terça-feira, março 31, 2015

Dívida de honra, de Tommy Lee Jones ***1/2


Os belos e grandes planos retratando campos e planícies que abrem “Dívida de honra” (2014) até podem sugerir uma certa atmosfera nostálgica e de exaltação do gênero faroeste. Essa notável composição plástica da direção de fotografia do trabalho mais recente de Tommy Lee Jones como cineasta é enganadora de forma perversa, conforme se perceber pelas intenções temáticas do cineasta com o desenrolar da narrativa. Qualquer pretensa visão de idealização cai por terra quando se evidencia um olhar cruel e sem concessões sobre a atmosfera de opressão moral e da dureza das condições geográficas do oeste norte-americano do século XIX. Jones foca a sua trama num grupo de mulheres que se desintegram mentalmente diante de um ambiente marcado pelo obscurantismo religioso, a rudeza comportamental de uma sociedade machista e mesmo o fator climático inóspito. A obra não oferece redenção para os seus personagens – o oeste que Jones recria é um lugar onde os fracos e sensíveis não tem vez. Para esses, resta apenas a loucura e a morte. Apesar do tom deprimente de tal abordagem, o diretor se permite construir uma obra repleta de sutil ironia e de humanismo cortante. Ele já havia realizado uma bela atualização dos preceitos clássicos do faroeste ao os adaptar para a época atual no extraordinário “Três enterros” (2005), sendo que em “Dívida de honra” ele oferece uma perspectiva renovada e contemporânea para um gênero que já era considerado anacrônico. Recusando usar alguns clichês básicos do estilo, como duelos ou uma estética grandiosa, Jones acabou realizando um filme impactante e atemporal no modo lúcido e impiedoso com que disseca os valores de uma época.

segunda-feira, março 30, 2015

Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós ***


Talvez a grande força de “Branco sai, preto fica” (2014) esteja muito mais na expressividade do seu conceito do que na sua execução formal. Trata-se de uma manifesto cultural e político contundente nos elementos e influências diversos que combina. Em um primeiro momento, o filme do diretor Adirley Queirós se vincula ao gênero da ficção científica. Só que o cineasta trata isso muito mais como uma ideia do que uma estética em si – os itens da direção de arte que remetem ao gênero estão ali apenas como uma representação que beira o teatral. O espectador tem de comprar essa abstração que não se liga a uma encenação realista. Nesse sentido, Queirós demonstra uma sintonia existencial e artística com obras de exceção dentro do cinema brasileiro como “A idade da terra” (1980) e alguns trabalhos de Rogério Sganzerla, em que uma certa fuleiragem visual representa uma espécie de declaração de fé cultural terceiro-mundista. Entretanto, também há dentro do filme uma idéia de sofisticação no seu discurso e estética, com a narrativa abarcando preceitos do cinema documental dentro daquilo que era para ser ficcional, além de um esmerado apuro plástico na direção de fotografia em termos de enquadramentos e composições cênicas. Dentro de toda essa concepção que revela um pendor para o cerebralismo também há espaço para um caráter de arte popular que se revela nos funkeados temas da trilha sonora e nas interpretações cheias de espontaneidade do elenco. O resultado do cruzamento de todas essas ideias é irregular – a narrativa se perde por vezes nos devaneios de Queirós, mas em outros momentos cativa pelo seu encanto imagético e pela lúcida ferocidade de seu discurso de revolta e ironia. Talvez essa alternância de percepções seja a melhor forma para que “Branco sai, preto fica” expresse com mais intensidade a complexidade e o incômodo da sua temática: a maneira perversa e hipócrita com que o racismo está infiltrado na sociedade contemporânea.

sexta-feira, março 27, 2015

O amor é estranho, de Ira Sachs ***1/2


Em “Deixe a luz acesa” (2012), o diretor Ira Sachs focava sua narrativa em um conturbado relacionamento gay marcado por sexo, drogas, traições e várias separações e reconciliações, com uma abordagem formal bastante crua. Na comparação, e numa primeira impressão, “O amor é estranho” (2014) pode soar mais agridoce na forma do registro sereno que Sachs usa como referência ao tornar a ter um casal homossexual como protagonista da trama. Nessa produção mais recente, esses personagens principais, mais velhos, evidenciam uma maturidade emocional e mesmo um momento de vida de maior estabilidade. O ponto de conflito do roteiro está justamente no universo que circunda o casal. Quando a necessidade de que por uma questão econômica e logística faz com que os dois precisem se separar de forma temporária e tenham de morar com parentes e amigos ficam expostos de forma sutil e engenhosa os preconceitos morais e desconfortos sociais daqueles que pareciam tão receptivos ao seu relacionamento. Sachs evita estardalhaços emocionais e arroubos de sofisticação afetada – a narrativa se desenvolve com uma fluência notável, com personagens e situações ganhando uma caracterização aprofundada e sem apelações para caricaturas e estereótipos (nesse sentido, colaboram muitos as atuações repletas de nuances dramáticas de John Lithgow e Alfred Molina nos papéis do casal protagonista). A fotografia de tom crepuscular e a atmosfera melancólica e sóbria configuram “O amor é estranho” como um conto moral cortante na fina acidez com que ironiza as mesquinharias das relações humanas.

quinta-feira, março 26, 2015

Spring Breakers, de Harmony Korine ****


Para as garotas protagonistas de “Spring Breakers” (2012), o desejo de passar parte das férias na praia se afundando em sexo, drogas e música eletrônica representa embarcar numa outra dimensão dionisíaca em que a vida se resume a prazer e dissipação incessantes. Assim, o diretor Harmony Korine constrói uma obra que parece a cruza improvável entre cacos de “Sem destino” (1969) e “Curtindo a vida adoidado” (1986) juntados de acordo com alguns preceitos estéticos de Terrence Malick. A narrativa pode sugerir algo de linear, mas a verdade é que Korine estrutura tudo como se fosse um sonho delirante ou mesmo uma trip misturada de maconha, cocaína e crack. Para isso, o cineasta adota um formalismo entre o rebuscado e o intuitivo, combinando truques típicos de produções publicitárias com algumas sofisticadas noções estéticas, principalmente quando dissocia audio e imagem, gerando um efeito sensorial desconcertante, impressão essa ampliada pela fotografia cujo colorido espalhafatoso se adequa em tons crepusculares e obscuros. Em vários momentos, a ação come solta em cena embalada por diálogos e monólogos em que os personagens tergiversam, deliram ou divagam e que num primeiro momento parecem não ter qualquer relação com aquilo que está registrado visualmente. Korine detesta a objetividade – tudo no filme é ambíguo, oblíquo, repleto de uma simbologia estranha e fascinante no seu casamento entre sordidez e poesia. Korine filma com paixão o retrato atávico e contraditório de uma sociedade puritana, mas também fascinada por armas, dinheiro, erotismo sacana e Britney Spears.

quarta-feira, março 25, 2015

50 tons de cinza, de Sam Taylor-Johnson 1/2 (meia estrela)


Todo o circo midiático que se formou ao redor de “50 tons de cinza” (2014) pode fazer supor que o filme em questão, assim como o livro no qual se baseou, represente alguma ruptura relevante na questão da abordagem sobre o comportamento sentimental e sexual na relação entre homem e mulher. Afinal, tanto se fala na questão do apreço pelo sadomasoquismo do protagonista Christian Grey (Jamie Dornan) marcar uma espécie de autodescoberta sensorial e existencial da reprimida personagem principal feminina Anastasia Steele (Dakota Johnson). No final das contas, entretanto, tudo isso não passa de balela hipócrita de marketing para engabelar ingênuos. Toda a estrutura de roteiro do filme obedece a uma lógica obscurantista e conservadora no pior sentido da palavra: por mais que Grey se proclame um indivíduo que gosta de estar no domínio em qualquer situação (profissional, pessoal, sentimental, sexual), a verdade é que ele se submete constantemente aos questionamentos da virginal Dakota. Não é ela que se mostra disposta a aprender com a maior vivência de seu parceiro, mas sim ele que se coloca em dúvida diante da castidade de sua amada. Quando a trama sugere uma possível discussão sobre a origem do seu gosto pela perversidade sexual, propõe-se uma relação com o seu passado de uma mãe biológica viciada em crack e prostituída. Ou seja, no final das contas Christian é retratado como um coitado torpe, ainda que bilionário e bem apessoado, cuja salvação reside na pureza de intenções e na falta de vivência carnal da mulher que ama. O que há de diferente nessa ladainha repleta de clichês moralistas? Que grande questionamento se faz aí? A própria concepção formal do filme é reflexo da orientação carola do roteiro. A diretora Sam Taylor-Johnson transforma sua obra numa espécie de catálogo de compras tamanho o deslumbramento que manifesta nos planos retratando helicópteros voando ao som de uma trilha digna de propaganda de cigarro, carrões em disparadas em estradas verdejantes, gravatas e ternos sempre alinhados e com suas marcas em evidência. A vacuidade estética de Johnson torna ainda mais patética a pretensão de que “50 tons de cinza” se mostre ousado ou coisa que o valha. Do jeito que ficou, está mais para uma obra que valida os mecanismos de opressão social e individual da sociedade ocidental contemporânea.

terça-feira, março 24, 2015

Mapas para as estrelas, de David Cronenberg ****


Relacionar uma temática sobre bastidores de Hollywood com uma formatação de filme de horror não é propriamente uma novidade. Basta lembra do clássico “O crepúsculo dos deuses” (1950) de Billy Wilder. O que há de novo em “Mapas para as estrelas” (2014) é que essa equação recebe as concepções artísticas bizarras e geniais de David Cronenberg. Permanece no filme de forma constante uma atmosfera sombria e doentia, que faz com que a narrativa tenha um caráter de conto gótico e mesmo a elegante direção de fotografia de tons luminosos não consegue esconder esse viés. O espectro da mãe que atormenta a neurótica filha atriz (aparecendo até no meio de uma menage a trois) e a família que é marcada por relações incestuosas são elemento que remetem a esse caráter mais perverso da escola de ultraromantismo. Cronenberg, entretanto, usa tais influências num contexto irônico e perverso, como se quisesse ressaltar que o universo paralelo de vaidades, sexo e drogas dos astros do cinema e daqueles que o cercam obedecesse a regras de conduta caóticas e amorais, em que almas penadas convivem com os vivos e os atormentam sem a menor cerimônia. Esse mórbido jogo de simbolismo entre pecado e culpa pode ser recorrente nos meios de expressão cultural, mas com Cronenberg ganha uma dimensão extraordinária no seu misto de horror e humor negro. A impressão permanente de um ambiente em colapso existencial encontra um tratamento formal meticuloso por parte do cineasta canadense – ele mantém em boa parte da produção a tensão psicológica e a sensação de estranhamento no limite, e quando a violência gráfica irrompe é de forma impactante na sua profusão de brutalidade e sangue. Esse extraordinário senso cinematográfico de Cronenberg consegue também se manifestar na direção de atores, com destaque para as notáveis composições dramáticas de Julianne Moore e Mia Wasikowska.

sexta-feira, março 20, 2015

A causa secreta, de Sergio Bianchi ***

As coisas nunca são fáceis com Sergio Bianchi. Mais importante do que conceber uma obra de caráter formal agradável, o que interessa efetivamente para ele é oferecer para o espectador uma experiência de desconforto sensorial, como se ele tentasse traduzir em um filme a sensação de incômodo e inquietação de viver numa sociedade caótica e confusa como a ocidental dos dias de hoje. “A causa secreta” (1994) é uma interessante afirmação das intenções de Bianchi. Baseada num original literário de Machado de Assis, a obra até arrisca nas aparências uma abordagem realista. Com o desenvolvimento da narrativa, o que era para ser naturalista acaba se misturando a uma estranha e abrasiva combinação de elementos de cinema, teatro e literatura. Bianchi se vale do exagero e da ironia ácida para expor sua visão amarga dos conflitos de classe. Apesar de virulência do seu ataque, o cineasta consegue manter a sutileza ao estabelecer um perturbador jogo de simbologias e metáforas nas relações de domínio e opressão numa companhia de teatro no processo criativo de encenação de uma peça, contrapondo violentamente discurso e prática na forma com que os personagens se relacionam. Nem sempre as intenções estéticas e temáticas de Bianchi se configuram de forma plena, pecando por vezes por diálogos e situações muito literais no sentido que querem expressar. Apesar disso, predomina a impressão de que o tom geral de choque e atrito de “A causa secreta” consegue obter aquele impacto memorável para o nosso imaginário.

quinta-feira, março 19, 2015

Amantes eternos, de Jim Jarmusch ****

É claro que com Jim Jarmusch enveredando para um filme sobre vampiros não dava para esperar exatamente uma tradicional produção de horror daquelas com Bela Lugosi e Christopher Lee. Na realidade, o que se tem é o diretor norte-americano adaptando um clássico gênero para o seu característico estilo de filmar, coisa que ele já tinha feito com o faroeste (Dead Man) ou os thrillers de ação (Ghost Dog). Só que mesmo assim em “Amantes Eternos” (2013) o resultado final é ainda mais surpreendente e fascinante. Jarmusch adapta a mitologia vampiresca de acordo com as suas obsessões estéticas e temáticas. Dessa forma, a carga centenária de conhecimento e experiência dos vampiros Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) se materializa em referências culturais sofisticadas e uma angústia existencial incomensurável, em que a degustação de sangue em taças e jarras traz uma carga emocional entre a culpa e um prazer sensorial extasiante. Há espaço tanto para discussões filosóficas e existenciais, repletas de citações eruditas, como para relações com a cultura pop das últimas décadas. Nessa leva, um rock antigo de Charlie Feathers pode soar tão misterioso e envolvente quanto algumas passagens literárias de Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare e personagem ativo do filme. Essa estranha combinação encontra um complemento audiovisual extraordinário nas concepções formais de “Amantes eternos”. Talvez seja o trabalho de Jarmusch em que ele leva mais longe o seu virtuosismo cinematográfico, revelando uma elaboração esmerada em termos de composições de cena, enquadramentos de tons pictóricos, construção de atmosferas entre o sombrio e o delirante e uma trilha sonora espetacular que mistura levadas letárgicas de rock com toques orientais. Toda essa ambientação estética bem como a sutil lapidação do subtexto do roteiro encontram uma ressonância extraordinária na sequencias finais do filme, em que a resposta para tormentos dos personagens está numa solução atávica e desconcertante: a volta a um primitivismo brutal de buscar o alimento direto na garganta humana.

quarta-feira, março 18, 2015

Sabotage: O maestro do Canão, de Ivan 13P ***


Há um equívoco recorrente em boa parte dos documentários brasileiros que apareceram nos últimos anos: o desejo de condensar uma gama imensa de informações em uma hora e meia ou duas horas de duração das produções faz com que tais produções caiam em uma certa redundância. Isso porque os diretores acabam acumulando vários depoimentos de pessoas que basicamente dizem a mesma coisa (“fulano era um cara muito legal”, “sicrano tinha muito talento”, etc). “Sabotage: O maestro do Canão” (2014) até cai nesse vício por vezes – alguns comentários de seus depoentes podiam ter ficado na sala de edição, pois pouco acrescentam. Tal reparo, entretanto, até se torna compreensível quando se percebe que isso é reflexo do entusiasmo do diretor Ivan 13P pela figura do seu protagonista. Além de admirar a arte de Sabotage, Ivan tem boas sacadas narrativas que conseguem dar uma idéia aproximada da dimensão artística e humana do rapper assassinado em 2013. Em um primeiro momento, até se pode pensar que a trajetória de Sabotage foi meteórica. Afinal, entre shows e gravações, esteve efetivamente ativo entre 2000 e 2013. Sua produção foi tão intensa, contudo, que foi capaz de gerar um número considerável de frutos artísticos. Isso fica evidente na quantidade impressionante de material audiovisual de arquivo que traz a figura de Sabotage, entre entrevistas, shows, apresentações na TV e participações no cinema (com direito, nesse último caso, a reveladores registros de making off e ensaios). Ivan 13P aproveita com criatividade esse rico conjunto de imagens e músicas, fazendo com que ele se combine com eficiente dinâmica narrativa junto aos depoimentos de familiares, amigos, parceiros e artistas admiradores de Sabotage. No conjunto total, o documentário não só consegue oferecer uma visão bastante ampla sobre a vida do biografado, como também serve de retrato fiel das questões sociais que circundavam Sabotage (e que serviam como matéria prima de suas canções) e do fértil cenário musical onde ele se enquadrou, com destaque especial para RZO e Instituto.

terça-feira, março 17, 2015

O jogo da imitação, de Morten Tyldum ***


Mesmo se formatando dentro de um estilo fortemente acadêmico, “O jogo da imitação” (2014) é uma obra cuja essência traz um caráter desafiador e uma abordagem artística sofisticada. A trama focada em fatos biográficos da vida do matemático e cientista Alan Turing (Benedict Cumberbatch), com ênfase no período em que trabalhou para as forças armadas britânicas durante a 2ª Guerra Mundial, devolve-se dentro de uma estrutura narrativa clássica e elegante. O diretor Morten Tyldum usa como mote principal do roteiro os esforços de Turing e sua equipe de criptólogos em conceber uma maneira de decifrar as mensagens secretas dos alemães. Nessa linha, o filme se equilibra de forma notável na sua combinação de jogo de intrigas e tensão psicológica, aliado a uma direção de arte eficiente e elenco carismático, configurando-se como um envolvente thriller. Ocorre, entretanto, que a produção vai além do típico filme de guerra. Isso porque seu subtexto aos poucos se revela como um libelo contra a intolerância e hipocrisia morais. Não há a preocupação em se esmiuçar a vida particular do seu protagonista – concentrando-se em alguns momentos significativos de sua trajetória, a produção expõe com sutileza e ironia discreta as absurdas condições moralistas que levaram Turing, homem de importância estratégica fundamental para a derrota da Alemanha nazista, a uma condição de marginalização e ao consequente suicídio. Esse discurso libertário do filme nunca cai no demagógico ou sentimental, mérito da forma sóbria com que Tyldum conduz a sua narrativa. O contundente texto das falas finais da personagem Joan Clarke (Keira Knightley), ataque contra os preceitos opressores de “normalidade”, é emblemático desse humanismo contestador latente de “O jogo da imitação”.

segunda-feira, março 16, 2015

Para sempre Alice, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland *


É provável que uma obra como “Para sempre Alice” (2014) tenha uma espécie de função social importante que transcenda os seus méritos artísticos. Afinal, dentro do gênero ao qual pertence, o “filme doença”, a produção dirigida por Richard Glatzer e Wash Westmoreland acaba sendo bem didática sobre a questão do Mal de Alzheimer, enfocando com detalhes tanto a fase do diagnóstico como o doloroso processo de desenvolvimento dos sintomas da doença. Como obra cinematográfica, entretanto, está bem longe de ser considerada uma experiência satisfatória. Há uma indecisão estética constante permeando a narrativa – os fatos se sucedem sem o devido peso dramático, apesar do filme abusar de forma constante de uma considerável de truques emocionais apelativos como música incidental melosa nos momentos mais “tocantes”, personagens olhando para o horizonte sugerindo alguma introspecção e diálogos edificantes estilo autoajuda (com direito, inclusive, a um discurso proferido pela protagonista Alice para uma plateia de familiares, médicos e outros pessoas afetadas pela doença). Toda essa concepção formal equivocada faz com que “Para sem Alice” mais pareça um vídeo institucional sobre o Alzheimer que conta com um estrelado elenco de Hollywood do que uma produção cinematográfica propriamente dita. E para aqueles que acham que seria impossível tratar de tal temática sem cair nesse estilo melodrama barato, recomenda-se o devastador “Amor” (2012), de Michael Haneke, extraordinária visão metafórica do diretor austríaco Michael Haneke de uma doença degenerativa como a própria desintegração da moral e da civilidade da sociedade ocidental.

sexta-feira, março 13, 2015

Gato preto, gato branco, de Emir Kusturica ****


Poucos cineastas na atualidade conseguiram elaborar um universo tão particular quanto o sérvio Emir Kusturica. Visto em conjunto, seus filmes configuram uma visão muito pessoal do diretor sobre história, política e cultura, tudo isso embalado por uma concepção estética que parece fazer sentido apenas de acordo com os princípios de seu criador. “Gato preto, gato branco” (1998) é uma obra que dá continuidade e complementação a outras obras da filmografia de Kusturica – ela pode ser vista como uma história auto-contida, mas também é inegável que se mostra em sintonia com as temáticas e escolhas formais favoritas do cineasta. Ao mostrar uma trama envolvendo mal-entendidos e trambiques entre um grupo de clãs de ciganos, Kusturica tanto reforça o seu apreço por personagens e situações que fogem dos padrões de bom gosto quanto por uma narrativa de forte teor delirante e que beira o realismo mágico. A encenação é sempre exuberante, exagerada e escrachada, quase como se fosse um musical desenfreado (vide o uso constante de uma trilha sonora exótica e festiva), mas sem nunca perde o foco e o impacto. A ideia principal permanente é de um mundo em ebulição, quase em colapso, em que os ditames de uma sociedade capitalista se misturam sem cerimônia com atividades criminosas. Tal olhar amargo sobre os rumos dessa sociedade, contudo, recebem um tratamento típico de comédia de absurdo, revelando o caráter humanista da abordagem artística de Kusturica.

quinta-feira, março 12, 2015

Renascida do inferno, de David Gelb *


Hoje em dia, o que poderia motivar alguém que gosta de cinema a ver um filme de terror contemporâneo em alguma sala de multiplex? Muito provavelmente seria nostalgia, de ficar relembrando algumas sessões noturnas nos anos 70 e 80, quando quem gostava do gênero podia encontrar nos cinemas de ruas alguma tranqueira divertida na linha slasher ou pérolas efetivamente assustadoras e criativas de nomes como Wes Craven, Stuart Gordon ou Lucio Fulci. Na atualidade, com pouquíssimas e honrosas exceções, o que aparece de obras de horror são produções assépticas e formulaicas, que parecem obedecer a uma linha de montagem despersonalizada. “Renascida do inferno” (2015) é um exemplar perfeito de tal tendência. O diretor David Gelb dirige sem um traço de imaginação ou substância uma trama que chupa na cara dura o roteiro do suspense “Linha mortal” (1990) e acumula todos os truques baratos de sustos que grassam nas produções contemporâneas no gênero, além daquela assepsia visual irritante que serve para não chocar o público médio dos shoppings e de um elenco composto basicamente por gente tão inexpressiva que o público nem se importa quando os fulanos têm as suas respectivas mortes violentas.

quarta-feira, março 11, 2015

Kingsman - Serviço secreto", de Matthew Vaughan **1/2


A equação parecia quase infalível: o diretor Matthew Vaughan adaptando para as telas uma minissérie em quadrinhos de Mark Millar. Ou seja, a mesma dupla do sensacional “Kick Ass – Quebrando tudo” (2010). O resultado final de “Kingsman – Serviço secreto” (2015), entretanto, acabando ficando aquém das expectativas promissoras. A obra em vários momentos deixa claro, de forma nada sutil, que tem a pretensão de ser uma releitura entre a homenagem e a ironia das primeiras produções da franquia 007, aquelas de caráter mais escapista e menos séria, ficando em contraposição em relação aos filmes recentes da série, os quais apresentam um James Bond, na pele de Daniel Craig, mais dramático e taciturno. Ocorre que o estilo impresso por Vaughan na narrativa não consegue dar uma fluência para tal abordagem. Ao contrário de “Kick ass”, por exemplo, o filme utiliza expedientes formais típicos de genéricas produções contemporâneas de ação, o que acaba dando a várias seqüências uma incômoda sensação de grandiosidade solene que não combina com o perverso senso de humor do roteiro. Além disso, as cenas de ação deixam bastante a desejar se comparadas com aquelas dos filmes anteriores de Vaughan como “Kick ass” e “X-Men: Primeira classe” (2011), claro que com a honrosa exceção do trecho em que Galahad (Colin Firth) dizima sozinho na porrada uma congregação inteira de evangélicos. E nesse quesito de aspectos positivos, não há como não mencionar que o roteiro de “Kingsman” apresenta alguns pontos interessantes na forma ácida e crítica com que expõe alguns dilemas característicos da atualidade, principalmente no que diz respeito ao conflito de classes sociais. Mas isso acaba obscurecido pela estética genérica adotada por Vaughan e as resoluções simplistas da trama. E se a intenção era tirar um sarro com as aventuras mais recentes de James Bond, vale lembrar que filmes como “Cassino Royale” (2006) e “Skyfall” (2012) são bem mais memoráveis que “Kingsman”.

terça-feira, março 10, 2015

Jardim Europa, de Mauro Baptista Vedia **


A trama e a condução da encenação de “Jardim Europa” (2011) deixam clara a origem teatral do diretor Mauro Baptista Vedia. Ainda que marcada por uma estrutura narrativa realista, a produção traz um caráter de simbolismos bastante forte ao apresentar um roteiro que através do microcosmo de alguns poucos personagens pretende fazer um retrato da relação de conflito entre as classes sociais no Brasil. Dessa forma, o cineasta se vale de uma abordagem mais exagerada e icônica, típica do teatro, na dinâmica que se estabelece entre situações e personagens, fazendo lembrar desde algumas das peças mais emblemáticas de Nelson Rodrigues até aquela atmosfera de melancólica decadência do clássico “Os deuses malditos” (1959). Por vezes, tais escolhas artísticas rendem bons momentos. A seqüência, por exemplo, em que o simplório assalariado Osmar Pampolini (Marcos Cesana) faz uma defesa bem-humorada das “realizações políticas e administrativas” de Paulo Maluf é perversamente engraçada. Além disso, há também algumas cenas em que Vedia consegue extrair uma efetiva atmosfera de angústia ao caracterizar o processo de desagregação moral e afetiva de uma família classe média alta em processo de ruína. Tais aspectos positivos, entretanto, são insuficientes para caracterização “Jardim Europa” como um trabalho satisfatório. No geral, é uma obra cuja aridez formal e a repetição excessiva de algumas ideias temáticas a tornam uma obra cansativa e enfadonha.

segunda-feira, março 09, 2015

Arcana, de Giulio Questi ****


Para quem nunca assistiu a uma produção dirigida pelo italiano Giulio Questi, ver “Arcana” (1972) pode suscitar algumas comparações e referências – o surrealismo desconcertante de Luis Buñuel, o simbolismo intrincado de Alejandro Jodorowsky, o barroquismo visual apurado de Dario Argento. É fascinante, entretanto, que no meio de todas essas ligações que pode fazer, há um forte senso de originalidade e cunho autoral por parte de Questi. A premissa do roteiro e a formatação dramática de algumas cenas vinculam o filme à típica escola de horror italiano das décadas de 60 e 70, mas a produção envereda por vias ainda mais obscuras. O fio de história do roteiro, algo que parece ter relação com jogos de tarô e assassinatos, vai se dissolvendo progressivamente, sendo que lá pelo terço final se tem a impressão de que Questi desistiu dar algum sentido mais literal para a trama. “Arcana” vai se configurando como um pesadelo sem fim, cuja lógica se abstrai em meio a várias cenas antológicas e conceitos brilhantes. A temática baseada em violência, sexo, misticismo e tabus diversos recebe um tratamento formal contundente, que não se furta em abusar do grafismo exagerado e brutal, mas que também traz uma inesperada carga poética. Há ainda detalhes cênicos cuja criatividade é chocante mesmo para os dias de hoje (a desvairada mescla na trilha sonora de temas de suspenses com canções étnicas, o misto entre grotesco e poético de cenas como aquela da personagem que passa a cuspir sapos, a montagem que alterna tempos e lugares como se fosse um grande vórtice atordoante). Para quem acha que o máximo de ousadia artística que o cinema se permite é o melodrama de “Boyood” ou o onirismo de botequim de “Birdman”, assistir a “Arcana” pode ser uma experiência desconcertante.

sexta-feira, março 06, 2015

Um gosto de mel, de Tony Richardson ****


O que me motivou a ver “Um gosto de mel” (1961) foi a leitura de uma biografia sobre a banda britânica The Smiths. O filme em questão é citado mais de uma vez como forte referência cultural para as letras da banda. Só que essa produção inglesa acaba transcendendo a mera curiosidade histórica. O tratamento artístico dado pelo diretor Tony Richardson revela singularidades que mesmo nos dias de hoje soam bastante ousadas. A narrativa se estrutura a partir de uma fusão de elementos documentais e de melodrama, tendo uma fluência extraordinária nessa insólita combinação. Num primeiro momento, há a impressão de uma certa aridez estética na forma naturalista com que os personagens e os cenários desolados de Manchester são retratados. Aos poucos, entretanto, tal percepção se revela engenhosamente enganadora, sendo que a encenação e a dinâmica formal apresentam concepções bem criativas e libertárias. Os personagens desenvolvem um carisma magnético na forma com que lidam com seus dilemas e contradições, além das situações da trama causarem expressiva empatia pela forma crua e humana com que são expostas. Richardson consegue um raro equilíbrio entre o sentimentalismo, a melancolia e o amargo realismo.

quinta-feira, março 05, 2015

Depois da chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes ***


Não há como não fazer um paralelo entre a produção brasileira “Depois da chuva” (2013) com o francês “Depois de maio” (2012) de Olivier Assayas. Enquanto este último traçava um panorama poético e melancólico das desilusões ideológicas pós-maio de 1969, a obra assinada pelos cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes enfoca o misto de euforia e ressaca existencial que pontuou os momentos finais da ditadura militar no Brasil e o princípio da Nova República. É claro que os jovens diretores brasileiro não apresentam a mesma classe artística de Assayas, mas mesmo assim conseguem realizar um filme bastante consistente na forma com que a narrativa transita entre o político e o intimista. A necessidade de contextualizar historicamente a trama por vezes faz com que a trama tenha um incômodo didático e até mesmo ingênuo. Mesmo algumas soluções do roteiro enveredam por estruturas e lógicas um tanto simplistas. Tais equívocos, entretanto, são compensados por um expressivo senso estético e pela criação de atmosferas perturbadoras. A direção de fotografia apresenta composições cênicas notáveis no seu detalhismo visual, enquanto a sobriedade da montagem cria coerente conexão formal com o tom niilista de algumas passagens. Vale ainda destacar que alguns elementos da caracterização históricas que fogem das obviedades, como a trilha sonora repleta de temas punk ou garageiros e os sombrios cenários de casas abandonadas e ruínas de fábrica em sintonia com o espírito pós-punk da primeira metade da década de 80.

quarta-feira, março 04, 2015

Nostalgia da luz, de Patricio Guzmán ***


O diretor chileno Patricio Guzmán consegue a proeza artística em “Nostalgia da Luz” (2010) de oferecer um enfoque singular ao retomar a temática dos efeitos da ditadura de Pinochet sobre o Chile. Para isso, o cineasta se vale de um sutil e engenhoso truque narrativo, estabelecendo duas tramas paralelas que de forma poética e contundente se entrecruzam: o fascínio de cientistas e astrônomos com as possibilidades únicas de observar o sistema solar no deserto de Atacama e a busca melancólica de parentes por desaparecidos políticos que foram enterrados no mesmo deserto. O registro formal do documentário de Guzmán traça um panorama histórico e existencial perturbador. As condições climáticas e geográficas de Atacama assim como permitem um estudo esclarecedor sobre planetas e estrelas também foram usadas com eficiência macabra pelos militares para execuções e enterro de centenas de opositores de Pinochet. É interessante também que a produção evidencia como as conseqüências da política de perseguição e extermínio da ditadura ainda afloram na contemporânea sociedade chilena (alguns dos astrônomos mostrados no filme, por exemplo, são filhos de exilados e desaparecidos). Assim, sendo mais do que mera panfletagem ideológica, a obra de Guzmán se insinua de forma dolorosa no imaginário do espectador ao estabelecer um memorável jogo de simbologias e paradoxos que realça com propriedade todo o horror brutal de uma época conturbada e nem tão distante assim.

terça-feira, março 03, 2015

O nascimento de uma nação, de D.W. Griffith ****



Os fatos de ser a obra que é considerada o marco fundamental da linguagem moderna cinematográfica e de trazer como heróis os membros da organização racista Ku Klux Klan poderiam reduzir “O nascimento de uma nação” (2015) a uma mera (mas importante) curiosidade histórica. Ver o filme em questão, entretanto, na tela grande um cinema é uma experiência visceral que transcende fins puramente didáticos. Algumas técnicas rudimentares e limitações tecnológicas, na comparação com os recursos materiais de hoje, podem causar um certo estranhamento e a sensação de algo anacrônico. Ainda sim, a dinâmica narrativa impressa pelo cineasta D.W. Griffith é muito envolvente, aliada a um grande senso estético na concepção visual de sua obra. Mesmo que baseado quase que exclusivamente em planos fixos, há um encanto imagético que impressiona pelo esmero nas composições pictóricas de enquadramentos e nas eficientes trucagens envolvendo sobreposições e fusões. As extraordinárias soluções estéticas de Griffith causam um efeito perturbador para o espectador – a conjunção entre ação e tensão por vezes induz a uma empatia aos “heróis” da trama. Por mais que os conceitos sociais evocados pelo roteiro possam ser questionáveis, é de se convir também que representam os valores de uma época. Nesse sentido, “O nascimento de uma nação” não deixa de oferecer um interessante panorama histórico da formação cultural de um povo, cujas consequências até os dias de hoje encontram ressonância na sociedade ocidental.

segunda-feira, março 02, 2015

Um santo vizinho, de Theodore Melfi **


Algumas indicações a prêmio ou truques de marketing podem fazer parecer que “Um santo vizinho” (2014) tenha um grau de relevância artística maior do que ele realmente tem. Em um primeiro momento, mesmo a sua formatação pode sugerir isso: uma ambientação de tons naturalistas (o protagonista vivido Bill Murray, por exemplo, é mostrado com todas as rugas a que tem direito e mais alguns machucados repletos de sangue coagulado), o roteiro tem aquelas pretensão de retratar as coisas do dia-a-dia, até mesmo a trilha sonora é repleta de boas canções na linha “rock indie”. Todos esses elementos, entretanto, só servem para iludir o espectador incauto. Na realidade, a produção dirigida por Theodore Melfi é bem genérica nos seus truques baratos de misturar comédia e melodrama edificante. Por mais escroto e irônico que Vincent (Murray) possa ser, sempre haverá um detalhe no roteiro que o isentará de suas más ações. A iluminação natural estourada e a caracterização sem glamour da maioria do elenco não conseguem esconder que se está vendo uma narrativa formulaica e sem convicção. O que garante algum pouco de vida e credibilidade para “Um santo vizinho” é o carisma de Bill Murray – o cara, mesmo envelhecido, é aquele tipo raro de ator que tem uma imposição cênica magnética e que consegue transcender mesmo uma encenação tão medíocre quanto à do filme em questão.