais. O que era para ser uma suposta redenção vai se revelando apenas como uma forma de opressão ainda mais angustiante. Nas seqüências finais, em que Anders dedica as suas últimas horas a momentos de hedonismo e aos preparativos de do seu suicídio, é como se o protagonista tivesse o seu momento de desconcertante e amarga iluminação. O estilo impresso por Trier na condução da narrativa é contundente, recorrendo a poucos efeitos e a uma atmosfera de distanciamento emocional, o que faz com que o filme tenha por vezes um tom de ironia amarga desconcertante e mesmo nas tomadas que mostram a overdose intencional de Anders a produção ganha um inesperado clima de lirismo.

sexta-feira, julho 04, 2014

A longa caminhada, de Nicolas Roeg ****


Um dos focos principais na temática de “A longa caminhada” (1970) é bastante claro: o confronto e as contradições na relação entre a civilização urbana e a natureza selvagem a um ponto em que as próprias noções de civilidade e violência se confundem. A narrativa concebida pelo diretor Nicolas Roeg para ilustrar tais dilemas fogem do óbvio. Por mais que se questione as regras comportamentais e hipocrisias do homem moderno nas grandes metrópoles, em nenhum momento dá para dizer que a visão do filme sobre a natureza é idealizada e maniqueísta – esta é vista tanto sob um ângulo de encanto quanto por uma perspectiva de mistério e brutalidade. Por mais que esse conflito homem versus natureza já tenha sido diversas vezes explorado na literatura ou cinema, poucas vezes recebeu um tratamento de tamanha crueza e poesia quanto em “A longa caminhada”. Roeg sugere um olhar que busca mais sensações atávicas do que um racionalismo a explicar as ações e reações nebulosas de seus personagens. Os particulares códigos de condutas do aborígine que salva e conduz dois irmãos pelo inóspito deserto australiano são tão difíceis de decifrar quanto as atitudes homicidas (e suicida) do elegante inglês que tenta matar seus filhos (os referidos irmãos). Mais do que buscar soluções fáceis para os enigmas do filme, para Roeg é mais interessante a construção de uma estranha atmosfera que combina erotismo, morbidez, violência e contemplação. Sua encenação e seu registro audiovisual possuem uma coesão notável ao adotar tanto um estilo documental e de distanciamento emocional quanto uma estética que emula um onirismo desconcertante.

quinta-feira, julho 03, 2014

Avanti Popolo, de Michael Wahman ***1/2


A sequência de abertura de “Avanti Popolo” (2012) é uma bela e contundente síntese da proposta artística da obra em questão: em um registro visual de perspectiva subjetiva, um carro vaga pelas ruas de um bairro popular paulista, enquanto ouve na rádio um programa entrecortado por insólitas canções e esquisitas intervenções em “portunhol” de seu locutor. O estilo de filmar e editar tais tomadas é seco e sem efeitos, mas provoca um sensorialismo de encanto perturbador, como se induzisse ao espectador a impressão de uma certa viagem onírica por um sombrio universo. A partir dessa abertura, “Avanti Popolo” se estende por uma estranha combinação de crônica familiar, obra política e discussões estéticas, sempre permeado por um verniz de melancolia e desilusão. A narrativa navega por um limite entre a encenação naturalista e uma atmosfera surreal – nesse último caso, principalmente por alguns irônicos diálogos sobre a beleza de hinos nacionais ou apresentando um novo “dogma” cinematográfico. O diretor Michael Wahrman não teme aprofundar esse hibridismo formal/temático, fazendo dele a força motriz de sua produção e que realça ainda mais os aspectos dramáticos do filme (a solidão da velhice, a incomunicabilidade entre gerações, o desencanto com as ideologias, a busca pela pura beleza artística).

quarta-feira, julho 02, 2014

Tim Lopes: Histórias do arcanjo, de Guilherme Azevedo **1/2


O fato do roteirista de “Tim Lopes: Histórias de arcanjo” (2013) ser filho do biografado acaba pesando de forma negativa para o documentário. Não exatamente pelo fato de que isso tiraria o caráter objetivo da obra, mas sim porque dá uma impressão de falta de foco da produção: o importante seria contar a história de vida do repórter ou o buraco na relação com o seu filho devido à sua morte prematura? A relação emocional de Bruno Quintella com a temática de seu roteiro, por vezes, dá um certo tom condescendente à narrativa e até impede que algumas questões pertinentes sejam aprofundadas, principalmente no que diz respeito à responsabilidade da Globo na morte de Tim Lopes. É inegável, entretanto, que o filme tem uma capacidade forte de encanto, sendo que isso acontece pela força da história de Lopes. Os “causos” contados ao longo do documentário por amigos, colegas e aparentes beiram o inacreditável tamanha a sagacidade e cara-de-pau do protagonista, tudo isso ilustrado por farto material de arquivo. No final das contas, é capaz do público não se questionar tanto pelos motivos de seu assassinato por traficantes em 2002, mas sim pelo fato de como isso não tenha acontecido antes diante do apetite de Lopes por matérias perigosas com alto risco de vida.

terça-feira, julho 01, 2014

Getúlio, de João Jardim **


Em 1993, a TV Globo lançou uma das melhores produções que apareceram em sua programação, a minissérie “Agosto”, baseada em um extraordinário romance de Rubem Fonseca. A trama trazia uma história policial ficcional que se enleava de forma notável com fatos históricos relacionados ao tenebroso mês de agosto de 1954, indo do atentado a Carlos Lacerda e chegando no suicídio de Getúlio Vargas. O programa televisivo em questão não economizava na tensão e na violência, além de apresentar um trabalho de caracterização dramática de personagens e direção de arte antológicos, que pareciam realmente resgatar o espírito de uma época. Dessa forma, chega a ser engraçado que tenha sido a Globo Filmes que tenha produzido “Getúlio” (2013), filme que faz a recriação dramática dos marcantes fatos daquele agosto de 1954. Isso porque essa versão cinematográfica tem um forte caráter asséptico no seu formalismo, naquela linha de produção que se pretende “séria” e não quer chocar as plateias. Walter Carvalho é o melhor diretor de fotografia brasileiro em atividade, mas a visual que concebeu no filme é clean em excesso e anódino, o que aliado às interpretações burocráticas do elenco dá a constante impressão de uma produção despersonalizada e que já nasceu datada. Além disso, a parte temática peca por uma visão simplória e maniqueísta das situações apresentadas – na ótica do filme, é como se Getúlio tivesse se suicidado por um suposto medo de ser preso. Assim, uma produção que era para ser mais ousada acaba sendo muito mais conformista que uma minissérie televisiva de vinte anos atrás.