Em algumas oportunidades, filmes comerciais e escapistas
conseguem trazer em sua essência uma visão muito mais contestadora e irônica em
relação aos costumes da sociedade moderna do que muitas produções pretensamente
sérias e artísticas. “Família do bagulho” (2013) é exemplo claro de tal situação.
Formatada como uma comédia romântica, com eventuais toques escatológicos e de
humor físico grosseiro, tendo direito inclusive a um certo tom de fábula moral,
a obra dirigida por Rawson Marshall Thurber traz com sutileza uma abordagem crítica
e ácida do moralismo tipicamente norte-americano. A falsa família composta
por desajustados (traficante, stripper, delinquente juvenil e virgem bobalhão)
até tem direito a uma redenção na conclusão do filme, mas traz também dentro de
si um certo tom de desafio aos padrões de normalidade. A sequência, por
exemplo, em que o garoto virginal é treinado pela “irmã” e pela “mãe” para
saber beijar traz uma dose inusitada de ironia perversa para esse tipo de produção.
Assim, mesmo estando longe da fúria cômica icoloclasta de um Monty Python, “Família
do bagulho” não deixa de representar um salutar desafio ao carolismo dos
blockbusters contemporâneos.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, outubro 31, 2013
quarta-feira, outubro 30, 2013
Muito barulho por nada, de Joss Whedon ***
Depois do estrondoso sucesso
comercial de “Os vingadores” (2012), o diretor Joss Whedon parece ter resolvido
enveredar por uma vertente bastante diversa em “Muito barulho por nada” (2012).
No conjunto geral, essa versão para a peça cômica de Shakespeare é menos ousada e grandiosa do que aquele
concebida por Kenneth Brannagh em 1993. Trata-se de uma produção de pequeno
orçamento, mas que adota uma perspectiva inusitada – preserva-se praticamente
na íntegra o texto original da obra e o contexto histórico da trama, sendo que
a encenação e a direção de arte usam elementos contemporâneos. É como se Whedon
estivesse dedicado a provar a atemporalidade da arte do bardo inglês,
valorizando ao extremo a fluência e a ironia dos diálogos e as espirituosas
atuações do seu elenco. O cineasta não propõe nada de novo na conjunção entre
cinema e teatro, o que pode causar um estranhamento pela atmosfera não
naturalista e pelo ritmo narrativo mais pausado típico dos palcos. Mesmo assim,
Whedon preserva a fluência da trama com edição ágil e fotografia eficiente em
preto e branco.
terça-feira, outubro 29, 2013
A família, de Luc Besson ***
Num primeiro momento, tanto lendo a sinopse quanto assistindo
às suas primeiras cenas, pode-se pensar que “A família” (2013) seria uma espécie
de paródia/homenagem a alguns clássicos filmes sobre a Máfia. O fato de ter
Robert De Niro como protagonista além de uma seqüência
envolvendo um debate num cineclube sobre a obra-prima “Os bons companheiros” (1990),
reforça também essa impressão. Um olhar mais atento, entretanto, revela que
essa produção dirigida pelo francês Luc Besson tem um alcance maior na sua
proposta. Mais do que um mero pastiche, a obra sugere uma visão do que compõe o
nosso imaginário em relação a filmes sobre gângsteres. Assim, a trama revela um
alto grau de exagero na caracterização de situações e personagens, pendendo
mais para o caricatural e grotesco do que para alguma profundidade psicológica.
Ocorre que tal abordagem distorcida acaba gerando um filme de momentos
efetivamente divertidos, repletas de perverso humor negro e violência que beira
o cartunesco. Nas boas seqüências de ação e brutalidade, Besson mostra que
ainda tem boa mão estética, fazendo lembrar por vezes até o seu grande magnum
opus, “O profissional” (1994).
segunda-feira, outubro 28, 2013
Elysium, de Neill Blomkamp **1/2
Uma das coisas que mais me agradava em “Distrito 9” (2009), o ótimo filme que
projetou mundialmente o diretor sul-africano Neill Blomkamp, era o visual sujo
e a atmosfera sórdida que permeava sua narrativa. No meio de uma trama de ficção
cientifica de ritmo alucinante, o cineasta também conseguia traçar uma
contundente metáfora para a questão do racismo no mundo. Em “Elysium” (2013),
sua estreia nas produções norte-americanas, pode-se perceber que o gume do seu
cinema perdeu parte considerável do seu corte, ainda que possa se perceber
eventualmente algum traço da sua marca autoral. Num primeiro momento, fica
evidente que Blomkamp cria uma concepção visual na construção visual de um
futuro distópico que procura fugir da assepsia imagética que predomina nas
recentes produções norte-americanas do gênero. Colabora também para isso que a
violência de algumas cenas seja explícita e brutal, dando para o filme um certo
ar de produção B. O grande problema da obra, contudo, está na falta de uma genuína
tensão na narrativa, de um roteiro mais elaborado e menos esquemático, de um
elenco que fuja do padrão piloto automático (com exceção de Wagner Moura, que
por mais over que esteja em alguns momentos, pelo menos oferece uma atuação
mais viva). Do jeito que ficou, a impressão que se tem é que Blomkamp sucumbiu
a pressões parar formatar o seu cinema de acordo com padrões mais palatáveis.
sexta-feira, outubro 25, 2013
Mistérios de Lisboa, de Raúl Ruiz ****
Os limites entre a literatura e o cinema são muito tênues em
“Mistérios de Lisboa” (2010). Não dá para dizer que a primeira é simplesmente
adaptada a uma linguagem cinematográfica, pois em vários momentos do filme
sentimos que a própria sonoridade dos diálogos e as narrações possui um texto
carregado típico de um romance. Na verdade, é como se o diretor Raúl Ruiz
fizesse questão de não submeter o texto original a uma adaptação rígida. Isso
explica a longa duração do filme (mais de quatro horas). Mas é aí que reside
uma das forças criativas do filme: a sua narrativa tem um estranho encanto hipnótico,
em que mesmo os exageros românticos do roteiro parecem fazer sentido de forma
incrivelmente coerente. Ruiz estabelece um universo próprio em que os detalhes
da trama até têm lógica realista, mas a encenação obedece a uma coreografia de
falas e ações que pertencem a uma outra esfera de plano narrativo. Diante dessa
abordagem artística, o cineasta encontra o pretexto ideal para que enverede em
um barroquismo estético estonteante, repleto de nuances que exigem forte atenção
do espectador, indo de truques e efeitos visuais de contundente caráter simbólico
até uma direção de fotografia de enquadramentos de grande beleza pictórica. E
por mais que as ousadias formais de Ruiz estejam impressas em várias passagens
de “Mistérios de Lisboa”, a obra está longe de se enquadrar em mero experimento
– a dinâmica da sua edição cria uma tensão impactante, fazendo com que a longa
metragem do filme dê a impressão de até passar sem que se perceba isso.
quinta-feira, outubro 24, 2013
Las acacias, de Pablo Giorgelli **1/2
Em termos gerais, a trama de “Las acacias” (2011), que se
desenvolve em uma narrativa realista e linear, pode ser resumida da seguinte
forma: caminhoneiro solitário e de poucas palavras dá uma carona para uma
desconhecida com seu bebê em longa viagem do Paraguai para a Argentina, a
convivência entre eles acaba humanizando o motorista e faz com que ele se abra
expondo seus desejos e mágoas; e por fim ambos se descobrem apaixonados. Parece
meio previsível, não é? E é mesmo. O diretor Pablo Giorgelli dá um acabamento
mais “artístico”, abusando de uma abordagem pretensamente mais sutil,
valorizando silêncios, tomadas de plano fixo de caráter reflexivo e as
interpretações naturalistas do elenco. O formalismo da produção é correto e
competente, mas a verdade é que se trata de uma obra que está longe de empolgar
ou arrebatar – não há uma seqüência sequer que efetivamente seja capaz de se
grudar no imaginário. Se um norte-americano dirigisse de forma menos cerebral
passaria até por uma dessas comédias românticas que tem as pencas por aí. No
final das contas, funciona como uma curiosidade cinematográfica, mas de caráter
descartável.
quarta-feira, outubro 23, 2013
A coleção invisível, de Bernard Attal **1/2
A maior virtude de “A coleção invisível” (2012) é a
sobriedade da sua concepção e realização. Lidando com temas espinhosos como a
morte e a velhice, o filme do diretor Bernard Attal evita exageros
sentimentais. Há uma certa elegância na sua encenação e a fotografia e a edição
são competentes. De se destacar ainda as boas atuações do elenco, com destaque para
a surpreendente interpretação de Vladimir Britcha como protagonista.
Apesar de tais virtudes, a produção é frustrante pela frouxidão de sua
narrativa. A coerência formal e temática da obra acaba sendo uma camisa de
força criativa – por vezes, tudo soa muito artificial e esquemático demais,
como se pudéssemos enxergar todos os mecanismos estéticos do filme. Mesmo a sua
linguagem de simbologias que configura “A coleção invisível” como se fosse uma
fábula moral parece funcionar de forma acadêmica em demasia. Faltou maior
contundência e ousadia na abordagem de Attal, o que torna a produção um melancólico
canto do cisne para Walmor Chagas.
terça-feira, outubro 22, 2013
Rush - No limite da emoção, de Ron Howard ***1/2
O diretor norte-americano Ron Howard nunca se notabilizou
por ser especialmente ousado em termos estéticos, assim como sua carreira se
pautou por uma incômoda irregularidade – afinal o mesmo cara que dirigiu o
antológico “O tiro que não saiu pela culatra” (1989) concebeu o horroroso “Anjos
e demônios” (2009). Diante desse contexto, é o típico nome que não desperta
grandes expectativas. “Rush – No limite da emoção” (2013) é uma obra que volta
a dar crédito para Howard. Mesmo com as simplificações do roteiro e alguns
excessos de convencionalismo formal, é um filme que fascina na sua recriação da
mitologia da Fórmula 1 nos anos 70. A atmosfera elaborada pelo cineasta evoca
algo entre o sonhador e o hedonista, acentuando a nostalgia e uma certa
ingenuidade num período menos politicamente correto e também quando o esporte em
questão não estava tão dominado pelos interesses corporativos. Além disso,
Howard revela boa mão para a ação cinematográfica: as sequências de corrida são
alucinantes e brutais no registro detalhista de curvas, ultrapassagens e
violentos acidentes. Mesmo o fato da trama ser um tanto superficial na
caracterização psicológica das situações e seus personagens não se torna um
grande empecilho, pois o foco de Howard passa por um viés mitológico, icônico.
Assim, talvez “Rush” não seja o tratado cinematográfico definitivo sobre a Fórmula
1, mas mesmo assim acaba se tornando uma produção memorável pela carga visceral
inesperada da encenação de Howard.
segunda-feira, outubro 21, 2013
Lovelace, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman **
É impossível não pensar na obra-prima “Boogie Nights” (1997),
uma espécie de cinebiografia disfarçada do astro pornô John Holmes, quando se vê
“Lovelace” (2013), outra cinebiografia, só que autorizada, da vida de Linda
Lovelace, a estrela do clássico “Garganta profunda” (1972). Mas se o filme de Paul
Thomas Anderson era um épico sórdido sob o submundo da indústria pornográfica
setentista, tomado por uma atmosfera hedonista e formalismo virtuoso, esse
trabalho dos diretores Rob Epstein e Jeffrey Friedman assume um direcionamento
bem frustrante. Por vezes, até se evoca algo da estética exagerada e cafona dos
anos 70, mas nos geral “Lovelace” mais parece um telefilme mofado e bem-comportado.
De certa forma, dá para dizer pelo menos que tal abordagem se revela em
sintonia com o roteiro da produção, moralista até a medula.
sexta-feira, outubro 18, 2013
Dose dupla, de Baltasar Kormákur ***
A origem de “Dose dupla” (2013) é comum a várias produções
recentes vindas de Hollywood – é baseada em uma história em quadrinhos
(curiosamente, desenhada por um gaúcho, Matheus Santolouco). E isso fica
evidente no filme: é uma história policial bastante movimentada, com idas e vindas
no tempo, com cenas de ação violentas tendendo para o cartunesco, além de um
roteiro repleto de exageros que descambam para inverossimilhança. Isso não quer
dizer, entretanto, que o diretor Baltasar Kormákur apele para uma edição
videoclipeira ou mesmo de câmera tremida. O seu senso de encenação e montagem
se vincula ao tradicionalismo, mas essa preferência pelo convencional é benéfica
para a produção – há uma clareza narrativa notável nas coreografias de lutas,
tiroteios, perseguições e explosões. É claro que não se trata de nenhuma
obra-prima da violência cinematográfica na linha Sam Peckimpah. Ainda sim,
perto do que faz no gênero ação ultimamente, acaba se sobressaindo. E como bônus,
vale mencionar as atuações bastante carismáticas de Denzel Washington e Mark Wahlberg.
quinta-feira, outubro 17, 2013
Invocação do mal, de James Wan **1/2
A maioria das críticas e comentários que se faz em relação à
“Invocação do mal” (2013) defende que essa produção dirigida por James Wan
representaria um oásis no atual panorama do gênero de horror. Isso porque o
filme não se vale da estética da câmara subjetiva e também por não enveredar
pelos caminhos do horror explícito. Nessa ótica, a obra em questão
representaria uma espécie de volta à essência do terror, enfocando muito mais a
tensão e aquilo que não é visto. Na minha visão isso tudo é um grande exagero,
além de descambar para o reducionismo. O fato de um filme adotar
uma determinada abordagem não quer dizer que necessariamente ele será bom ou não.
Assim como no estilo de câmera subjetiva apareceram algumas produções
relevantes e criativas (“Rec”, “O último exorcismo”) e naquela linha de tripas
e sadismos por vezes surgiram obras de qualidade artística considerável (“Alta tensão”,
“Viagem maldita”, “O albergue”), também ocorreu de que abordagens mais clássicas
trouxessem resultados frustrantes. E nesse último caso, daria para enquadrar “Invocação
do mal”. Dá para dizer que na sua primeira metade o filme até surpreende,
principalmente por um certo virtuosismo de Wan – há planos-sequência realizados
de forma convincente, a edição e fotografia trazem elegância formal. Na metade
final, entretanto, tudo parece se converter num pastiche insosso de “O
exorcista” (1973) e seus derivados. Toda aquele pretensão de sutileza e tensão se
esvai em nome de barulhentos e inócuos sustos, lutas e possessões. Falta a “Invocação
do mal” uma efetiva atmosfera de sordidez e de mistério. Do jeito que ficou,
está mais para as dúzias de produções de horror assépticas que vêm de Hollywood
todos os anos.
quarta-feira, outubro 16, 2013
Beijos de emergência, de Philippe Garrel ****
O intimismo do cinema de Philippe Garrel ganha uma conotação
ainda mais inesperada em “Beijos de emergência” (1989). Ao focar a história de
um cineasta (interpretado pelo próprio Garrel) que se vê num dilema conjugal ao
resolver filmar um roteiro de forte conotação
autobiográfica, o diretor propõe uma narrativa que se pauta por um naturalismo
poético. Impressiona muito a fluência que beira o despudorado com que Garrel
estabelece a sua encenação. Não é à toa que os intérpretes da esposa, do pai e
do filho do protagonista sejam justamente
aqueles que desempenham tais papéis na vida real do diretor. Nesse sentido, é
como se o filme sugerisse que as fronteiras entre a arte e a vida fossem muito
tênues para Garrel. Diante dessa lógica, não é uma obra que se desenvolva através
de grandes reviravoltas – dilemas e conflitos se firmam com a fluência típica
da vida, os personagens têm comportamentos que variam entre o impulsivo e o
resignado. O estilo de filmar de Garrel é aquele característico de boa parte do
melhor de sua filmografia – as elipses que reduzem a narrativa ao essencial, o
formalismo de teor contemplativo, a trama que se configura como um pedaço
inconclusivo da vida de suas criaturas. Garrel não oferece ao espectador soluções
fáceis para aquilo que questiona ao longo da produção. E é justamente esse não
compromisso em amarrar todas as pontas que torna “Beijos de emergência” uma
obra tão inquietante e de encanto perene.
terça-feira, outubro 15, 2013
Boa sorte, meu amor, de Daniel Aragão ***1/2
O diretor pernambucano Daniel Aragão demonstra em seu longa
de estréia “Boa sorte, meu amor” (2012) ter uma espécie de sintonia existencial
e artística com seus colegas conterrâneos Cláudio Assis e Kleber Mendonça Filho.
Afinal, seu filme traz uma notável combinação de visão crítica da sociedade
ocidental contemporânea com uma estética que se desenvolve a partir de uma
abordagem em que predomina o sensorial. Nesse sentido, Aragão valoriza, às
vezes de forma precisa, outras vezes exagerada, aspectos diversos da linguagem
cinematográfica – lentos e exasperantes planos-sequência, uso insólito do som,
narrativa simbolista, atmosferas delirantes. Até a direção de elenco revela um
caráter diferenciado, em que a beleza da protagonista
Maria (Christiana Ubach) parece refletir uma inesperada inocência em meio a
sordidez moral que a rodeia, enquanto a interpretação inexpressiva Vinicius
Zinn na realidade cai como uma luva para o personagem Dirceu, um jovem
pequeno-burguês bunda-mole (e por vezes prepotente) que acaba engolido por um
destino que está muito além da sua confortável rotina de rapaz de bem. A ambição
temática de Aragão também chama a atenção – sua saga que varia entre o
intimista, o surreal e o político junta na mesma obra o urbano/moderno e o
rural/arcaico, retratando uma sociedade que se pretende cosmopolita e avançada,
mas que na realidade ainda é regida por velhos mecanismos excludentes. Se toda
essa pretensão em alguns momentos esbarra em excessos formais e textuais incômodos,
em outras passagens encanta pela sua contundência desconcertante.
segunda-feira, outubro 14, 2013
Já não ouço a guitarra, de Philippe Garrel ****
Muito se fala em cinema autoral e pessoal, mas poucos são
aqueles cineastas que conseguem gerar uma obra de marca tão indelével e
particular quanto o diretor Philippe Garrel logrou em “Já não ouço a guitarra”
(1991). Trata-se de uma produção ficcional, mas o próprio Garrel revela que o
roteiro é bastante inspirado em fatos de sua vida amorosa com a cantora e
modelo alemã Nico, que além de uma expressiva discografia solo também teve
participação antológica no fundamental primeiro disco do Velvet Underground.
Nesse sentido, é fascinante como um aspecto intimista da vida de Garrel, e que
ele aborda de forma bastante visceral, ganha uma dimensão universal no sentido
que seu drama amoroso ganha ressonância no imaginário coletivo (afinal, Nico representa
um capítulo relevante na história cultural dos últimos 50 anos). Nesse sentido,
a habitual estética de Garrel, aqui num de seus momentos de apuro mais elevado,
é o veículo mais que ideal para abarcar o seu relato emocional e amargo de um
relacionamento que se desintegra. Como entre outras obras do cineasta, sua
narrativa não é detalhista . A trama se divide em momentos cujo espaçamento de
tempo é aleatório – tanto podem se passar algumas horas entre eles quanto
semanas, meses, anos... Em cada um desses trechos, o enfoque é no estado anímico
dos personagens e não no contexto histórico deles. Essa sensação de elipses
temporais é desconcertante, mas também é muito verdadeiro em termos de construção
das situações e personagens. Nessa formatação, não interessa se falar em final
feliz ou não para os indivíduos. O que o espectador vê é apenas uma fração das suas
vidas, sendo que a conclusão em aberto de “Já não ouça a guitarra” ganha uma
conotação de brutal coerência formal e temática.
sexta-feira, outubro 11, 2013
O nascimento do amor, de Philippe Garrel ***1/2
As coisas no cinema de Philippe Garrel parecem seguir um
ritmo próprio, como se fizessem parte de um universo particular do cineasta. “O
nascimento do amor” (1993) é obra sintomática desse direcionamento artístico. A
trama se desenvolve num tempo indefinido, sendo que a estética concebida por
Garrel acentua ainda mais essa ideia de atemporalidade. Num primeiro momento, o
formalismo da produção alude aos anos áureos da Nouvelle Vague – fotografia em
preto e branco, além da edição e narrativa repletas de elipses. Na realidade,
Garrel é contemporâneo de Godard e Truffaut, sendo que começou a dar seus
primeiros passos no cinema justamente durante o célebre movimento cinematográfico
francês. Até mesmo o roteiro traz em si a noção “fora do tempo e do espaço”; os
protagonistas Paul (Lou Castel) e Marcus
(Jean-Pierre Leaud, em personagem que se mostra em sintonia com o antológico
Antoine Doinel) são homens maduros, mas apresentam comportamentos oscilantes e inconseqüentes.
Garrel faz a crônica de uma eterna juventude, da imaturidade inconstante. Suas
criaturas vagam pela vida num cruzamento entre o hedonismo e a melancolia. E no
meio dessa abordagem nostálgica e amarga e das referências mencionadas, fica
uma obra de encanto hipnótico e envolvente.
quinta-feira, outubro 10, 2013
O ataque, de Roland Emmerich **1/2
Numa dessas coincidências típicas de Hollywood, calhou que
em 2013 aparecessem duas produções grandiosas a retratar a Casa Branca sendo atacada
e parcialmente destruída. As próprias tramas, inclusive, são muito parecidas
entre si: basicamente, o presidente dos Estados Unidos tem a sua guarda
massacrada e sua única tábua de salvação é um agente desacreditado e sagaz. “Ataque
à Casa Branca”, de Antoine Fuqua, já comentado neste blog, resgata a estética
oitentista no gênero ação, caprichando na violência e na grafismo
sanguinolento. Este “O ataque”, de Roland Emmerich, apesar de bastante
barulhento e movimentado, é mais politicamente correto e asséptico na sua
brutalidade, além de sua veia patriótica ser bem mais exacerbada. É quase como
uma produção da franquia Rambo que pudesse ser visto por toda a família. Assim,
no saldo final, Fuqua acabou se saindo bem melhor que o seu colega Emmerich:
seu filme é bem mais casca grossa e sincero, além de melhor resolvido no seu
formalismo.
quarta-feira, outubro 09, 2013
Se puder... dirija!, de Paulo Fontenelle ½ (meia estrela)
Para quem conhece e admira o ator Luis Fernando Guimarães
pelo seu trabalho marcante em momentos chaves da comédia nacional como o
irreverente grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone e o ácido programa
televisivo oitentista TV Pirata, chega a ser constrangedor vê-lo participando
de uma produção tão inócua, tosca e babaca como “Se puder... dirija!” (2012). Pense
no programa cômico mais sem graça da atual programação da televisão brasileira
e imagine isso formatado num filme de uma hora e meia (e que parece que tem o
dobro do seu tempo), mas com a pretensão de trazer uma lição de moral
edificante. E o pior é que nem dá para dizer que de tão ruim chega a ser
engraçado. Não, pelo contrário: de tão mambembe, o filme é chato de uma forma
excruciante. Basicamente, o filme aparente ser a reunião de sketches humorísticos
reunidos num fio de história. Não há unidade na narrativa, a encenação é
desajeitada e o elenco está no piloto automático (com o “bônus” de contar com a
pior interpretação infantil dos últimos anos). Ah, talvez essa ostensiva falta
de inspiração e competência podia ser apenas pressuposto para o uso da
tecnologia 3D, mas a trucagem passa praticamente desapercebida. Ou seja, “Se
puder... dirija!” é candidato a maior embuste do ano nos cinemas.
terça-feira, outubro 08, 2013
A filha do meu melhor amigo, de Julian Farino **
Há em “A filha do meu melhor amigo” (2012) uma pretensão de
ser “alternativo”. Tem aquele jeitão “indie”, roteiro que se pretende
questionador do comportamento da típica família pequeno-burguesa norte
americana, evoca algo daquelas comédias acre-doce dos anos 70. Não se engane.
No final das contas, o filme é apenas “mais do mesmo”, sendo tão (ou mais)
superficial que a média das produções escapistas e comerciais que provém de
Hollywood. Está muito mais para uma morna produção oriunda da televisão – não há
a mínima ousadia formal na obra em questão, sendo que mesmo a trama que ostenta
uma aura contestadora envereda por um conservadorismo incômodo na sua resolução.
É um passatempo agradável por vezes, com um elenco até carismático (ainda que
caricatural em sequências importantes). Nada, entretanto, que seja
especialmente memorável. Aqueles que desejam ver algo mais contundente em
termos de ironia às mazelas da família moderna podem ler ou assistir a alguma
peça de Nelson Rodrigues – seria uma experiência bem mais substanciosa e
impactante do que esse mediano “A filha do meu melhor amigo”.
segunda-feira, outubro 07, 2013
A espuma dos dias, de Michel Gondry ***
“Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004), a grande
obra-prima do diretor francês Michel Gondry, marcava uma união que se mostrava
em sintonia brilhante: o roteiro surreal e muito bem amarrado de Charlie
Kaufman (talvez o melhor roteirista norte-americano surgido nos últimos 20
anos) e as criativas concepções visuais de Gondry. Em “A espuma dos dias”
(2013), obra mais recente de Gondry, a falta de um roteiro mais focado parece
ser o fator preponderante para que o filme em questão se mostre como uma
narrativa tão irregular. O diretor ainda se mostra afiado em criar cenas de uma
atmosfera imagética delirante – a Paris de Gondry parece pertencer a uma dimensão
paralela, em que o retrô, o futurista e o onírico se colidem de forma
constante. Dá para dizer que a primeira metade da produção se desenrola como um
sonho desajeitado e simpático, com efeitos especiais e detalhes temáticos que
lembram alguns trabalhos de Jean-Pierre Jeunet (impressão reforçada também pela
presença no elenco de Audrey Tautou, musa de Jeunet). Já a segunda parte do
filme envereda por uma atmosfera sufocante de pesadelo – nesse sentido, a
sensação de bad trip se estabelece justamente quando o filme busca o seu vínculo
maior com a realidade. O problema de “A espuma dos dias” é que essa
multiplicidade sensorial é obrigada a se formatar numa trama de matiz
convencional. O roteiro por vezes se contenta com um certo banalismo, deixando
de explorar vários pontos interessantes que a sua temática tangencia (totalitarismo,
convenções sociais distorcidas). As limitações de uma “love story” levam Gondry
a excessos estéticos que acabam tirando muito do impacto do filme. Mesmo assim,
é uma obra instigante no seu barroquismo exacerbado, mostrando que Gondry ainda
é um nome a se prestar atenção.
sexta-feira, outubro 04, 2013
Casa da mãe Joana 2, de Hugo Carvana *1/2
Não tem como escapar do típico clichê da crítica cinematográfica:
de tão capenga, “Casa da mãe Joana 2” (2013) até consegue ser engraçado. O
diretor Hugo Carvana já é veterano no cinema brasileiro, então não dá para
dizer que desaprendeu a fazer filmes. O que acontece que é o seu estilo soa
datado e pouco fluente, fazendo com que a produção tenha a aparência de algum
sketch do “Zorra total” alongado, ainda que
filtrado por um nostálgico bom humor carioca. É provável que Carvana e equipe
tenham se divertindo na realização, pois a impressão é que não há rigor na
direção. Tudo é muito solto, como um trem desgovernado, dependendo muito mais
de alguma boa intervenção dos atores. O trio de protagonistas
composto por José Wilker, Paulo Betti e Antônio Pedro está longe de ser
inexpressivo, mas a ausência de um direcionamento mais específico resulta em
atuações caricaturais em excesso. No final das contas, a narrativa frouxa e
desajeitada dá um aspecto mambembe para tudo, o que não deixa de angariar
alguma simpatia para o espectador no meio de todas essas comédias assépticas
globais que grassam nos nossos cinemas. Impede, porém, de que “Casa da mãe
Joana 2” seja uma obra memorável.
quinta-feira, outubro 03, 2013
Jobs, de Joshua Michael Stern *
Sem querer forçar a barra, mas dá para dizer que os nerds mais
sem critérios têm mais uma trilogia a acrescentar entre os seus objetos de
culto: a de filmes inspirados em grandes marcas da Internet. “A rede social”
(2010) mostrou os bastidores das origens e ascensão do Facebook, enquanto “Os
estagiários” (2013) tem uma trama fictícia cujo pano de fundo é uma espécie de
propaganda dos ideais do Google. Já esse “Jobs” (2013) pelo título já é
auto-explicativo: trata-se de uma cinebiografia do criador da Apple, Steve
Jobs. É interessante observar que cada uma de tais produções possui uma
abordagem diferente. “A rede social” se formata como uma ácida e brilhante crônica
de costumes da sociedade ocidental desse século. Já “Os estagiários”, apesar do
seu caráter marqueteiro, é uma competente e previsível “comédia universitária”.
“Jobs” envereda no gênero da cinebiografia clássica. Seus equívocos,
entretanto, não têm necessariamente relação com o seu convencionalismo. O que
irrita no filme é um tenebroso descompasso entre o que o roteiro se propõe (uma
análise crítica sobre a trajetória profissional de seu protagonista)
e a estrutura narrativa proposta pelo diretor Joshua Michael Stern, que parece
escolher um tom entre o laudatório e o edificante. Assim, prevalece uma
inconveniente e constante trilha sonora melosa (temos a permanente sensação de
se estar assistindo a uma grandiosa obra de caráter cívico), roteiro esquemático
e previsível, fotografia e edição sem a mínima criatividade, interpretações que
oscilam entre o medíocre e o constrangedor (francamente, semelhança física com
pessoais reais não deveria ser a condição principal na escolha do elenco).
Todos essas questionáveis escolhas artísticas levam a uma obra de sentido mais
que confuso – seria algo como “olha, o Jobs era um sociopata, mas no fundo era
um cara legal, afinal ganhou tanta grana....”.
quarta-feira, outubro 02, 2013
O casamento do ano, de Justin Zackham *1/2
Por mais que o diretor Justin Zackham diga ter usado no
roteiro memórias pessoais e tenha um pretenso verniz de ousadia temática
(afinal se fala em adultério, homossexualismo, hipocrisia religiosa), a verdade
é que “O casamento do ano” (2013) é uma obra destituída de ousadia e
personalidade. Tudo no filme cheira a naftalina – da trama superficial de teor
edificante à abordagem formal de Zackham, que abusa de uma estética cartão-postal.
Com alguma boa vontade, dá para salvar as atuações carismáticas de Robert De
Niro, Diane Keaton e Susan Sarandon, ainda que em relação a isso se tenha uma
certa sensação de melancolia em pensar que eles já participaram de produções
mais criativas e contundentes.
terça-feira, outubro 01, 2013
Os estagiários, de Shawn Levy **1/2
Na formatação da sua narrativa, dá para dizer que “Os estagiários”
(2013) se enquadra naquele gênero de “comédias universitárias”: os principais
personagens devem se superar para atingir seus objetivos, em algumas passagens
sofrerão bullying, em outras darão umas paqueradas e farão umas festas, até
chegar a um clímax em que seus talentos serão reconhecidos e eles ganharão os
respeitos de seus colegas e a admiração definitiva de seus respectivos interesses
amorosos. O que tem de diferente no filme em questão é que a trama se passa no
ambiente de trabalho da Google, com os protagonistas
Billy (Vince Vaughan) e Nick (Owen Wilson) tendo por metas se tornarem
empregados fixos da empresa em questão. Assim, o filme é até razoavelmente
competente dentro de tal gênero – é efetivamente engraçado em algumas cenas,
Vaughan e Wilson têm interpretações carismáticas e a narrativa é agradável. Mas
nada muito além disso: por mais que o roteiro louve a capacidade criadora de
quem trabalha na Google, tudo na produção é rigorosamente previsível. Mas o que
mais incomoda em “Os estagiários” é que no final das contas o filme soa quase
como uma espécie de peça publicitária a exaltar o Google, distante, assim, por
exemplo, da visão lúcida e crítica que o brilhante “A rede social” (2010) expressou
ao radiografar a ascensão do Facebook.
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