Os belos e grandes planos retratando campos e planícies que
abrem “Dívida de honra” (2014) até podem sugerir uma certa atmosfera nostálgica
e de exaltação do gênero faroeste. Essa notável composição plástica da direção
de fotografia do trabalho mais recente de Tommy Lee Jones como cineasta é
enganadora de forma perversa, conforme se perceber pelas intenções temáticas do
cineasta com o desenrolar da narrativa. Qualquer pretensa visão de idealização
cai por terra quando se evidencia um olhar cruel e sem concessões sobre a
atmosfera de opressão moral e da dureza das condições geográficas do oeste
norte-americano do século XIX. Jones foca a sua trama num grupo de mulheres que
se desintegram mentalmente diante de um ambiente marcado pelo obscurantismo
religioso, a rudeza comportamental de uma sociedade machista e mesmo o fator
climático inóspito. A obra não oferece redenção para os seus personagens – o oeste
que Jones recria é um lugar onde os fracos e sensíveis não tem vez. Para esses,
resta apenas a loucura e a morte. Apesar do tom deprimente de tal abordagem, o
diretor se permite construir uma obra repleta de sutil ironia e de humanismo
cortante. Ele já havia realizado uma bela atualização dos preceitos clássicos
do faroeste ao os adaptar para a época atual no extraordinário “Três enterros”
(2005), sendo que em “Dívida de honra” ele oferece uma perspectiva renovada e
contemporânea para um gênero que já era considerado anacrônico. Recusando usar
alguns clichês básicos do estilo, como duelos ou uma estética grandiosa, Jones
acabou realizando um filme impactante e atemporal no modo lúcido e impiedoso
com que disseca os valores de uma época.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
terça-feira, março 31, 2015
segunda-feira, março 30, 2015
Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós ***
Talvez a grande força de “Branco sai, preto fica” (2014)
esteja muito mais na expressividade do seu conceito do que na sua execução
formal. Trata-se de uma manifesto cultural e político contundente nos elementos
e influências diversos que combina. Em um primeiro momento, o filme do diretor
Adirley Queirós se vincula ao gênero da ficção científica. Só que o cineasta
trata isso muito mais como uma ideia do que uma estética em si – os itens da
direção de arte que remetem ao gênero estão ali apenas como uma representação
que beira o teatral. O espectador tem de comprar essa abstração que não se liga
a uma encenação realista. Nesse sentido, Queirós demonstra uma sintonia
existencial e artística com obras de exceção dentro do cinema brasileiro como “A
idade da terra” (1980) e alguns trabalhos de Rogério Sganzerla, em que uma
certa fuleiragem visual representa uma espécie de declaração de fé cultural
terceiro-mundista. Entretanto, também há dentro do filme uma idéia de
sofisticação no seu discurso e estética, com a narrativa abarcando preceitos do
cinema documental dentro daquilo que era para ser ficcional, além de um
esmerado apuro plástico na direção de fotografia em termos de enquadramentos e
composições cênicas. Dentro de toda essa concepção que revela um pendor para o
cerebralismo também há espaço para um caráter de arte popular que se revela nos
funkeados temas da trilha sonora e nas interpretações cheias de espontaneidade
do elenco. O resultado do cruzamento de todas essas ideias é irregular – a
narrativa se perde por vezes nos devaneios de Queirós, mas em outros momentos cativa pelo seu encanto imagético e pela lúcida ferocidade de seu discurso de
revolta e ironia. Talvez essa alternância de percepções seja a melhor forma
para que “Branco sai, preto fica” expresse com mais intensidade a complexidade
e o incômodo da sua temática: a maneira perversa e hipócrita com que o racismo
está infiltrado na sociedade contemporânea.
sexta-feira, março 27, 2015
O amor é estranho, de Ira Sachs ***1/2
Em “Deixe a luz acesa” (2012), o diretor Ira Sachs focava
sua narrativa em um conturbado relacionamento gay marcado por sexo, drogas,
traições e várias separações e reconciliações, com uma abordagem formal
bastante crua. Na comparação, e numa primeira impressão, “O amor é estranho” (2014)
pode soar mais agridoce na forma do registro sereno que Sachs usa como referência
ao tornar a ter um casal homossexual como protagonista da trama. Nessa produção
mais recente, esses personagens principais, mais velhos, evidenciam uma
maturidade emocional e mesmo um momento de vida de maior estabilidade. O ponto
de conflito do roteiro está justamente no universo que circunda o casal. Quando
a necessidade de que por uma questão econômica e logística faz com que os dois
precisem se separar de forma temporária e tenham de morar com parentes e amigos
ficam expostos de forma sutil e engenhosa os preconceitos morais e desconfortos
sociais daqueles que pareciam tão receptivos ao seu relacionamento. Sachs evita
estardalhaços emocionais e arroubos de sofisticação afetada – a narrativa se
desenvolve com uma fluência notável, com personagens e situações ganhando uma
caracterização aprofundada e sem apelações para caricaturas e estereótipos
(nesse sentido, colaboram muitos as atuações repletas de nuances dramáticas de
John Lithgow e Alfred Molina nos papéis do casal protagonista). A fotografia de
tom crepuscular e a atmosfera melancólica e sóbria configuram “O amor é
estranho” como um conto moral cortante na fina acidez com que ironiza as
mesquinharias das relações humanas.
quinta-feira, março 26, 2015
Spring Breakers, de Harmony Korine ****
Para as garotas protagonistas de “Spring Breakers” (2012), o
desejo de passar parte das férias na praia se afundando em sexo, drogas e música
eletrônica representa embarcar numa outra dimensão dionisíaca em que a vida se
resume a prazer e dissipação incessantes. Assim,
o diretor Harmony Korine constrói uma obra que parece a cruza improvável entre cacos
de “Sem destino” (1969) e “Curtindo a vida adoidado” (1986) juntados de acordo
com alguns preceitos estéticos de Terrence Malick. A narrativa pode sugerir
algo de linear, mas a verdade é que Korine estrutura tudo como se fosse um
sonho delirante ou mesmo uma trip misturada de maconha, cocaína e crack. Para
isso, o cineasta adota um formalismo entre o rebuscado e o intuitivo,
combinando truques típicos de produções publicitárias com algumas sofisticadas
noções estéticas, principalmente quando dissocia audio e imagem, gerando um
efeito sensorial desconcertante, impressão essa ampliada pela fotografia cujo
colorido espalhafatoso se adequa em tons crepusculares e obscuros. Em vários
momentos, a ação come solta em cena embalada por diálogos e monólogos em que os
personagens tergiversam, deliram ou divagam e que num primeiro momento parecem
não ter qualquer relação com aquilo que está registrado visualmente. Korine
detesta a objetividade – tudo no filme é ambíguo, oblíquo, repleto de uma
simbologia estranha e fascinante no seu casamento entre sordidez e poesia.
Korine filma com paixão o retrato atávico e contraditório de uma sociedade puritana,
mas também fascinada por armas, dinheiro, erotismo sacana e Britney Spears.
quarta-feira, março 25, 2015
50 tons de cinza, de Sam Taylor-Johnson 1/2 (meia estrela)
Todo o circo midiático que se formou ao redor de “50 tons de
cinza” (2014) pode fazer supor que o filme em questão, assim como o livro no
qual se baseou, represente alguma ruptura relevante na questão da abordagem
sobre o comportamento sentimental e sexual na relação entre homem e mulher.
Afinal, tanto se fala na questão do apreço pelo sadomasoquismo do protagonista
Christian Grey (Jamie Dornan) marcar uma espécie de autodescoberta sensorial e
existencial da reprimida personagem principal feminina Anastasia Steele (Dakota
Johnson). No final das contas, entretanto, tudo isso não passa de balela hipócrita
de marketing para engabelar ingênuos. Toda a estrutura de roteiro do filme
obedece a uma lógica obscurantista e conservadora no pior sentido da palavra:
por mais que Grey se proclame um indivíduo que gosta de estar no domínio em
qualquer situação (profissional, pessoal, sentimental, sexual), a verdade é que
ele se submete constantemente aos questionamentos da virginal Dakota. Não é ela
que se mostra disposta a aprender com a maior vivência de seu parceiro, mas sim
ele que se coloca em dúvida diante da castidade de sua amada. Quando a trama
sugere uma possível discussão sobre a origem do seu gosto pela perversidade
sexual, propõe-se uma relação com o seu passado de uma mãe biológica viciada em
crack e prostituída. Ou seja, no final das contas Christian é retratado como um
coitado torpe, ainda que bilionário e bem apessoado, cuja salvação reside na
pureza de intenções e na falta de vivência carnal da mulher que ama. O que há
de diferente nessa ladainha repleta de clichês moralistas? Que grande
questionamento se faz aí? A própria concepção formal do filme é reflexo da
orientação carola do roteiro. A diretora Sam Taylor-Johnson transforma sua obra
numa espécie de catálogo de compras tamanho o deslumbramento que manifesta nos
planos retratando helicópteros voando ao som de uma trilha digna de propaganda
de cigarro, carrões em disparadas em estradas verdejantes, gravatas e ternos
sempre alinhados e com suas marcas em evidência. A vacuidade estética de
Johnson torna ainda mais patética a pretensão de que “50 tons de cinza” se
mostre ousado ou coisa que o valha. Do jeito que ficou, está mais para uma obra
que valida os mecanismos de opressão social e individual da sociedade ocidental
contemporânea.
terça-feira, março 24, 2015
Mapas para as estrelas, de David Cronenberg ****
Relacionar uma temática sobre bastidores de Hollywood com
uma formatação de filme de horror não é propriamente uma novidade. Basta lembra
do clássico “O crepúsculo dos deuses” (1950) de Billy Wilder. O que há de novo
em “Mapas para as estrelas” (2014) é que essa equação recebe as concepções artísticas
bizarras e geniais de David Cronenberg. Permanece no filme de forma constante
uma atmosfera sombria e doentia, que faz com que a narrativa tenha um caráter
de conto gótico e mesmo a elegante direção de fotografia de tons luminosos não
consegue esconder esse viés. O espectro da mãe que atormenta a neurótica filha
atriz (aparecendo até no meio de uma menage a trois) e a família que é marcada
por relações incestuosas são elemento que remetem a esse caráter mais perverso
da escola de ultraromantismo. Cronenberg, entretanto, usa tais influências num
contexto irônico e perverso, como se quisesse ressaltar que o universo paralelo
de vaidades, sexo e drogas dos astros do cinema e daqueles que o cercam
obedecesse a regras de conduta caóticas e amorais, em que almas penadas
convivem com os vivos e os atormentam sem a menor cerimônia. Esse mórbido jogo
de simbolismo entre pecado e culpa pode ser recorrente nos meios de expressão
cultural, mas com Cronenberg ganha uma dimensão extraordinária no seu misto de
horror e humor negro. A impressão permanente de um ambiente em colapso
existencial encontra um tratamento formal meticuloso por parte do cineasta
canadense – ele mantém em boa parte da produção a tensão psicológica e a sensação
de estranhamento no limite, e quando a violência gráfica irrompe é de forma
impactante na sua profusão de brutalidade e sangue. Esse extraordinário senso
cinematográfico de Cronenberg consegue também se manifestar na direção de
atores, com destaque para as notáveis composições dramáticas de Julianne Moore e
Mia Wasikowska.
sexta-feira, março 20, 2015
A causa secreta, de Sergio Bianchi ***
As coisas nunca são fáceis
com Sergio Bianchi. Mais importante do que conceber uma obra de caráter formal agradável,
o que interessa efetivamente para ele é oferecer para o espectador uma experiência
de desconforto sensorial, como se ele tentasse traduzir em um filme a sensação
de incômodo e inquietação de viver numa sociedade caótica e confusa como a
ocidental dos dias de hoje. “A causa secreta” (1994) é uma interessante afirmação
das intenções de Bianchi. Baseada num original literário de Machado de Assis, a
obra até arrisca nas aparências uma abordagem realista. Com o desenvolvimento
da narrativa, o que era para ser naturalista acaba se misturando a uma estranha
e abrasiva combinação de elementos de cinema, teatro e literatura. Bianchi se
vale do exagero e da ironia ácida para expor sua visão amarga dos conflitos de
classe. Apesar de virulência do seu ataque, o cineasta consegue manter a
sutileza ao estabelecer um perturbador jogo de simbologias e metáforas nas relações
de domínio e opressão numa companhia de teatro no processo criativo de encenação
de uma peça, contrapondo violentamente discurso e prática na forma com que os
personagens se relacionam. Nem sempre as intenções estéticas e temáticas de
Bianchi se configuram de forma plena, pecando por vezes por diálogos e situações
muito literais no sentido que querem expressar. Apesar disso, predomina a
impressão de que o tom geral de choque e atrito de “A causa secreta” consegue
obter aquele impacto memorável para o nosso imaginário.
quinta-feira, março 19, 2015
Amantes eternos, de Jim Jarmusch ****
É claro que com Jim
Jarmusch enveredando para um filme sobre vampiros não dava para esperar
exatamente uma tradicional produção de horror daquelas com Bela Lugosi e
Christopher Lee. Na realidade, o que se tem é o diretor norte-americano adaptando
um clássico gênero para o seu característico estilo de filmar, coisa que ele já
tinha feito com o faroeste (Dead Man) ou os thrillers de ação (Ghost Dog). Só
que mesmo assim em “Amantes Eternos” (2013) o resultado final é ainda mais
surpreendente e fascinante. Jarmusch adapta a mitologia vampiresca de acordo
com as suas obsessões estéticas e temáticas. Dessa forma, a carga centenária de
conhecimento e experiência dos vampiros Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda
Swinton) se materializa em referências culturais sofisticadas e uma angústia
existencial incomensurável, em que a degustação de sangue em taças e jarras
traz uma carga emocional entre a culpa e um prazer sensorial extasiante. Há
espaço tanto para discussões filosóficas e existenciais, repletas de citações
eruditas, como para relações com a cultura pop das últimas décadas. Nessa leva,
um rock antigo de Charlie Feathers pode soar tão misterioso e envolvente quanto
algumas passagens literárias de Christopher Marlowe, contemporâneo de
Shakespeare e personagem ativo do filme. Essa estranha combinação encontra um
complemento audiovisual extraordinário nas concepções formais de “Amantes
eternos”. Talvez seja o trabalho de Jarmusch em que ele leva mais longe o seu
virtuosismo cinematográfico, revelando uma elaboração esmerada em termos de
composições de cena, enquadramentos de tons pictóricos, construção de atmosferas
entre o sombrio e o delirante e uma trilha sonora espetacular que mistura
levadas letárgicas de rock com toques orientais. Toda essa ambientação estética
bem como a sutil lapidação do subtexto do roteiro encontram uma ressonância
extraordinária na sequencias finais do filme, em que a resposta para tormentos
dos personagens está numa solução atávica e desconcertante: a volta a um
primitivismo brutal de buscar o alimento direto na garganta humana.
quarta-feira, março 18, 2015
Sabotage: O maestro do Canão, de Ivan 13P ***
Há um equívoco recorrente em boa parte dos documentários
brasileiros que apareceram nos últimos anos: o desejo de condensar uma gama
imensa de informações em uma hora e meia ou duas horas de duração das produções
faz com que tais produções caiam em uma certa redundância. Isso porque os
diretores acabam acumulando vários depoimentos de pessoas que basicamente dizem
a mesma coisa (“fulano era um cara muito legal”, “sicrano tinha muito talento”,
etc). “Sabotage: O maestro do Canão” (2014) até cai nesse vício por vezes –
alguns comentários de seus depoentes podiam ter ficado na sala de edição, pois
pouco acrescentam. Tal reparo, entretanto, até se torna compreensível quando se
percebe que isso é reflexo do entusiasmo do diretor Ivan 13P pela figura do seu
protagonista. Além de admirar a arte de Sabotage, Ivan tem boas sacadas narrativas
que conseguem dar uma idéia aproximada da dimensão artística e humana do rapper
assassinado em 2013. Em um primeiro momento, até se pode pensar que a trajetória
de Sabotage foi meteórica. Afinal, entre shows e gravações, esteve efetivamente
ativo entre 2000 e 2013. Sua produção foi tão intensa, contudo, que foi capaz
de gerar um número considerável de frutos artísticos. Isso fica evidente na
quantidade impressionante de material audiovisual de arquivo que traz a figura
de Sabotage, entre entrevistas, shows, apresentações na TV e participações no
cinema (com direito, nesse último caso, a reveladores registros de making off e
ensaios). Ivan 13P aproveita com criatividade esse rico conjunto de imagens e
músicas, fazendo com que ele se combine com eficiente dinâmica narrativa junto
aos depoimentos de familiares, amigos, parceiros e artistas admiradores de
Sabotage. No conjunto total, o documentário não só consegue oferecer uma visão
bastante ampla sobre a vida do biografado, como também serve de retrato fiel
das questões sociais que circundavam Sabotage (e que serviam como matéria prima
de suas canções) e do fértil cenário musical onde ele se enquadrou, com destaque
especial para RZO e Instituto.
terça-feira, março 17, 2015
O jogo da imitação, de Morten Tyldum ***
Mesmo se formatando dentro de um estilo fortemente
acadêmico, “O jogo da imitação” (2014) é uma obra cuja essência traz um caráter
desafiador e uma abordagem artística sofisticada. A trama focada em fatos
biográficos da vida do matemático e cientista Alan Turing (Benedict
Cumberbatch), com ênfase no período em que trabalhou para as forças armadas
britânicas durante a 2ª Guerra Mundial, devolve-se dentro de uma estrutura
narrativa clássica e elegante. O diretor Morten Tyldum usa como mote principal
do roteiro os esforços de Turing e sua equipe de criptólogos em conceber uma
maneira de decifrar as mensagens secretas dos alemães. Nessa linha, o filme se
equilibra de forma notável na sua combinação de jogo de intrigas e tensão
psicológica, aliado a uma direção de arte eficiente e elenco carismático, configurando-se
como um envolvente thriller. Ocorre, entretanto, que a produção vai além do
típico filme de guerra. Isso porque seu subtexto aos poucos se revela como um
libelo contra a intolerância e hipocrisia morais. Não há a preocupação em se
esmiuçar a vida particular do seu protagonista – concentrando-se em alguns
momentos significativos de sua trajetória, a produção expõe com sutileza e
ironia discreta as absurdas condições moralistas que levaram Turing, homem de
importância estratégica fundamental para a derrota da Alemanha nazista, a uma
condição de marginalização e ao consequente suicídio. Esse discurso libertário
do filme nunca cai no demagógico ou sentimental, mérito da forma sóbria com que
Tyldum conduz a sua narrativa. O contundente texto das falas finais da
personagem Joan Clarke (Keira Knightley), ataque contra os preceitos opressores
de “normalidade”, é emblemático desse humanismo contestador latente de “O jogo
da imitação”.
segunda-feira, março 16, 2015
Para sempre Alice, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland *
É provável que uma obra como “Para sempre Alice” (2014)
tenha uma espécie de função social importante que transcenda os seus méritos
artísticos. Afinal, dentro do gênero ao qual pertence, o “filme doença”, a
produção dirigida por Richard Glatzer e Wash Westmoreland acaba sendo bem didática
sobre a questão do Mal de Alzheimer, enfocando com detalhes tanto a fase do
diagnóstico como o doloroso processo de desenvolvimento dos sintomas da doença.
Como obra cinematográfica, entretanto, está bem longe de ser considerada uma
experiência satisfatória. Há uma indecisão estética constante permeando a
narrativa – os fatos se sucedem sem o devido peso dramático, apesar do filme
abusar de forma constante de uma considerável de truques emocionais apelativos
como música incidental melosa nos momentos mais “tocantes”, personagens olhando
para o horizonte sugerindo alguma introspecção e diálogos edificantes estilo
autoajuda (com direito, inclusive, a um discurso proferido pela protagonista
Alice para uma plateia de familiares, médicos e outros pessoas afetadas pela
doença). Toda essa concepção formal equivocada faz com que “Para sem Alice”
mais pareça um vídeo institucional sobre o Alzheimer que conta com um estrelado
elenco de Hollywood do que uma produção cinematográfica propriamente dita. E
para aqueles que acham que seria impossível tratar de tal temática sem cair nesse
estilo melodrama barato, recomenda-se o devastador “Amor” (2012), de Michael
Haneke, extraordinária visão metafórica do diretor austríaco Michael Haneke de
uma doença degenerativa como a própria desintegração da moral e da civilidade
da sociedade ocidental.
sexta-feira, março 13, 2015
Gato preto, gato branco, de Emir Kusturica ****
Poucos cineastas na atualidade conseguiram elaborar um
universo tão particular quanto o sérvio Emir Kusturica. Visto em conjunto, seus
filmes configuram uma visão muito pessoal do diretor sobre história, política e
cultura, tudo isso embalado por uma concepção estética que parece fazer sentido
apenas de acordo com os princípios de seu criador. “Gato preto, gato branco”
(1998) é uma obra que dá continuidade e complementação a outras obras da
filmografia de Kusturica – ela pode ser vista como uma história auto-contida,
mas também é inegável que se mostra em sintonia com as temáticas e escolhas
formais favoritas do cineasta. Ao mostrar uma trama envolvendo mal-entendidos e
trambiques entre um grupo de clãs de ciganos, Kusturica tanto reforça o seu
apreço por personagens e situações que fogem dos padrões de bom gosto quanto
por uma narrativa de forte teor delirante e que beira o realismo mágico. A
encenação é sempre exuberante, exagerada e escrachada, quase como se fosse um
musical desenfreado (vide o uso constante de uma trilha sonora exótica e
festiva), mas sem nunca perde o foco e o impacto. A ideia principal permanente é
de um mundo em ebulição, quase em colapso, em que os ditames de uma sociedade
capitalista se misturam sem cerimônia com atividades criminosas. Tal olhar
amargo sobre os rumos dessa sociedade, contudo, recebem um tratamento típico de
comédia de absurdo, revelando o caráter humanista da abordagem artística de
Kusturica.
quinta-feira, março 12, 2015
Renascida do inferno, de David Gelb *
Hoje em dia, o que poderia motivar alguém que gosta de
cinema a ver um filme de terror contemporâneo em alguma sala de multiplex?
Muito provavelmente seria nostalgia, de ficar relembrando algumas sessões
noturnas nos anos 70 e 80, quando quem gostava do gênero podia encontrar nos
cinemas de ruas alguma tranqueira divertida na linha slasher ou pérolas
efetivamente assustadoras e criativas de nomes como Wes Craven, Stuart Gordon
ou Lucio Fulci. Na atualidade, com pouquíssimas e honrosas exceções, o que
aparece de obras de horror são produções assépticas e formulaicas, que parecem
obedecer a uma linha de montagem despersonalizada. “Renascida do inferno” (2015)
é um exemplar perfeito de tal tendência. O diretor David Gelb dirige sem um
traço de imaginação ou substância uma trama que chupa na cara dura o roteiro do
suspense “Linha mortal” (1990) e acumula todos os truques baratos de sustos que
grassam nas produções contemporâneas no gênero, além daquela assepsia visual
irritante que serve para não chocar o público médio dos shoppings e de um
elenco composto basicamente por gente tão inexpressiva que o público nem se
importa quando os fulanos têm as suas respectivas mortes violentas.
quarta-feira, março 11, 2015
Kingsman - Serviço secreto", de Matthew Vaughan **1/2
A equação parecia quase infalível: o diretor Matthew Vaughan
adaptando para as telas uma minissérie em quadrinhos de Mark Millar. Ou seja, a
mesma dupla do sensacional “Kick Ass – Quebrando tudo” (2010). O resultado
final de “Kingsman – Serviço secreto” (2015), entretanto, acabando ficando aquém
das expectativas promissoras. A obra em vários momentos deixa claro, de forma
nada sutil, que tem a pretensão de ser uma releitura entre a homenagem e a
ironia das primeiras produções da franquia 007, aquelas de caráter mais
escapista e menos séria, ficando em contraposição em relação aos filmes
recentes da série, os quais apresentam um James Bond, na pele de Daniel Craig,
mais dramático e taciturno. Ocorre que o estilo impresso por Vaughan na
narrativa não consegue dar uma fluência para tal abordagem. Ao contrário de “Kick
ass”, por exemplo, o filme utiliza expedientes formais típicos de genéricas
produções contemporâneas de ação, o que acaba dando a várias seqüências uma incômoda
sensação de grandiosidade solene que não combina com o perverso senso de humor
do roteiro. Além disso, as cenas de ação deixam bastante a desejar se
comparadas com aquelas dos filmes anteriores de Vaughan como “Kick ass” e “X-Men:
Primeira classe” (2011), claro que com a honrosa exceção do trecho em que
Galahad (Colin Firth) dizima sozinho na porrada uma congregação inteira de
evangélicos. E nesse quesito de aspectos positivos, não há como não mencionar
que o roteiro de “Kingsman” apresenta alguns pontos interessantes na forma
ácida e crítica com que expõe alguns dilemas característicos da atualidade,
principalmente no que diz respeito ao conflito de classes sociais. Mas isso
acaba obscurecido pela estética genérica adotada por Vaughan e as resoluções
simplistas da trama. E se a intenção era tirar um sarro com as aventuras mais
recentes de James Bond, vale lembrar que filmes como “Cassino Royale” (2006) e “Skyfall”
(2012) são bem mais memoráveis que “Kingsman”.
terça-feira, março 10, 2015
Jardim Europa, de Mauro Baptista Vedia **
A trama e a condução da encenação de “Jardim Europa” (2011)
deixam clara a origem teatral do diretor Mauro Baptista Vedia. Ainda que
marcada por uma estrutura narrativa realista, a produção traz um caráter de
simbolismos bastante forte ao apresentar um roteiro que através do microcosmo
de alguns poucos personagens pretende fazer um retrato da relação de conflito
entre as classes sociais no Brasil. Dessa forma, o cineasta se vale de uma
abordagem mais exagerada e icônica, típica do teatro, na dinâmica que se
estabelece entre situações e personagens, fazendo lembrar desde algumas das
peças mais emblemáticas de Nelson Rodrigues até aquela atmosfera de melancólica
decadência do clássico “Os deuses malditos” (1959). Por vezes, tais escolhas
artísticas rendem bons momentos. A seqüência, por exemplo, em que o simplório
assalariado Osmar Pampolini (Marcos Cesana) faz uma defesa bem-humorada das “realizações
políticas e administrativas” de Paulo Maluf é perversamente engraçada. Além
disso, há também algumas cenas em que Vedia consegue extrair uma efetiva atmosfera
de angústia ao caracterizar o processo de desagregação moral e afetiva de uma
família classe média alta em processo de ruína. Tais aspectos positivos,
entretanto, são insuficientes para caracterização “Jardim Europa” como um
trabalho satisfatório. No geral, é uma obra cuja aridez formal e a repetição
excessiva de algumas ideias temáticas a tornam uma obra cansativa e enfadonha.
segunda-feira, março 09, 2015
Arcana, de Giulio Questi ****
Para quem nunca assistiu a uma produção dirigida pelo
italiano Giulio Questi, ver “Arcana” (1972) pode suscitar algumas comparações e
referências – o surrealismo desconcertante de Luis Buñuel, o simbolismo intrincado
de Alejandro Jodorowsky, o barroquismo visual apurado de Dario Argento. É
fascinante, entretanto, que no meio de todas essas ligações que pode fazer, há
um forte senso de originalidade e cunho autoral por parte de Questi. A premissa
do roteiro e a formatação dramática de algumas cenas vinculam o filme à típica
escola de horror italiano das décadas de 60 e 70, mas a produção envereda por
vias ainda mais obscuras. O fio de história do roteiro, algo que parece ter
relação com jogos de tarô e assassinatos, vai se dissolvendo progressivamente,
sendo que lá pelo terço final se tem a impressão de que Questi desistiu dar
algum sentido mais literal para a trama. “Arcana” vai se configurando como um
pesadelo sem fim, cuja lógica se abstrai em meio a várias cenas antológicas e
conceitos brilhantes. A temática baseada em violência, sexo, misticismo e tabus
diversos recebe um tratamento formal contundente, que não se furta em abusar do
grafismo exagerado e brutal, mas que também traz uma inesperada carga poética. Há
ainda detalhes cênicos cuja criatividade é chocante mesmo para os dias de hoje
(a desvairada mescla na trilha sonora de temas de suspenses com canções étnicas,
o misto entre grotesco e poético de cenas como aquela da personagem que passa a
cuspir sapos, a montagem que alterna tempos e lugares como se fosse um grande vórtice
atordoante). Para quem acha que o máximo de ousadia artística que o cinema se
permite é o melodrama de “Boyood” ou o onirismo de botequim de “Birdman”,
assistir a “Arcana” pode ser uma experiência desconcertante.
sexta-feira, março 06, 2015
Um gosto de mel, de Tony Richardson ****
O que me motivou a ver “Um gosto de mel” (1961) foi a
leitura de uma biografia sobre a banda britânica The Smiths. O filme em questão
é citado mais de uma vez como forte referência cultural para as letras da
banda. Só que essa produção inglesa acaba transcendendo a mera curiosidade
histórica. O tratamento artístico dado pelo diretor Tony Richardson revela
singularidades que mesmo nos dias de hoje soam bastante ousadas. A narrativa se
estrutura a partir de uma fusão de elementos documentais e de melodrama, tendo
uma fluência extraordinária nessa insólita combinação. Num primeiro momento, há
a impressão de uma certa aridez estética na forma naturalista com que os
personagens e os cenários desolados de Manchester são retratados. Aos poucos,
entretanto, tal percepção se revela engenhosamente enganadora, sendo que a
encenação e a dinâmica formal apresentam concepções bem criativas e
libertárias. Os personagens desenvolvem um carisma magnético na forma com que
lidam com seus dilemas e contradições, além das situações da trama causarem
expressiva empatia pela forma crua e humana com que são expostas. Richardson
consegue um raro equilíbrio entre o sentimentalismo, a melancolia e o amargo
realismo.
quinta-feira, março 05, 2015
Depois da chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes ***
Não há como não fazer um paralelo entre a produção
brasileira “Depois da chuva” (2013) com o francês “Depois de maio” (2012) de
Olivier Assayas. Enquanto este último traçava um panorama poético e melancólico
das desilusões ideológicas pós-maio de 1969, a obra assinada pelos cineastas Cláudio
Marques e Marília Hughes enfoca o misto de euforia e ressaca existencial que
pontuou os momentos finais da ditadura militar no Brasil e o princípio da Nova
República. É claro que os jovens diretores brasileiro não apresentam a mesma
classe artística de Assayas, mas mesmo assim conseguem realizar um filme
bastante consistente na forma com que a narrativa transita entre o político e o
intimista. A necessidade de contextualizar historicamente a trama por vezes faz
com que a trama tenha um incômodo didático e até mesmo ingênuo. Mesmo algumas
soluções do roteiro enveredam por estruturas e lógicas um tanto simplistas. Tais
equívocos, entretanto, são compensados por um expressivo senso estético e pela
criação de atmosferas perturbadoras. A direção de fotografia apresenta composições
cênicas notáveis no seu detalhismo visual, enquanto a sobriedade da montagem
cria coerente conexão formal com o tom niilista de algumas passagens. Vale
ainda destacar que alguns elementos da caracterização históricas que fogem das
obviedades, como a trilha sonora repleta de temas punk ou garageiros e os
sombrios cenários de casas abandonadas e ruínas de fábrica em sintonia com o
espírito pós-punk da primeira metade da década de 80.
quarta-feira, março 04, 2015
Nostalgia da luz, de Patricio Guzmán ***
O diretor chileno Patricio Guzmán consegue a proeza artística
em “Nostalgia da Luz” (2010) de oferecer um enfoque singular ao retomar a temática
dos efeitos da ditadura de Pinochet sobre o Chile. Para isso, o cineasta se
vale de um sutil e engenhoso truque narrativo, estabelecendo duas tramas
paralelas que de forma poética e contundente se entrecruzam: o fascínio de
cientistas e astrônomos com as possibilidades únicas de observar o sistema
solar no deserto de Atacama e a busca melancólica de parentes por desaparecidos
políticos que foram enterrados no mesmo deserto. O registro formal do documentário
de Guzmán traça um panorama histórico e existencial perturbador. As condições
climáticas e geográficas de Atacama assim como permitem um estudo esclarecedor
sobre planetas e estrelas também foram usadas com eficiência macabra pelos
militares para execuções e enterro de centenas de opositores de Pinochet. É
interessante também que a produção evidencia como as conseqüências da política
de perseguição e extermínio da ditadura ainda afloram na contemporânea
sociedade chilena (alguns dos astrônomos mostrados no filme, por exemplo, são
filhos de exilados e desaparecidos). Assim, sendo mais do que mera panfletagem
ideológica, a obra de Guzmán se insinua de forma dolorosa no imaginário do
espectador ao estabelecer um memorável jogo de simbologias e paradoxos que
realça com propriedade todo o horror brutal de uma época conturbada e nem tão
distante assim.
terça-feira, março 03, 2015
O nascimento de uma nação, de D.W. Griffith ****
Os fatos de ser a obra que é considerada o marco fundamental
da linguagem moderna cinematográfica e de trazer como heróis os membros da
organização racista Ku Klux Klan poderiam reduzir “O nascimento de uma nação”
(2015) a uma mera (mas importante) curiosidade histórica. Ver o filme em questão,
entretanto, na tela grande um cinema é uma experiência visceral que transcende
fins puramente didáticos. Algumas técnicas rudimentares e limitações tecnológicas,
na comparação com os recursos materiais de hoje, podem causar um certo
estranhamento e a sensação de algo anacrônico. Ainda sim, a dinâmica narrativa
impressa pelo cineasta D.W. Griffith é muito envolvente, aliada a um grande
senso estético na concepção visual de sua obra. Mesmo que baseado quase que
exclusivamente em planos fixos, há um encanto imagético que impressiona pelo
esmero nas composições pictóricas de enquadramentos e nas eficientes trucagens
envolvendo sobreposições e fusões. As extraordinárias soluções estéticas de
Griffith causam um efeito perturbador para o espectador – a conjunção entre ação
e tensão por vezes induz a uma empatia aos “heróis” da trama. Por mais que os
conceitos sociais evocados pelo roteiro possam ser questionáveis, é de se
convir também que representam os valores de uma época. Nesse sentido, “O
nascimento de uma nação” não deixa de oferecer um interessante panorama histórico
da formação cultural de um povo, cujas consequências até os dias de hoje
encontram ressonância na sociedade ocidental.
segunda-feira, março 02, 2015
Um santo vizinho, de Theodore Melfi **
Algumas indicações a prêmio ou truques de marketing podem
fazer parecer que “Um santo vizinho” (2014) tenha um grau de relevância artística
maior do que ele realmente tem. Em um primeiro momento, mesmo a sua formatação
pode sugerir isso: uma ambientação de tons naturalistas (o protagonista vivido
Bill Murray, por exemplo, é mostrado com todas as rugas a que tem direito e
mais alguns machucados repletos de sangue coagulado), o roteiro tem aquelas
pretensão de retratar as coisas do dia-a-dia, até mesmo a trilha sonora é
repleta de boas canções na linha “rock indie”. Todos esses elementos,
entretanto, só servem para iludir o espectador incauto. Na realidade, a produção
dirigida por Theodore Melfi é bem genérica nos seus truques baratos de misturar
comédia e melodrama edificante. Por mais escroto e irônico que Vincent (Murray)
possa ser, sempre haverá um detalhe no roteiro que o isentará de suas más ações.
A iluminação natural estourada e a caracterização sem glamour da maioria do
elenco não conseguem esconder que se está vendo uma narrativa formulaica e sem
convicção. O que garante algum pouco de vida e credibilidade para “Um santo
vizinho” é o carisma de Bill Murray – o cara, mesmo envelhecido, é aquele tipo
raro de ator que tem uma imposição cênica magnética e que consegue transcender
mesmo uma encenação tão medíocre quanto à do filme em questão.
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