quinta-feira, outubro 31, 2013

Família do bagulho, de Rawson Marshall Thurber ***

Em algumas oportunidades, filmes comerciais e escapistas conseguem trazer em sua essência uma visão muito mais contestadora e irônica em relação aos costumes da sociedade moderna do que muitas produções pretensamente sérias e artísticas. “Família do bagulho” (2013) é exemplo claro de tal situação. Formatada como uma comédia romântica, com eventuais toques escatológicos e de humor físico grosseiro, tendo direito inclusive a um certo tom de fábula moral, a obra dirigida por Rawson Marshall Thurber traz com sutileza uma abordagem crítica e ácida do moralismo tipicamente norte-americano. A falsa família composta por desajustados (traficante, stripper, delinquente juvenil e virgem bobalhão) até tem direito a uma redenção na conclusão do filme, mas traz também dentro de si um certo tom de desafio aos padrões de normalidade. A sequência, por exemplo, em que o garoto virginal é treinado pela “irmã” e pela “mãe” para saber beijar traz uma dose inusitada de ironia perversa para esse tipo de produção. Assim, mesmo estando longe da fúria cômica icoloclasta de um Monty Python, “Família do bagulho” não deixa de representar um salutar desafio ao carolismo dos blockbusters contemporâneos.

quarta-feira, outubro 30, 2013

Muito barulho por nada, de Joss Whedon ***


Depois do estrondoso sucesso comercial de “Os vingadores” (2012), o diretor Joss Whedon parece ter resolvido enveredar por uma vertente bastante diversa em “Muito barulho por nada” (2012). No conjunto geral, essa versão para a peça cômica de Shakespeare  é menos ousada e grandiosa do que aquele concebida por Kenneth Brannagh em 1993. Trata-se de uma produção de pequeno orçamento, mas que adota uma perspectiva inusitada – preserva-se praticamente na íntegra o texto original da obra e o contexto histórico da trama, sendo que a encenação e a direção de arte usam elementos contemporâneos. É como se Whedon estivesse dedicado a provar a atemporalidade da arte do bardo inglês, valorizando ao extremo a fluência e a ironia dos diálogos e as espirituosas atuações do seu elenco. O cineasta não propõe nada de novo na conjunção entre cinema e teatro, o que pode causar um estranhamento pela atmosfera não naturalista e pelo ritmo narrativo mais pausado típico dos palcos. Mesmo assim, Whedon preserva a fluência da trama com edição ágil e fotografia eficiente em preto e branco.

terça-feira, outubro 29, 2013

A família, de Luc Besson ***


Num primeiro momento, tanto lendo a sinopse quanto assistindo às suas primeiras cenas, pode-se pensar que “A família” (2013) seria uma espécie de paródia/homenagem a alguns clássicos filmes sobre a Máfia. O fato de ter Robert De Niro como protagonista além de uma seqüência envolvendo um debate num cineclube sobre a obra-prima “Os bons companheiros” (1990), reforça também essa impressão. Um olhar mais atento, entretanto, revela que essa produção dirigida pelo francês Luc Besson tem um alcance maior na sua proposta. Mais do que um mero pastiche, a obra sugere uma visão do que compõe o nosso imaginário em relação a filmes sobre gângsteres. Assim, a trama revela um alto grau de exagero na caracterização de situações e personagens, pendendo mais para o caricatural e grotesco do que para alguma profundidade psicológica. Ocorre que tal abordagem distorcida acaba gerando um filme de momentos efetivamente divertidos, repletas de perverso humor negro e violência que beira o cartunesco. Nas boas seqüências de ação e brutalidade, Besson mostra que ainda tem boa mão estética, fazendo lembrar por vezes até o seu grande magnum opus, “O profissional” (1994).

segunda-feira, outubro 28, 2013

Elysium, de Neill Blomkamp **1/2

Uma das coisas que mais me agradava em “Distrito 9” (2009), o ótimo filme que projetou mundialmente o diretor sul-africano Neill Blomkamp, era o visual sujo e a atmosfera sórdida que permeava sua narrativa. No meio de uma trama de ficção cientifica de ritmo alucinante, o cineasta também conseguia traçar uma contundente metáfora para a questão do racismo no mundo. Em “Elysium” (2013), sua estreia nas produções norte-americanas, pode-se perceber que o gume do seu cinema perdeu parte considerável do seu corte, ainda que possa se perceber eventualmente algum traço da sua marca autoral. Num primeiro momento, fica evidente que Blomkamp cria uma concepção visual na construção visual de um futuro distópico que procura fugir da assepsia imagética que predomina nas recentes produções norte-americanas do gênero. Colabora também para isso que a violência de algumas cenas seja explícita e brutal, dando para o filme um certo ar de produção B. O grande problema da obra, contudo, está na falta de uma genuína tensão na narrativa, de um roteiro mais elaborado e menos esquemático, de um elenco que fuja do padrão piloto automático (com exceção de Wagner Moura, que por mais over que esteja em alguns momentos, pelo menos oferece uma atuação mais viva). Do jeito que ficou, a impressão que se tem é que Blomkamp sucumbiu a pressões parar formatar o seu cinema de acordo com padrões mais palatáveis.

sexta-feira, outubro 25, 2013

Mistérios de Lisboa, de Raúl Ruiz ****


Os limites entre a literatura e o cinema são muito tênues em “Mistérios de Lisboa” (2010). Não dá para dizer que a primeira é simplesmente adaptada a uma linguagem cinematográfica, pois em vários momentos do filme sentimos que a própria sonoridade dos diálogos e as narrações possui um texto carregado típico de um romance. Na verdade, é como se o diretor Raúl Ruiz fizesse questão de não submeter o texto original a uma adaptação rígida. Isso explica a longa duração do filme (mais de quatro horas). Mas é aí que reside uma das forças criativas do filme: a sua narrativa tem um estranho encanto hipnótico, em que mesmo os exageros românticos do roteiro parecem fazer sentido de forma incrivelmente coerente. Ruiz estabelece um universo próprio em que os detalhes da trama até têm lógica realista, mas a encenação obedece a uma coreografia de falas e ações que pertencem a uma outra esfera de plano narrativo. Diante dessa abordagem artística, o cineasta encontra o pretexto ideal para que enverede em um barroquismo estético estonteante, repleto de nuances que exigem forte atenção do espectador, indo de truques e efeitos visuais de contundente caráter simbólico até uma direção de fotografia de enquadramentos de grande beleza pictórica. E por mais que as ousadias formais de Ruiz estejam impressas em várias passagens de “Mistérios de Lisboa”, a obra está longe de se enquadrar em mero experimento – a dinâmica da sua edição cria uma tensão impactante, fazendo com que a longa metragem do filme dê a impressão de até passar sem que se perceba isso.

quinta-feira, outubro 24, 2013

Las acacias, de Pablo Giorgelli **1/2


Em termos gerais, a trama de “Las acacias” (2011), que se desenvolve em uma narrativa realista e linear, pode ser resumida da seguinte forma: caminhoneiro solitário e de poucas palavras dá uma carona para uma desconhecida com seu bebê em longa viagem do Paraguai para a Argentina, a convivência entre eles acaba humanizando o motorista e faz com que ele se abra expondo seus desejos e mágoas; e por fim ambos se descobrem apaixonados. Parece meio previsível, não é? E é mesmo. O diretor Pablo Giorgelli dá um acabamento mais “artístico”, abusando de uma abordagem pretensamente mais sutil, valorizando silêncios, tomadas de plano fixo de caráter reflexivo e as interpretações naturalistas do elenco. O formalismo da produção é correto e competente, mas a verdade é que se trata de uma obra que está longe de empolgar ou arrebatar – não há uma seqüência sequer que efetivamente seja capaz de se grudar no imaginário. Se um norte-americano dirigisse de forma menos cerebral passaria até por uma dessas comédias românticas que tem as pencas por aí. No final das contas, funciona como uma curiosidade cinematográfica, mas de caráter descartável.

quarta-feira, outubro 23, 2013

A coleção invisível, de Bernard Attal **1/2


A maior virtude de “A coleção invisível” (2012) é a sobriedade da sua concepção e realização. Lidando com temas espinhosos como a morte e a velhice, o filme do diretor Bernard Attal evita exageros sentimentais. Há uma certa elegância na sua encenação e a fotografia e a edição são competentes. De se destacar ainda as boas atuações do elenco, com destaque para a surpreendente interpretação de Vladimir Britcha como protagonista. Apesar de tais virtudes, a produção é frustrante pela frouxidão de sua narrativa. A coerência formal e temática da obra acaba sendo uma camisa de força criativa – por vezes, tudo soa muito artificial e esquemático demais, como se pudéssemos enxergar todos os mecanismos estéticos do filme. Mesmo a sua linguagem de simbologias que configura “A coleção invisível” como se fosse uma fábula moral parece funcionar de forma acadêmica em demasia. Faltou maior contundência e ousadia na abordagem de Attal, o que torna a produção um melancólico canto do cisne para Walmor Chagas.

terça-feira, outubro 22, 2013

Rush - No limite da emoção, de Ron Howard ***1/2


O diretor norte-americano Ron Howard nunca se notabilizou por ser especialmente ousado em termos estéticos, assim como sua carreira se pautou por uma incômoda irregularidade – afinal o mesmo cara que dirigiu o antológico “O tiro que não saiu pela culatra” (1989) concebeu o horroroso “Anjos e demônios” (2009). Diante desse contexto, é o típico nome que não desperta grandes expectativas. “Rush – No limite da emoção” (2013) é uma obra que volta a dar crédito para Howard. Mesmo com as simplificações do roteiro e alguns excessos de convencionalismo formal, é um filme que fascina na sua recriação da mitologia da Fórmula 1 nos anos 70. A atmosfera elaborada pelo cineasta evoca algo entre o sonhador e o hedonista, acentuando a nostalgia e uma certa ingenuidade num período menos politicamente correto e também quando o esporte em questão não estava tão dominado pelos interesses corporativos. Além disso, Howard revela boa mão para a ação cinematográfica: as sequências de corrida são alucinantes e brutais no registro detalhista de curvas, ultrapassagens e violentos acidentes. Mesmo o fato da trama ser um tanto superficial na caracterização psicológica das situações e seus personagens não se torna um grande empecilho, pois o foco de Howard passa por um viés mitológico, icônico. Assim, talvez “Rush” não seja o tratado cinematográfico definitivo sobre a Fórmula 1, mas mesmo assim acaba se tornando uma produção memorável pela carga visceral inesperada da encenação de Howard.

segunda-feira, outubro 21, 2013

Lovelace, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman **


É impossível não pensar na obra-prima “Boogie Nights” (1997), uma espécie de cinebiografia disfarçada do astro pornô John Holmes, quando se vê “Lovelace” (2013), outra cinebiografia, só que autorizada, da vida de Linda Lovelace, a estrela do clássico “Garganta profunda” (1972). Mas se o filme de Paul Thomas Anderson era um épico sórdido sob o submundo da indústria pornográfica setentista, tomado por uma atmosfera hedonista e formalismo virtuoso, esse trabalho dos diretores Rob Epstein e Jeffrey Friedman assume um direcionamento bem frustrante. Por vezes, até se evoca algo da estética exagerada e cafona dos anos 70, mas nos geral “Lovelace” mais parece um telefilme mofado e bem-comportado. De certa forma, dá para dizer pelo menos que tal abordagem se revela em sintonia com o roteiro da produção, moralista até a medula.

sexta-feira, outubro 18, 2013

Dose dupla, de Baltasar Kormákur ***


A origem de “Dose dupla” (2013) é comum a várias produções recentes vindas de Hollywood – é baseada em uma história em quadrinhos (curiosamente, desenhada por um gaúcho, Matheus Santolouco). E isso fica evidente no filme: é uma história policial bastante movimentada, com idas e vindas no tempo, com cenas de ação violentas tendendo para o cartunesco, além de um roteiro repleto de exageros que descambam para inverossimilhança. Isso não quer dizer, entretanto, que o diretor Baltasar Kormákur apele para uma edição videoclipeira ou mesmo de câmera tremida. O seu senso de encenação e montagem se vincula ao tradicionalismo, mas essa preferência pelo convencional é benéfica para a produção – há uma clareza narrativa notável nas coreografias de lutas, tiroteios, perseguições e explosões. É claro que não se trata de nenhuma obra-prima da violência cinematográfica na linha Sam Peckimpah. Ainda sim, perto do que faz no gênero ação ultimamente, acaba se sobressaindo. E como bônus, vale mencionar as atuações bastante carismáticas de Denzel Washington e Mark Wahlberg.

quinta-feira, outubro 17, 2013

Invocação do mal, de James Wan **1/2


A maioria das críticas e comentários que se faz em relação à “Invocação do mal” (2013) defende que essa produção dirigida por James Wan representaria um oásis no atual panorama do gênero de horror. Isso porque o filme não se vale da estética da câmara subjetiva e também por não enveredar pelos caminhos do horror explícito. Nessa ótica, a obra em questão representaria uma espécie de volta à essência do terror, enfocando muito mais a tensão e aquilo que não é visto. Na minha visão isso tudo é um grande exagero, além de descambar para o reducionismo. O fato de um filme adotar uma determinada abordagem não quer dizer que necessariamente ele será bom ou não. Assim como no estilo de câmera subjetiva apareceram algumas produções relevantes e criativas (“Rec”, “O último exorcismo”) e naquela linha de tripas e sadismos por vezes surgiram obras de qualidade artística considerável (“Alta tensão”, “Viagem maldita”, “O albergue”), também ocorreu de que abordagens mais clássicas trouxessem resultados frustrantes. E nesse último caso, daria para enquadrar “Invocação do mal”. Dá para dizer que na sua primeira metade o filme até surpreende, principalmente por um certo virtuosismo de Wan – há planos-sequência realizados de forma convincente, a edição e fotografia trazem elegância formal. Na metade final, entretanto, tudo parece se converter num pastiche insosso de “O exorcista” (1973) e seus derivados. Toda aquele pretensão de sutileza e tensão se esvai em nome de barulhentos e inócuos sustos, lutas e possessões. Falta a “Invocação do mal” uma efetiva atmosfera de sordidez e de mistério. Do jeito que ficou, está mais para as dúzias de produções de horror assépticas que vêm de Hollywood todos os anos.

quarta-feira, outubro 16, 2013

Beijos de emergência, de Philippe Garrel ****


O intimismo do cinema de Philippe Garrel ganha uma conotação ainda mais inesperada em “Beijos de emergência” (1989). Ao focar a história de um cineasta (interpretado pelo próprio Garrel) que se vê num dilema conjugal ao resolver filmar um roteiro de forte conotação autobiográfica, o diretor propõe uma narrativa que se pauta por um naturalismo poético. Impressiona muito a fluência que beira o despudorado com que Garrel estabelece a sua encenação. Não é à toa que os intérpretes da esposa, do pai e do filho do protagonista sejam justamente aqueles que desempenham tais papéis na vida real do diretor. Nesse sentido, é como se o filme sugerisse que as fronteiras entre a arte e a vida fossem muito tênues para Garrel. Diante dessa lógica, não é uma obra que se desenvolva através de grandes reviravoltas – dilemas e conflitos se firmam com a fluência típica da vida, os personagens têm comportamentos que variam entre o impulsivo e o resignado. O estilo de filmar de Garrel é aquele característico de boa parte do melhor de sua filmografia – as elipses que reduzem a narrativa ao essencial, o formalismo de teor contemplativo, a trama que se configura como um pedaço inconclusivo da vida de suas criaturas. Garrel não oferece ao espectador soluções fáceis para aquilo que questiona ao longo da produção. E é justamente esse não compromisso em amarrar todas as pontas que torna “Beijos de emergência” uma obra tão inquietante e de encanto perene.

terça-feira, outubro 15, 2013

Boa sorte, meu amor, de Daniel Aragão ***1/2


O diretor pernambucano Daniel Aragão demonstra em seu longa de estréia “Boa sorte, meu amor” (2012) ter uma espécie de sintonia existencial e artística com seus colegas conterrâneos Cláudio Assis e Kleber Mendonça Filho. Afinal, seu filme traz uma notável combinação de visão crítica da sociedade ocidental contemporânea com uma estética que se desenvolve a partir de uma abordagem em que predomina o sensorial. Nesse sentido, Aragão valoriza, às vezes de forma precisa, outras vezes exagerada, aspectos diversos da linguagem cinematográfica – lentos e exasperantes planos-sequência, uso insólito do som, narrativa simbolista, atmosferas delirantes. Até a direção de elenco revela um caráter diferenciado, em que a beleza da protagonista Maria (Christiana Ubach) parece refletir uma inesperada inocência em meio a sordidez moral que a rodeia, enquanto a interpretação inexpressiva Vinicius Zinn na realidade cai como uma luva para o personagem Dirceu, um jovem pequeno-burguês bunda-mole (e por vezes prepotente) que acaba engolido por um destino que está muito além da sua confortável rotina de rapaz de bem. A ambição temática de Aragão também chama a atenção – sua saga que varia entre o intimista, o surreal e o político junta na mesma obra o urbano/moderno e o rural/arcaico, retratando uma sociedade que se pretende cosmopolita e avançada, mas que na realidade ainda é regida por velhos mecanismos excludentes. Se toda essa pretensão em alguns momentos esbarra em excessos formais e textuais incômodos, em outras passagens encanta pela sua contundência desconcertante.

segunda-feira, outubro 14, 2013

Já não ouço a guitarra, de Philippe Garrel ****


Muito se fala em cinema autoral e pessoal, mas poucos são aqueles cineastas que conseguem gerar uma obra de marca tão indelével e particular quanto o diretor Philippe Garrel logrou em “Já não ouço a guitarra” (1991). Trata-se de uma produção ficcional, mas o próprio Garrel revela que o roteiro é bastante inspirado em fatos de sua vida amorosa com a cantora e modelo alemã Nico, que além de uma expressiva discografia solo também teve participação antológica no fundamental primeiro disco do Velvet Underground. Nesse sentido, é fascinante como um aspecto intimista da vida de Garrel, e que ele aborda de forma bastante visceral, ganha uma dimensão universal no sentido que seu drama amoroso ganha ressonância no imaginário coletivo (afinal, Nico representa um capítulo relevante na história cultural dos últimos 50 anos). Nesse sentido, a habitual estética de Garrel, aqui num de seus momentos de apuro mais elevado, é o veículo mais que ideal para abarcar o seu relato emocional e amargo de um relacionamento que se desintegra. Como entre outras obras do cineasta, sua narrativa não é detalhista . A trama se divide em momentos cujo espaçamento de tempo é aleatório – tanto podem se passar algumas horas entre eles quanto semanas, meses, anos... Em cada um desses trechos, o enfoque é no estado anímico dos personagens e não no contexto histórico deles. Essa sensação de elipses temporais é desconcertante, mas também é muito verdadeiro em termos de construção das situações e personagens. Nessa formatação, não interessa se falar em final feliz ou não para os indivíduos. O que o espectador vê é apenas uma fração das suas vidas, sendo que a conclusão em aberto de “Já não ouça a guitarra” ganha uma conotação de brutal coerência formal e temática.

sexta-feira, outubro 11, 2013

O nascimento do amor, de Philippe Garrel ***1/2


As coisas no cinema de Philippe Garrel parecem seguir um ritmo próprio, como se fizessem parte de um universo particular do cineasta. “O nascimento do amor” (1993) é obra sintomática desse direcionamento artístico. A trama se desenvolve num tempo indefinido, sendo que a estética concebida por Garrel acentua ainda mais essa ideia de atemporalidade. Num primeiro momento, o formalismo da produção alude aos anos áureos da Nouvelle Vague – fotografia em preto e branco, além da edição e narrativa repletas de elipses. Na realidade, Garrel é contemporâneo de Godard e Truffaut, sendo que começou a dar seus primeiros passos no cinema justamente durante o célebre movimento cinematográfico francês. Até mesmo o roteiro traz em si a noção “fora do tempo e do espaço”; os protagonistas Paul (Lou Castel) e Marcus (Jean-Pierre Leaud, em personagem que se mostra em sintonia com o antológico Antoine Doinel) são homens maduros, mas apresentam comportamentos oscilantes e inconseqüentes. Garrel faz a crônica de uma eterna juventude, da imaturidade inconstante. Suas criaturas vagam pela vida num cruzamento entre o hedonismo e a melancolia. E no meio dessa abordagem nostálgica e amarga e das referências mencionadas, fica uma obra de encanto hipnótico e envolvente.

quinta-feira, outubro 10, 2013

O ataque, de Roland Emmerich **1/2


Numa dessas coincidências típicas de Hollywood, calhou que em 2013 aparecessem duas produções grandiosas a retratar a Casa Branca sendo atacada e parcialmente destruída. As próprias tramas, inclusive, são muito parecidas entre si: basicamente, o presidente dos Estados Unidos tem a sua guarda massacrada e sua única tábua de salvação é um agente desacreditado e sagaz. “Ataque à Casa Branca”, de Antoine Fuqua, já comentado neste blog, resgata a estética oitentista no gênero ação, caprichando na violência e na grafismo sanguinolento. Este “O ataque”, de Roland Emmerich, apesar de bastante barulhento e movimentado, é mais politicamente correto e asséptico na sua brutalidade, além de sua veia patriótica ser bem mais exacerbada. É quase como uma produção da franquia Rambo que pudesse ser visto por toda a família. Assim, no saldo final, Fuqua acabou se saindo bem melhor que o seu colega Emmerich: seu filme é bem mais casca grossa e sincero, além de melhor resolvido no seu formalismo.

quarta-feira, outubro 09, 2013

Se puder... dirija!, de Paulo Fontenelle ½ (meia estrela)


Para quem conhece e admira o ator Luis Fernando Guimarães pelo seu trabalho marcante em momentos chaves da comédia nacional como o irreverente grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone e o ácido programa televisivo oitentista TV Pirata, chega a ser constrangedor vê-lo participando de uma produção tão inócua, tosca e babaca como “Se puder... dirija!” (2012). Pense no programa cômico mais sem graça da atual programação da televisão brasileira e imagine isso formatado num filme de uma hora e meia (e que parece que tem o dobro do seu tempo), mas com a pretensão de trazer uma lição de moral edificante. E o pior é que nem dá para dizer que de tão ruim chega a ser engraçado. Não, pelo contrário: de tão mambembe, o filme é chato de uma forma excruciante. Basicamente, o filme aparente ser a reunião de sketches humorísticos reunidos num fio de história. Não há unidade na narrativa, a encenação é desajeitada e o elenco está no piloto automático (com o “bônus” de contar com a pior interpretação infantil dos últimos anos). Ah, talvez essa ostensiva falta de inspiração e competência podia ser apenas pressuposto para o uso da tecnologia 3D, mas a trucagem passa praticamente desapercebida. Ou seja, “Se puder... dirija!” é candidato a maior embuste do ano nos cinemas.

terça-feira, outubro 08, 2013

A filha do meu melhor amigo, de Julian Farino **


Há em “A filha do meu melhor amigo” (2012) uma pretensão de ser “alternativo”. Tem aquele jeitão “indie”, roteiro que se pretende questionador do comportamento da típica família pequeno-burguesa norte americana, evoca algo daquelas comédias acre-doce dos anos 70. Não se engane. No final das contas, o filme é apenas “mais do mesmo”, sendo tão (ou mais) superficial que a média das produções escapistas e comerciais que provém de Hollywood. Está muito mais para uma morna produção oriunda da televisão – não há a mínima ousadia formal na obra em questão, sendo que mesmo a trama que ostenta uma aura contestadora envereda por um conservadorismo incômodo na sua resolução. É um passatempo agradável por vezes, com um elenco até carismático (ainda que caricatural em sequências importantes). Nada, entretanto, que seja especialmente memorável. Aqueles que desejam ver algo mais contundente em termos de ironia às mazelas da família moderna podem ler ou assistir a alguma peça de Nelson Rodrigues – seria uma experiência bem mais substanciosa e impactante do que esse mediano “A filha do meu melhor amigo”.

segunda-feira, outubro 07, 2013

A espuma dos dias, de Michel Gondry ***


“Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004), a grande obra-prima do diretor francês Michel Gondry, marcava uma união que se mostrava em sintonia brilhante: o roteiro surreal e muito bem amarrado de Charlie Kaufman (talvez o melhor roteirista norte-americano surgido nos últimos 20 anos) e as criativas concepções visuais de Gondry. Em “A espuma dos dias” (2013), obra mais recente de Gondry, a falta de um roteiro mais focado parece ser o fator preponderante para que o filme em questão se mostre como uma narrativa tão irregular. O diretor ainda se mostra afiado em criar cenas de uma atmosfera imagética delirante – a Paris de Gondry parece pertencer a uma dimensão paralela, em que o retrô, o futurista e o onírico se colidem de forma constante. Dá para dizer que a primeira metade da produção se desenrola como um sonho desajeitado e simpático, com efeitos especiais e detalhes temáticos que lembram alguns trabalhos de Jean-Pierre Jeunet (impressão reforçada também pela presença no elenco de Audrey Tautou, musa de Jeunet). Já a segunda parte do filme envereda por uma atmosfera sufocante de pesadelo – nesse sentido, a sensação de bad trip se estabelece justamente quando o filme busca o seu vínculo maior com a realidade. O problema de “A espuma dos dias” é que essa multiplicidade sensorial é obrigada a se formatar numa trama de matiz convencional. O roteiro por vezes se contenta com um certo banalismo, deixando de explorar vários pontos interessantes que a sua temática tangencia (totalitarismo, convenções sociais distorcidas). As limitações de uma “love story” levam Gondry a excessos estéticos que acabam tirando muito do impacto do filme. Mesmo assim, é uma obra instigante no seu barroquismo exacerbado, mostrando que Gondry ainda é um nome a se prestar atenção.

sexta-feira, outubro 04, 2013

Casa da mãe Joana 2, de Hugo Carvana *1/2


Não tem como escapar do típico clichê da crítica cinematográfica: de tão capenga, “Casa da mãe Joana 2” (2013) até consegue ser engraçado. O diretor Hugo Carvana já é veterano no cinema brasileiro, então não dá para dizer que desaprendeu a fazer filmes. O que acontece que é o seu estilo soa datado e pouco fluente, fazendo com que a produção tenha a aparência de algum sketch do “Zorra total” alongado, ainda que filtrado por um nostálgico bom humor carioca. É provável que Carvana e equipe tenham se divertindo na realização, pois a impressão é que não há rigor na direção. Tudo é muito solto, como um trem desgovernado, dependendo muito mais de alguma boa intervenção dos atores. O trio de protagonistas composto por José Wilker, Paulo Betti e Antônio Pedro está longe de ser inexpressivo, mas a ausência de um direcionamento mais específico resulta em atuações caricaturais em excesso. No final das contas, a narrativa frouxa e desajeitada dá um aspecto mambembe para tudo, o que não deixa de angariar alguma simpatia para o espectador no meio de todas essas comédias assépticas globais que grassam nos nossos cinemas. Impede, porém, de que “Casa da mãe Joana 2” seja uma obra memorável.

quinta-feira, outubro 03, 2013

Jobs, de Joshua Michael Stern *


Sem querer forçar a barra, mas dá para dizer que os nerds mais sem critérios têm mais uma trilogia a acrescentar entre os seus objetos de culto: a de filmes inspirados em grandes marcas da Internet. “A rede social” (2010) mostrou os bastidores das origens e ascensão do Facebook, enquanto “Os estagiários” (2013) tem uma trama fictícia cujo pano de fundo é uma espécie de propaganda dos ideais do Google. Já esse “Jobs” (2013) pelo título já é auto-explicativo: trata-se de uma cinebiografia do criador da Apple, Steve Jobs. É interessante observar que cada uma de tais produções possui uma abordagem diferente. “A rede social” se formata como uma ácida e brilhante crônica de costumes da sociedade ocidental desse século. Já “Os estagiários”, apesar do seu caráter marqueteiro, é uma competente e previsível “comédia universitária”. “Jobs” envereda no gênero da cinebiografia clássica. Seus equívocos, entretanto, não têm necessariamente relação com o seu convencionalismo. O que irrita no filme é um tenebroso descompasso entre o que o roteiro se propõe (uma análise crítica sobre a trajetória profissional de seu protagonista) e a estrutura narrativa proposta pelo diretor Joshua Michael Stern, que parece escolher um tom entre o laudatório e o edificante. Assim, prevalece uma inconveniente e constante trilha sonora melosa (temos a permanente sensação de se estar assistindo a uma grandiosa obra de caráter cívico), roteiro esquemático e previsível, fotografia e edição sem a mínima criatividade, interpretações que oscilam entre o medíocre e o constrangedor (francamente, semelhança física com pessoais reais não deveria ser a condição principal na escolha do elenco). Todos essas questionáveis escolhas artísticas levam a uma obra de sentido mais que confuso – seria algo como “olha, o Jobs era um sociopata, mas no fundo era um cara legal, afinal ganhou tanta grana....”.

quarta-feira, outubro 02, 2013

O casamento do ano, de Justin Zackham *1/2


Por mais que o diretor Justin Zackham diga ter usado no roteiro memórias pessoais e tenha um pretenso verniz de ousadia temática (afinal se fala em adultério, homossexualismo, hipocrisia religiosa), a verdade é que “O casamento do ano” (2013) é uma obra destituída de ousadia e personalidade. Tudo no filme cheira a naftalina – da trama superficial de teor edificante à abordagem formal de Zackham, que abusa de uma estética cartão-postal. Com alguma boa vontade, dá para salvar as atuações carismáticas de Robert De Niro, Diane Keaton e Susan Sarandon, ainda que em relação a isso se tenha uma certa sensação de melancolia em pensar que eles já participaram de produções mais criativas e contundentes.

terça-feira, outubro 01, 2013

Os estagiários, de Shawn Levy **1/2


Na formatação da sua narrativa, dá para dizer que “Os estagiários” (2013) se enquadra naquele gênero de “comédias universitárias”: os principais personagens devem se superar para atingir seus objetivos, em algumas passagens sofrerão bullying, em outras darão umas paqueradas e farão umas festas, até chegar a um clímax em que seus talentos serão reconhecidos e eles ganharão os respeitos de seus colegas e a admiração definitiva de seus respectivos interesses amorosos. O que tem de diferente no filme em questão é que a trama se passa no ambiente de trabalho da Google, com os protagonistas Billy (Vince Vaughan) e Nick (Owen Wilson) tendo por metas se tornarem empregados fixos da empresa em questão. Assim, o filme é até razoavelmente competente dentro de tal gênero – é efetivamente engraçado em algumas cenas, Vaughan e Wilson têm interpretações carismáticas e a narrativa é agradável. Mas nada muito além disso: por mais que o roteiro louve a capacidade criadora de quem trabalha na Google, tudo na produção é rigorosamente previsível. Mas o que mais incomoda em “Os estagiários” é que no final das contas o filme soa quase como uma espécie de peça publicitária a exaltar o Google, distante, assim, por exemplo, da visão lúcida e crítica que o brilhante “A rede social” (2010) expressou ao radiografar a ascensão do Facebook.