quinta-feira, março 31, 2016

Cadillac Records, de Darnell Martin **1/2

A história da Chess Records é bastante emblemática da importância e influência da música negra-norte americana no século XX. Entre as décadas de 40 e 60, a gravadora ajudou a lançar nomes fundamentais do blues elétrico e do rock and roll (Muddy Waters, Little Walter, Etta James, Howlin’ Wolf, Chuck Berry), ajudando a tirar tais gêneros do rótulo preconceituoso de “race music” e universalizando seu público. Ao mesmo tempo, entretanto, reproduziu modelos de exploração econômica típicos da época – o dono da gravadora, o judeu branco Leonard Chess (Adrien Brody), ficou com boa parte dos lucros originários da arte de seus principais músicos negros. A complexidade dessa história e o poder cru e selvagem das canções e interpretações de tais artistas não encontram um tratamento de igual profundidade e interesse em “Cadillac Records” (2008). A abordagem do diretor Darnell Martin é superficial e convencional em demasia, com os principais eventos dramáticos da trama tendo uma encenação pouco inspirada e digna de uma novela televisiva. Faltou maiores ousadia e traquejo para conseguir traduzir a música sexy e violentamente rítmica dos músicos da Chess num conjunto imagético igualmente estimulante. Para aqueles que gostam de Waters e companhia e mesmo para outros que desconhecem esse rico acervo de sedutores ritmos e melodias e poderosas interpretações até vale assistir a “Cadillac Records” como um passatempo razoavelmente instrutivo e com alguns momentos prazerosos (mais “por culpa” da matéria bruta musical, diga-se de passagem...). No mais, o filme de Martin dá uma constante impressão de frustração.

quarta-feira, março 30, 2016

Dois disparos, de Martin Rejtman ***1/2

Logo no começo de “Dois disparos” (2014), o jovem Mariano (Rafael Federman) encontra um revólver por acaso ao remexer ferramentas na garagem de sua e como se fosse por mera curiosidade atira duas vezes em si. Sem maiores explicações, sobrevive. A partir dessa premissa, o esperado seria um denso drama a investigar as misérias existenciais do garoto e daqueles que o cercam que o levaram a praticar o ato tresloucado. Só que no universo do diretor argentino Martin Rejtman o direcionamento narrativo e temático parece obedecer a uma lógica bizarra e particular. O evento da tentativa de suicídio de Mariano desencadeia uma sucessão de fatos aleatórios, quase desconexos, em que o foco da trama a todo momento se desvia para caminhos estranhos e por vezes encharcados de um humor esquizoide. As regras tradicionais de um roteiro “arredondado” a todo momentos são subvertidas em nome de soluções criativas desconcertantes. Além disso, Rejtman cria uma constante atmosfera de distanciamento emocional perturbador, em que os personagens demonstram em diálogos, expressões e gestos uma apatia irônica em suas interações sociais. Nessa conjunção de insólitos maneirismos estéticos e narrativos resulta uma obra marcada por um extraordinário teor surrealista e também uma corrosiva e sutil crítica aos costumes pequeno burgueses, algo entre o ascetismo formal de Bresson e o onirismo sarcástico de Buñuel.

terça-feira, março 29, 2016

Batman vs Superman - A origem da justiça, de Zack Snyder *1/2

Assim como em outras adaptações para as telas de obras dos quadrinhos dirigidas por Zack Snyder, a impressão que se tem ao se assistir à “Batman vs Superman – A origem da justiça” (2016) é a de alguém que nunca leu uma HQ na vida, folheou apressadamente algumas histórias clássicas e emblemáticas do gênero e socou de qualquer jeito citações e referências do material que leu dentro de um roteiro. Por vezes, até dá para perceber algumas boas ideias absorvidas nessa pesquisa, mas quase todas elas não são muito mal aproveitadas e executadas. Não se trata apenas de uma questão de ter uma fidelidade ipsis literis na transposição daquilo que está nos quadrinhos para uma produção cinematográfica, mas simplesmente entender aquilo que torna único e carismático toda uma série de personagens e mesmo o contexto que os envolvem, ou seja, aquilo que os torna atraente de maneira perene por todas essas décadas de existência. Por mais que Snyder queira dar uma aura adulta e profunda dentro de sua abordagem pretensamente sombria e solene, a caracterização de personagens e situações é rasteira e de pouca densidade psicológica, caindo por vezes no francamente ridículo (nesse sentido, tudo em “Batman vs Superman” é tão grotesco que em alguns momentos a obra consegue até ser divertida...). Dessa forma, Batman (Ben Affleck) fica reduzido a um brutamontes impulsivo e francamente homicida, Superman (Cavill) é destituído de carisma e Lex Luthor (Jesse Eisenberg) é apenas um garoto debilóide e mimado. Já o roteiro é um cozido mal ajambrado de chupações sem critérios de sagas marcantes das HQs como “O cavaleiro das trevas” e “A morte de Superman”. Para compensar essa falta de consistência existencial, Snyder usa e abusa de explosões e porradarias diversas, mas tudo dirigido de forma tão genérica e despersonalizada que faz com que praticamente nenhuma cena traga algo de memorável para o imaginário do espectador. Do jeito que ficou, “Batman vs Superman” parece ser apenas um mero pretexto mercadológico para que no futuro saia um filme da Liga da Justiça (afinal, como explicar as participações estapafúrdias de Flash e Ciborgue na trama?). Quem sabe até lá Snyder tenha uma epifania e aprenda a dirigir um filme. Ou mesmo o estúdio tenha alguma iluminação e bote um cineasta com algum talento para se responsabilizar pela produção.

segunda-feira, março 28, 2016

O regresso, de Alejandro González Iñarritu ***

A sequência de abertura de “O regresso” (2015) é promissora – com edição de poucos cortes e encenação vigorosa, o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu concebe tomadas de ação alucinada ao retratar uma batalha entre caçadores de pele e índios no interior selvagem dos Estados Unidos na primeira metade do século XIX. Se Iñarritu mantivesse seu filme nessa levada, haveria a forte possibilidade de se ter uma obra antológica no gênero aventura. Mas para as pretensões artísticas do cineasta em questão, talvez isso fosse muito pouco... O fato é que a narrativa do filme envereda em vários momentos por uma atmosfera reflexiva, por vezes até caindo no metafísico. E assim, dá-lhe tomadas com personagens olhando para o horizonte, narração em off de texto pretensamente poético, estética new age em algumas tomadas. Essa conjugação entre aventura de época e drama existencial não chega a ser exatamente uma novidade, vide, por exemplo, o extraordinário “O novo mundo” (2005). Ocorre, entretanto, que Iñarritu se mostra bem longe de atingir o equilíbrio formal e temático que Terrence Mallick obteve em sua mencionada obra. “O regresso” parece muito mais refletir uma espécie de indecisão criativa de seu criador entre o faroeste naturalista casca grossa e o épico existencialista, fazendo com que o casamento entre esses dois polos narrativo não atinja um ponto de fluidez satisfatório. Mesmo o fato da longa duração da produção não implica necessariamente em uma caracterização psicológica mais aguda de personagens e situações. Nesse sentido, os momentos em que se manifestam os delírios e devaneios oníricos do protagonista Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) são apenas enfadonhos e marcados por um simbolismo raso. A verdade é que “O regresso” mostra a que veio quando Iñarritu deixa o cerebralismo fajuto de lado e envereda em boas cenas de tiroteios, perseguições a cavalo e brutais duelos com facas e machadinhas, chegando até a fazer lembrar trabalhos marcantes no gênero como “O último dos moicanos” (1992) ou “Apocalypto” (2006).

quinta-feira, março 24, 2016

American Hardcore, de Paul Rachman ***

A estrutura narrativa de “American Hardcore” (2006) é básica como os poucos acordes que marcaram algumas das melhores canções do gênero musical ao qual radiografa. Para contar a história da cena dessa vertente do punk rock no período de 1980 a 1986, o diretor Paul Rachman se utilizou da velha combinação de depoimentos dos principais envolvidos no movimento com várias imagens de arquivos. Ok, não há grandes ousadias e inovações em tal estética, mas o fascinante contexto histórico e cultural que é focado e a paixão de Rachman e seus entrevistados em tratar do hardcore, assim como a maravilhosa música que há todo momento invade a tela, tornam esse documentário essencial e tremendamente divertido para quem tem interesse por contracultura e rock underground em geral. O hardcore norte-americano da primeira metade dos anos 80 foi ingrediente fundamental no rol de influências que ajudaram a fundamentar boa parte daquilo que os Estados Unidos tiveram de melhor em seu cenário musical nos anos seguintes até os dias de hoje, não só no aspecto musical como também na própria formatação de um cenário de pequenas e eficientes gravadoras independentes e um circuito de clubes e casas de shows fora da megalomania comercial de grandes arenas e estádios. Essa combinação entre selos e locais para tocar foi primordial para a divulgação de um produto cultural marcado pela radicalidade e desafio às instituições e costumes reacionários. E tudo isso numa época que marcava o renascimento com força total do conservadorismo político, econômico, social e cultural da Era Reagan. “American Hardcore” consegue captar essa atmosfera de conflito de maneira didática e empolgante, compondo um mosaico complexo e instigante de uma época. Talvez haja gente que não se interesse tanto pelo assunto em questão e ache o documentário de Rachman dispensável, mas provavelmente é aquele tipinho que acha o Maroon 5 o máximo em termos de rock ou o hipócrita travestido de revoltado que deseja a queda sem fundamentos legais e morais de um governo legítimo e voltado para questões sociais.

quarta-feira, março 23, 2016

Zootopia, de Byron Howard, Rich Moore e Jared Bush ***1/2

Pelo menos em termos temáticas, as animações dos Estúdios Disney têm se mostrado diversificadas, conforme pôde ser visto em tramas versando sobre mitologia vodu (“A princesa e o sapo”), recriação de fábulas clássicas (“Enrolados”), homenagem/ironia com o universo dos video games (“Detona Ralph”), reconfigurações de princesas e príncipes (“Frozen”) e absorção de elementos de mangás e animes (“Operação Big Boy”). E com o importante detalhe de sempre preservar uma expressiva qualidade narrativa e estética que os coloca junto a filmes da Pixar num patamar diferenciado no gênero. Em “Zootopia” (2016), tanto esse padrão de qualidade quanto a escolha de uma temática insólita permanecem de maneira expressiva. Essa nova produção apresenta uma contundente síntese de personagens antropomorfizados, roteiro evocando elementos de cinema noir e sutil crítica social e comportamental, e de todas as produções recentes citadas da Disney talvez seja aquela que tenha uma abordagem mais universal na capacidade de agradar conjuntamente crianças e adultos (e sem precisar apelar para psicologismos de araque e autoexplicativos de “Divertida mente”). Além disso, o grafismo de “Zootopia” é espetacular na combinação entre uma estilização de conceituação visual “fofinha” e toques de animação realista, conseguindo configurar uma ambientação bastante particular no seu detalhismo cênico. Toda essa abordagem formal se mostra em fina sintonia com uma trama com ares de sofisticação na caracterização dramática de seus principais personagens e nos desdobres da história, especialmente em nuances de dilemas e conflitos que evocam questões espinhosas como preconceito e determinismo social. Há também as doses certas de sequências ação bem dirigidas e as citações culturais bem humoradas que dão aquele caráter de narrativa envolvente para a produção.

terça-feira, março 22, 2016

Jimmy's Hall, de Ken Loach ***

Há filmes que na mão de um diretor qualquer seriam obras medíocres e esquecíveis, mas que sob a batuta de um cineasta diferenciado acabam ganhando uma dimensão artística bem maior. Esse é bem o caso de “Jimmy’s Hall” (2014), produção que foca a história de um homem que volta para a sua cidadezinha no interior da Irlanda, abre um salão de diversão e conscientização política e desperta a ira das conservadoras autoridades do local, principalmente de setores da igreja católica. A estrutura narrativa é convencional e os desdobramentos do roteiro obedecem a uma ordem tradicional dentro de um gênero misto de melodrama e crítica sócio-política. Só que quem está por trás das câmeras é Ken Loach, para quem esse tipo de trama é quase inerente ao seu estilo. Ainda que “Jimmy’s Hall” não represente um dos pontos altos da carreira de Loach, estão lá aquelas habituais características formais e temáticas tão caras ao veterano diretor britânico e que ainda se mostram capazes de cativar o público – a envolvente fluência narrativa, a caracterização carismática dos personagens, o roteiro enxuto e de visão ácida sobre as autoridades opressoras, a encenação vigorosa que transcende qualquer tipo de clichê. Dentro dessa abordagem, mesmo sequências previsíveis em suas nuances ganham arrepiante força dramática. E em tempos conturbados como o que vivemos tanto no Brasil como no resto do mundo, onde velhas e tenebrosas ideias reacionárias ganham ares de novidades e vários adeptos, “Jimmy’s Hall” acaba se mostrando ainda pertinente e desafiador na sua contundente crítica ao poder repressor de determinadas alas da sociedade.

segunda-feira, março 21, 2016

Cemitério do esplendor, de Apichatpong Weerasethakul ***1/2

A filmografia do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul revela uma insólita coerência em suas concepções artísticas. Seus filmes se vinculam ao gênero fantástico, mas são quase que completamente destituídos dos clichês narrativos habituais a tais produções. De forma rara o cineasta se vale de algum efeito especial, fazendo com que as suas histórias versando sobre lendas e fantasmas se desenvolvam dentro de um formato naturalista, com direito inclusive a uma encenação que evoca o documental na sua crueza de caracterização de personagens e situações. O elemento fantástico se insere de forma fluente, como se fosse intrínseco àquele universo. Nesse conjunto de aparentes contrastes, resulta obras de rara beleza visual, narrativa poética e atmosferas hipnóticas no seu minimalismo. “Cemitério do esplendor” (2015) é um exemplar expressivo desse peculiar estilo de Weerasethakul. É provável que seja o menos hermético de seus trabalhos – ainda assim, não há concessões na sua abordagem que dispensa truques óbvios e baratos para contar a trama de soldados narcolépticos que são possuídos por antigos espíritos de guerreiros. Não há a necessidade de ambientações épicas ou reviravoltas dramáticas de roteiro. Mesmo quando o aspecto emocional se manifesta com mais força, é sempre dentro de limites sutis que impedem que se caia no sentimentalismo excessivo. A narrativa flui dentro de um misto de serenidade e estranheza, prevalecendo planos-sequência que desconcertam nas mínimas variações de nuances imagéticas. Numa impressão geral, é como se espectador entrasse dentro de um registro cotidiano de uma fábula ou de um sonho. Nessa síntese entre a casualidade e o fantástico reside a grande força criativa de “Cemitério do esplendor”.

sexta-feira, março 18, 2016

Operação invasão 2, de Gareth Edwards ****

Para aqueles que tem aversão por sequências, continuações e afins, um aviso logo de cara: assistir ou não ao primeiro “Operação Invasão” (2011) é praticamente irrelevante para se entender a trama dessa segunda parte (o único senão é que quem não assistiu ao primeiro filme está perdendo um belo exemplar do gênero ação/policial), pois em qualquer uma das duas produções o roteiro não é exatamente o maior atrativo. Não que se tenha uma história ruim – em “Operação invasão 2” (2014) a história até que é bem convincente em seus desdobramentos e serve como um bom complemento para aquilo que realmente interessa na obra em questão, ou seja, a narrativa alucinada e sequências de ação dirigidas com um extremo esmero gráfico. O diretor britânico Gareth Edwards se supera em relação ao primeiro filme no sentido de diversidade e virtuosismo estéticos. As cenas de porradaria, perseguições e tiroteios apresentam coreografia e encenação que beiram o surreal tanto no seu detalhismo cênico quanto na precisão dos movimentos. A direção de fotografia capta esse frenesi visual sem apelar para os maneirismos contemporâneos do gênero (câmera tremendo ou fora de foco, iluminação difusa), fazendo com que posse perceber cada nuance no desenvolvimento da ação. Contribui também para o resultado imagético explosivo de “Operação invasão 2” o fato de ser uma produção fora do âmbito dos grandes estúdios norte-americanos, fazendo que a violência explícita seja muito mais acentuada e chocante. Se entre a primeira e a segunda parte houve toda essa evolução artística, é de se até imaginar como seria algumas eventuais continuações...

quinta-feira, março 17, 2016

Tenebre, de Dario Argento ***

É evidente que “Tenebre” (1982) é uma obra menor dentro da filmografia do cineasta italiano Dario Argento. Depois de um período em que enveredou na vertente do horror sobrenatural (e que rendeu trabalhos excepcionais como “Suspiria” e “Mansão do inferno”), o cineasta voltou para os preceitos narrativos típicos do gênero giallo que havia ajudado a consagrar em obras-primas como “O pássaro das plumas de cristal” (1970) e “Prelúdio para matar” (1975). Ainda que não alcance a mesma dimensão artística das obras mencionadas, “Tenebre” tem um resultado final expressivo e memorável, principalmente devido aos momentos em que os habituais barroquismos visuais de Argento se afloram com mais intensidade, tanto no grafismo violento e delirante quanto numa certa atmosfera de sordidez, o que acaba compensando uma narrativa trôpega e irregular.

quarta-feira, março 16, 2016

É o amor, de Paul Vecchiali ***

A equação artística de “É o amor” (2015) obedece a uma lógica muito particular do diretor francês Paul Vecchiali. Alguns elementos básicos da narrativa até obedecem a uma concepção realista, mas aos poucos eles se desvanecem em nome de uma encenação entre o delirante e o estilizado ao extremo. Literatura e teatro se incorporam dentro desse insólito método com uma estranha naturalidade, fazendo com que por vezes uma mesma ação seja reinterpretada para enfatizar um subjetivismo poético e exasperado. Dentro de tais concepções, a obra de Vecchiali evoca referências cinematográficas passadistas, que nos últimos tempos até pareciam um tanto distantes, como coreografias desajeitadas que lembram velhos musicais, uma aura sombria e melancólica que se associam a filmes de horror psicológico de algumas décadas atrás, trejeitos formais típicos da Nouvelle Vague. Esse caldo de influências acentua uma ambígua visão estética e temática, em que uma atmosfera de exagerado romantismo convive com uma ótica bastante amarga sobre as relações amorosas. Para embarcar nessa viagem sensorial de “É o amor”, o espectador tem de se desgarrar um pouco de clichês e fórmulas usuais, mas por vezes essa experiência pode ser gratificante diante da sensibilidade e criatividade à flor-da-pele de Vecchiali.

terça-feira, março 15, 2016

Labirinto de mentiras, de Giulio Ricciarelli *

Recentemente, o cineasta britânico Peter Greenaway deu uma declaração bem contundente sobre o atual estado criativo do cinema: “o cinema está exausto de si”. Por mais que tal afirmação possa ser polêmica ou discutível, ao se assistir a uma obra como “Labirinto de mentiras” (2014) dá para entender o desencanto de Greenaway, pois o filme em questão do diretor Giulio Ricciarelli é de uma irrelevância artística espantosa. Clichês narrativos são jogados em cena de forma nada imaginativa – não há uma única sequência que sugira alguma transcendência estética ou mesmo temática. A encenação é engessada e artificial em excesso, faltando profundidade e alguma verdade na caracterização de situações e personagens. O fato da temática se relacionar ao Holocausto é usado como uma espécie de carta branca para Ricciarelli a lhe dar uma pretensa legitimidade para não ousar um milímetro sequer no seu formalismo dolorosamente óbvio. Na cabeça do diretor, é provável que passe a ideia de que em produções sobre a 2ª Guerra Mundial não é possível injetar vigor e criatividade, devendo prevalecer uma equivocada e hipócrita abordagem solene e maniqueísta sobre os fatos históricos. A precisa ação alucinada de “O resgate do soldado Ryan” (1998), a ironia perversa de “Bastardos inglórios” (2009) e mesmo o elegante humanismo de “Diplomacia” (2014) são desmentidos enfáticos das concepções conformistas e medíocres de “Labirinto de mentiras”.

segunda-feira, março 14, 2016

O abraço da serpente, de Ciro Guerra ***1/2

O protagonista efetivo de “O abraço da serpente” (2015) é o índio Karakamate, com a trama do filme mostrando tal personagem em dois momentos distintos de sua vida. Assim, a real perspectiva do que se vê em tela é de tal indivíduo. Ocorre que essa ótica particular também acaba se refletindo na própria narrativa da obra, em um sentido que a lógica indígena altera alguns dos elementos tradicionais da linguagem cinematográfica, principalmente no que diz respeito ao gênero aventura. A evolução do roteiro até obedece a alguns limites conhecidos, em que o desenrolar dos fatos implica numa evolução que esclarece as motivações obscuras dos personagens e situações da história. O que diferencia, entretanto, é que a dinâmica narrativa se torna mais reflexiva, ligada a simbologia e metáforas fascinantes em seus significados e profundidade. O formalismo concebido pelo diretor colombiano Ciro Guerra está em forte sintonia com essa visão existencial, fazendo com que os elementos estéticos se combinem com notável coerência – a fotografia em preto e branco remete a uma atmosfera de mistério, a edição precisa e serena evoca um ambiente de conto atemporal, a trilha sonora é econômica e marcante ao sublinhar as cenas com temas que entrelaçam regionalismo e leves dissonâncias. Mesmo o ponto nevrálgico da temática da trama, o conflito entre valores ocidentais contra o ideário indígena e a força da natureza, encontra algo de inusitado, pois ao invés daquele retrato de uma floresta amazônica como um inferno verde para o homem branco, o que se tem é um meio em desequilíbrio pela inserção dos valores cristãos-capitalistas dentro de um ambiente marcado pela relação simbiótica entre humanidade e natureza. São nessas pontuais e sutis transgressões artísticas que “O abraço da serpente” se mostra como um trabalho instigante e memorável.

sexta-feira, março 11, 2016

A bruxa, de Robert Eggers ****

Se a “Corrente do mal” (2014) fez uma espécie de recriação radical dos clichês do horror moderno, “A bruxa” (2015) vai ainda mais fundo em suas intenções artísticas – a obra dirigida pelo norte-americano Robert Eggers é alienígena em relação a quase todos os preceitos contemporâneos do gênero em questão. Pega-se conceitos básicos como a existência de entidades e criaturas maléficas e sobrenaturais, uma floresta sombria, vítimas isoladas em um lugar ermo, algumas sequências sangrentas. Tais elementos, entretanto, são apenas o ponto de partida para a construção de um conto gótico mais propenso a desfiar uma simbologia complexa e fascinante do que a instigar sustos fáceis no público. A própria parte estética já diz muito dessa abordagem da produção, em nuances diferenciadas como a fotografia de tons esmaecidos, a direção de arte na sua síntese de rigor e ascetismo visuais, a edição de poucos e elegantes cortes. A encenação criada por Eggers é extraordinária em termos de atmosfera e caracterização de situações e personagens, combinando solenidade irônica e sutilezas psicológicas. Com o desenvolvimento da trama, o padrão tradicional de “luta do bem contra o mal” vai se esvanecendo em nome de um retrato atávico da relação conflituosa do homem com a natureza e também de uma sarcástica visão crítica sobre o patriarcalismo e a repressão religiosa. Nesse contexto, o verdadeiro horror não está nas ações da bruxa do título ou na conspiração silenciosa dos animais, mas sim no enlouquecido fundamentalismo cristão familiar que oprime a jovem Thomasin (Anya Taylor Joy). Dentro dessa lógica, a história avança de forma inexorável e com uma desconcertante coerência existencial. Nesse sentido, por exemplo, é antológica a sequência em que o garoto Caleb (Harvey Scrimshaw), um pobre coitado cheio de desejos incestuosos para com Thomasin, se embrenha na floresta e acaba aos pés de uma belíssima feiticeira nua que o beija. E em sua conclusão, no diálogo entre Thomasin e o melífluo Black Phillip (o bode mais carismático da história recente do cinema) e na sua literal e dionisíaca ascensão, “A bruxa” se configura em definitivo como uma das obras mais libertárias a surgir nas telas nos últimos anos.

quinta-feira, março 10, 2016

Tangerine, de Sean Baker ***

Alguns aspectos insólitos da concepção de “Tangerine” (2015) têm feito com que essa produção norte-americana dirigida por Sean Baker seja mais encarada como uma curiosidade do que uma obra efetivamente instigante. Comenta-se bastante o fato de ser protagonizado por dois travestis, fala-se também da questão de ter sido filmada com aparelhos iPhones. Ocorre, entretanto, que o filme acaba transcendendo o status de mera excentricidade por méritos artísticos bem contundentes. As escolhas formais e temáticas acima mencionadas não se revelam gratuitas e se integram com naturalidade dentro de uma proposta muito bem definida por parte de Baker. As tomadas gravadas por celulares podem por vezes dar um caráter rústico para a produção, mas aos poucos o olhar do espectador vai se acostumando com essa plasticidade crua e que dá à narrativa uma atmosfera que alterna com sensibilidade entre o sórdido e o encantamento. A forma com que tal direção de fotografia “suja” e compacta se casa com uma trilha sonora de temas dançantes e eletrônicos frenéticos oferece uma ambientação perturbadora e cativante, dando uma cara genuína e crível para a encenação vigorosa tramada por Baker. Nesse sentido, o desempenho dos travestis Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor nos papéis principais são marcantes nas variações entre o histrionismo e a sutileza dramática e complementam com notável coerência a própria formatação estética e existencial de “Tangerine”, algo como uma tradicional comédia de erros recriada sob uma ótica pós-moderna a refletir um fascinante mundo em desiquilíbrio.

quarta-feira, março 09, 2016

A floresta de Jonathas, de Sergio Andrade **1/2

Retratar a floresta amazônica como um personagem próprio e também como uma espécie de impenetrável inferno verde não é das tarefas mais fáceis. Boa parte dos cineastas que tentou essa abordagem acabou se dando mal. Hector Babenco conseguiu um resultado memorável dentro desse intento artístico no extraordinário “Brincando nos campos do senhor” (1991). “A floresta de Jonathas” (2012) até mostra algumas concepções interessantes, assim como algumas sequências expressivas em termos imagético e de atmosfera. O diretor Sergio Andrade procurou criar uma narrativa rarefeita, com encenação e edição remetendo a um tom mais reflexivo, além de roteiro trazer uma forte carga de simbologias em seus desdobramentos. A direção fotografia conseguiu em algumas cenas captar com sensibilidade a beleza entre o assustador e o deslumbrante dos cenários verdejantes do interior da Amazônia. Se nesses detalhes estéticos a produção de Andrade consegue mostrar lampejos de criatividade, por outro lado falta para o cineasta uma condução narrativa mais rigorosa e capaz de envolver o espectador com mais constância, coisa que, por exemplo, o referido trabalho dirigido por Babenco tinha de sobra.

terça-feira, março 08, 2016

A paixão de JL, de Carlos Nader ***1/2

O diretor Carlos Nader reforça em “A paixão de JL” (2014) uma concepção muito particular em relação à pratica do cinema documental que já havia ficado bastante latente em “Homem comum” (2014). Roteiro e narrativa parecem obedecer a uma lógica espontânea e aparentemente aleatória, mas que aos poucos vai revelando uma estranha e fascinante coerência artística e existencial. Os elementos dramáticos e formais se entrelaçam a partir de um método marcado por um olhar impressionista – no caso de “A paixão de JL”, essa preponderância pelo subjetivismo fica evidente a partir da própria estrutura narrativa da obra, em que toda a encenação se fundamenta em torno das gravações em fitas cassetes dos depoimentos verbais do artista plástico José Leonilson, que morreu em 1993 devido a complicações decorrentes do fato de ser portador do HIV. A dinâmica audiovisual construída por Nader para adequar esse diário oral dentro de uma linguagem cinematográfica é baseada em escolhas estéticas simples e bastante eficientes. O cineasta recorre a trechos de filmes mencionados por Leonilson em seus depoimentos, passagens documentais de eventos históricos que contextualizam a época das gravações originais e imagens de algumas das principais obras do biografado. Além disso, a produção se utiliza de criativas construções imagéticas que emulam os sonhos e delírios descritos por seu protagonista. O resultado final é um memorável épico intimista, uma espécie de jornada dentro da mente de um indivíduo repleta de criatividade e desejos, mas que sucumbe perante a progressiva decadência física acarretada pela AIDS. A contundente síntese entre formalismo imaginativo, abordagem emocional à flor-da-pele e sutil observação sócio-política coloca “A paixão de JL” como uma espécie de gêmeo artístico do extraordinário “Elena” (2012), mostrando uma vertente no cinema brasileiro que cada vez mais se afasta das fórmulas previsíveis e despersonalizadas destinadas a agradar as grandes plateias, em nome de caminhos mais contundentes e memoráveis.

segunda-feira, março 07, 2016

Ela volta na quinta, de André Novais de Oliveira ***1/2

Nos últimos anos, há uma vertente no cinema brasileiro que enveredou por caminhos artísticos mais ousados e radicais tanto na concepção quanto na sua execução. Esse radicalismo não estaria concentrado necessariamente no hermetismo da narrativa, mas sim na utilização de meios e recursos que fogem daqueles que normalmente são usados na grande maioria das produções. “Ela volta na quinta” (2014) é um reflexo dessa tendência forte em algumas obras nacionais. O diretor André Novais de Oliveira criou uma trama baseado em experiências cotidianas, em que os desdobres do roteiro obedecem a uma lógica natural e de caráter humanista. Dentro desse espírito temático, suas escolhas formais revelam uma desconcertante e notável coerência. Tendo parentes, amigos e conhecidos como intérpretes de seu pequeno drama familiar, Novais de Oliveira cria um conto moral repleto de expressiva carga simbólica. Mesmo que seus atores sejam amadores, ele consegue criar uma encenação cativante através de pequenos gestos, diálogos prosaicos e expressões que se alternam entre a melancolia e a resignação. O cineasta tem notável senso imagético – a direção de fotografia apresenta uma eficiente combinação entre simplicidade e requinte visuais, principalmente em seus expressivos planos-sequência fixos.


Há um momento muito revelador das intenções estéticas do diretor em “Ela volta na quinta”, que é a sequência em que os irmãos André e Renato Novais de Oliveira ficam assistindo a montagens de vídeos no Youtube, em que o primeiro disseca alguns truques de edição e mostra os resultados cômicos para o irmão. É como se o cineasta deixasse claro um dos principais fundamentos artísticos do seu filme, que é o de incorporar à encenação trechos documentais e mesmo o reaproveitamento de temas musicais já existentes. Esse jeito guerrilheiro de fazer cinema cria uma atmosfera visceral e cativante para o espectador, tornando-o ainda mais cúmplice de uma história que dispensa apelações emocionais e simplesmente investe na crueza e na verdade das sensações e sentimentos humanos.

quinta-feira, março 03, 2016

Cinco graças, de Deniz Gamze Ergüven ***1/2

Seria muito fácil enquadrar “Cinco graças” (2015) naquele escaninho de obras a retratar o difícil cotidiano das mulheres em países dominados pelo fundamentalismo religioso islâmico. Tal vertente praticamente se tornou um gênero em si nos últimos anos, e em boa parte dessas produções o valor político e social é bem mais preponderante do que o valor artístico delas. Ocorre que a obra da diretora Deniz Gamze Ergüven tem uma abrangência bem mais ampla do que esse reducionismo. Para começar, trata-se de um filme de admirável acabamento estético e narrativo. Os planos iniciais logo de cara já mostram que se trata de um trabalho diferenciado – é uma encenação sedutora, enfatizando muito o aspecto sensorial, principalmente na questão com que lida com a sensibilidade feminina diante de uma situação de repressão moral. Nesse sentido, a sequência em que as cinco irmãs tomam banho no mar e brincam com alguns garotos é antológica na sua fluência e carga simbólica imagética, em que nenhum momento se nega a sensualidade inerente delas em nome de uma “inocência” maniqueísta. Pelo contrário: é uma visão bastante desafiadora ao enfatizar o direito de exercer a sua sexualidade da maneira como bem entender. Talvez o aspecto mais fascinante da abordagem de Ergüven é justamente como ela faz conciliar com naturalidade e de maneira intrínseca essa visão conceitual de mundo com um formalismo sofisticado repleto de nuances estéticas (ainda que por vezes o roteiro tenha algumas concessões previsíveis), fazendo com que “Cinco graças” tenha um alcance universal muito maior que a simples crítica ao fundamentalismo islâmico. Na verdade, é um contundente libelo pela liberdade comportamental diante de qualquer ortodoxia religiosa, independente de ser de matiz oriental ou ocidental.

quarta-feira, março 02, 2016

A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa ****

É provável que ainda por um bom tempo uma obra como “A vizinhança do tigre” (2014) cause controvérsia pela sua natureza artística, a exemplo de filmes como “Serras da desordem” (2006) e “Castanha” (2014). Na realidade, a estrutura narrativa de tais produções é até simples – a partir de experiências reais de determinados indivíduos, cria-se uma história que é encenada por essas mesmas pessoas, com alguns maneirismos estéticos remetendo a influências de cinema documental. Diante do resultado final, críticos, teóricos e público acabam se questionando se aquilo é documentário, ficção ou algum híbrido. No final das contas, entretanto, tal discussão acaba até mostrando estéril, pois o que realmente importa é o fato de como tais trabalhos são capazes de envolver a plateia. E nesse sentido, o filme do diretor Affonso Uchoa é um tremendo trunfo artístico. Ao retratar parte do cotidiano de garotos da periferia da cidade mineira de Contagem, o cineasta mostra um universo ambíguo, entre o fascinante e o assustador. A trama que surge nas telas vai se formando ao natural, como se por instinto, sem apelações forçadas de sentimentalismo. Para Uchoa, importa muito mais captar determinadas atmosferas e sensações do que amarrar pontas de um roteiro. Assim, valoriza-se a dinâmica entre os personagens de brincadeiras, conversas, cantorias, caminhadas pela noite, bicos de trabalhos, drogas (a sequência em que Menor fuma crack em casa é antológica na sua ambientação de paranoia e melancolia). A encenação é extraordinária na sua naturalidade e fluência, com Uchoa extraindo desempenhos expressivos de seus garotos atores. Aliado a isso, há um rigor estético notável em termos de direção de fotografia, com belíssimos planos que tanto realçam a lúgubre paisagem urbana quanto um insólito bucolismo de matos e árvores. Enquanto Guilherme Fontes desperdiçou uma rica infraestrutura de produção pela sua incompetência narrativa em “Chatô” (2015), Uchoa mostra em “A vizinhança do tigre” uma forte criatividade e domínio formal no uso de uma gama de recursos materiais bem menor, criando um cinematográfico conto humano complexo e poético.

terça-feira, março 01, 2016

Chatô, de Guilherme Fontes 1/2 (meia estrela)

O que vai se fazer na presente resenha não é um exercício jornalístico, procurando informar fatos sobre “Chatô” (2015), mas sim a impressão sensorial daquele que escreve sobre o filme. Dito isso, a percepção que se tem após o final da produção é que o diretor Guilherme Fontes havia elaborado inicialmente uma narrativa linear e tradicional a expor os principais eventos da vida de seu biografado, Assis Chateaubriand, dono de um dos maiores impérios de imprensa da história do Brasil e figura extremamente polêmica na trajetória política do país. Ao constatar a fragilidade formal de sua obra, Fontes inseriu sequências entre o onírico e o delirante, remetendo bastante ao clássico musical “O show deve continuar” (1979). Ocorre, entretanto, que Fontes não é Bob Fosse e o resultado final de “Chatô” é uma deplorável mixórdia estética e temática. A pretensa formatação farsesca parece mais uma desculpa para a incapacidade do diretor em obter dinâmica narrativa e concepção visual aceitáveis. Tudo dá errado no filme: encenação truncada beirando o amador, direção de arte qualquer nota, fotografia sem qualquer rigor imagético, elenco de interpretações que oscilam entre o over irritante e o piloto automático, edição desengonçada, roteiro que simplifica banalmente complexas situações históricas e reduz importantes personagens a caricaturas. Ou seja, não é prazeroso ou mesmo inquietante assistir à produção, e nem como registro histórico relevante “Chatô” se presta. O desastre do conjunto artístico geral faz entender por quê Fontes demorou tanto para lançar tal trabalho – estava com vergonha do abacaxi que tinha em mãos. No final das contas, o melhor mesmo é ficar com a sensacional biografia de Chateaubriand escrita por Fernando Morais, essa sim uma obra memorável sobre a figura em questão.