O veterano e autoral cineasta alemão Werner Herzog realizando uma refilmagem de uma clássica obra policial obscura do também autor Abel Ferrara pode parecer algo meio esdrúxulo. O resultado final de “Vício Frenético” (2008), entretanto, mostra-se perfeitamente coerente com as particulares concepções estéticas de Herzog.
Inicialmente, cabe ressaltar que da obra original de 1992 preservou-se basicamente apenas a premissa inicial do roteiro: o tenente Terence McDonagh (Nicolas Cage), policial viciado e endividado, porém dotado de uma perturbadora ética católica, vê na investigação de um crime bárbaro uma possibilidade de redenção moral para os seus pecados. As situações presentes na trama e a conclusão da mesma na versão de Herzog são diferentes daquelas da produção de Ferrara.
Em boa parte dos filmes de Herzog (“Aguirre – A Cólera do Deuses”, “Nosferatus”, “Fitzcarraldo”, “O Homem-Urso”, “O Sobrevivente”) há uma obsessão temática na forma de retratar a natureza selvagem e em como esse ambiente se relaciona com os próprios personagens. A visão do cineasta germânico sobre essa natureza não é idealizada, contemplativa e edificante – pelo seu olhar, a mesma é misteriosa, impenetrável, ameaçadora e pronta para devorar a humanidade. Não à toa, ele situou “Vício Frenético” em uma Nova Orleans pós-Katrina, recém destruída pela fúria de um furacão. Assim, a cidade converte-se numa agressiva selva urbana, e é dentro desse inferno que Terence se arrasta numa tenebrosa, e por vezes hedonista, rotina de sexo, drogas, delírios e morte. A abordagem de Herzog para a trajetória do protagonista evita (ou perverte) os lugares comuns inerentes ao gênero policial, trazendo para a obra um estilo de filmar barroco, quase operístico, ao retratar a decadência moral e física de Terence. Movimentos de câmera e enquadramentos oferecem uma fascinante dimensão épica à jornada do tenente, indo de closes que captam com perfeição a variação do estado mental do tenente de acordo com suas expressões faciais até tomadas amplas de ruas e becos sórdidos.
Joga-se constantemente com a dicotomia degradação-prazer – Terence parece sofrer com o rumo vertiginoso que a sua vida toma, mas ao mesmo tempo deleita-se com os seus vícios e abusos de autoridade: achaca moral e sexualmente usuários de entorpecentes, intimida testemunhas, desvia para si mesmo drogas apreendidas, prende meliantes de quinta, namora uma luxuriante prostituta de luxo (Eva Mendes), pactua com traficantes de drogas. Herzog joga o espectador, por vezes, dentro da mente do tenente, partilhando-se de um olhar em que a realidade e a fantasia se mesclam, o que acaba proporcionando algumas das mais memoráveis seqüências de “Vício Frenético”, como aquela em que iguanas “comentam” o que está acontecendo nas telas ou quando Terence enxerga a alma de um bandido recém morto dando seus suspiros finais dançando hip hop!
Herzog desconcerta progressivamente o espectador ao se mostrar distanciado da lógica católica do seu protagonista, não partilhando da crença que as atitudes questionáveis do mesmo tenham de levá-lo a um fim trágico, assim como o ato inicial de Terence em sacrificar sua integridade física para salvar um presidiário prestes a se afogar na cela não garante uma recompensa moral para o primeiro (pelo contrário: ele lesiona as costas e ganha dores que o atormentarão por toda a sua vida). Mesmo quando atinge seu objetivo de prender os culpados do massacre de uma família, não há a tão sonhada redenção para ele. Herzog descarta soluções místicas ou religiosas para aliviar as culpas de Terence. Além do mais, o próprio cineasta parece não acreditar muito no conceito de “culpa” ao rechear de ironia cenas de brutalidade perturbadora e ao não apresentar um final moralizante para sua obra.
Diante de todo esse tratamento formal e temático inquietante, “Vicio Frenético”, provavelmente, é a mais bem sucedida obra de Herzog filmada nos Estados Unidos, justamente por preservar a sua integridade autoral dentro de um padrão tradicional de cinema comercial.
P.S.: curiosamente, o extraordinário “Olhos de Serpente”, filme de 1993 de Abel Ferrara, já trazia uma estranha participação de Herzog, em um trecho de depoimento em que o alemão dava uma contundente declaração de descontentamento com o ato de realizar filmes.