A crueza narrativa e cênica de “Beach rats” (2017) faz
lembrar “Kids” (1995). Mesmo a parte temática dos filmes chegam a ser bem
semelhantes, mostrando o lado obscuro da juventude norte-americana. Ou seja, a
obra da diretora Eliza Hitman está bem distante de poder ser considerada uma
grande novidade ou ruptura no cinema indie norte-americano. Ainda assim, não
deixa de ser um trabalho inquietante. A encenação é de claro teor naturalista,
mas embalada em uma bela concepção imagética, o que se mostra em sintonia no
próprio jogo de contradições da trama (jovens fotogênicos envolvidos em
situações sórdidas, hedonismo exacerbado que se choca com uma melancolia
fatalista). O roteiro traz uma sutil carga simbolista nas desventuras do
protagonista Frankie (Harris Dickinson) em meio a passeios noturnos com os
amigos em Coney Island (em sequências, aliás, que constituem os grandes
momentos da direção de fotografia), pequenos furtos e aventuras homossexuais
com caras mais velhos. Nesse último aspecto, aliás, talvez se concentre os
momentos dramáticos mais complexos e interessantes de “Beach rats”, em que tais
episódios mais revelam um caráter ambíguo do que propriamente um erotismo
escancarado – Frankie tanto parece
querer saciar seus desejos quanto ter um desejo atávico por uma figura paterna
ausente.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, agosto 31, 2018
quinta-feira, agosto 30, 2018
Perfeitos desconhecidos, de Álex de la Iglesia ***
Os filmes mais recentes do diretor espanhol Álex de la
Iglesia estão bem distantes daquilo de melhor que ele já realizou em sua
carreira. Ele se limita a fazer reciclagens divertidas de seu próprio estilo (“A
grande noite”) ou lançar obras despersonalizadas e irrelevantes (“O bar”). “Perfeitos
desconhecidos” (2017) se enquadra no primeiro caso. Há aquela sua habitual propensão
para a comédia bizarra e grotesca e que acaba rendendo alguns dos melhores
momentos do longa. As atuações caricaturais do elenco e algumas atmosferas mais
delirantes também reforçam esse lado autoral, tirando a obra do lugar comum. Ainda
assim, para quem já conhece o melhor de sua filmografia, fica aquela constante
impressão de que Iglesia já fez bem melhor que isso. O que joga contra a
produção é um roteiro marcado por algumas obviedades incômodas (uma premissa de
um jantar entre amigos em que se acaba lavando muito roupa suja é um recurso
deveras manjado), além de soluções narrativas convencionais em excesso que
tiram muito daquele impacto que as ambíguas sínteses cômicas/dramáticas
costumavam despertar no espectador naqueles trabalhos mais memoráveis de
Iglesia. Entre acertos e equívocos. “Perfeitos desconhecidos” pode estar longe
de ser considerado uma obra marcante no currículo do cineasta, mas acaba sendo
uma boa diversão.
quarta-feira, agosto 29, 2018
Histórias que nosso cinema (não) contava, de Fernanda Pessoa ***1/2
Quando comecei a acompanhar filmes com mais afinco em minha
adolescência, em meados dos anos 1980, percebia que quando alguém se referia a
cinema nacional geralmente trazia uma carga negativa, colocando que a maioria
dos filmes era de sacanagem ou coisa que o valha. Muito dessa impressão vinha
do fato que aquilo que era considerado por público e grande parcela da crítica
como “pornochanchada”, uma espécie de variação popular e gaiata do gênero explotation,
foi bastante predominante em nossas telas na década de 70 e princípio dos 80,
período esse em que o Brasil estava sob o cabresto da ditadura militar. O
documentário “História que nosso cinema (não) contava” (2017) foca justamente
nessa relação existencial entre essa linhagem de produções com o opressor
ambiente sócio-político daquela época. Em sua abordagem estética, a diretora
Fernanda Pessoa faz lembrar o modus operandi que Eryk Rocha havia adotado em “Cinema
novo” (2016), dispensando uma voz narradora ou depoimentos contemporâneos em
prol de um minucioso trabalho de montagem que combina trechos expressivos de
alguns dos principais longas do gênero. Nessa formatação, o documentário de
Pessoa tem um efeito sensorial desconcertante e uma notável lucidez temática.
As cenas mostradas formam um impressionante híbrido de ironia entre a malícia e
o amargo, erotismo barato exacerbado e contundente violência gráfica, em um
conjunto audiovisual que expõe com crueza e cruel sarcasmo a atemporal alma de
uma nação.
terça-feira, agosto 28, 2018
Beduíno, de Júlio Bressane ***1/2
Faz alguns anos que assisti a uma palestra de Júlio Bressane
e me impressionou a sua lucidez intelectual e mesmo a sua percepção sobre a
natureza intrigante da sua própria obra. E é extraordinário como tais aspectos
conseguem se tornar visíveis em seus filmes. Só mesmo Bressane consegue fazer
com a combinação de um roteiro baseado em discussões herméticas e intrincadas
sobre a natureza da arte entre um casal e uma encenação de forte traço
antinaturalista se transforme em uma experiência cinematográfica tão
estimulante quanto em “Beduíno” (2016). Mostrando a mesma inquietação e
criatividade que marcou de maneira constante a sua filmografia, o diretor
constrói uma atmosfera delirante que tanto desconcerta quanto encanta,
utilizando-se para isso de truques estéticos complexos em termos de concepção
existencial-artística, mas que em sua execução também revelam uma simplicidade
perturbadora. E a parceria com a atriz Alessandra Negrini revela cada vez mais
uma assombrosa sintonia, o que se acaba configurando em uma interpretação que
varia com sensibilidade e precisão dramática do sensual ao francamente bizarro.
segunda-feira, agosto 27, 2018
Benzinho, de Gustavo Pizzi ***1/2
Por mais que o espectador se sinta identificado com algum
aspecto temático de “Benzinho” (2018), tentar enquadrar o filme como um retrato
da sociedade brasileira contemporânea seria algo reducionista. O filme do
diretor Gustavo Pizzi vai bem mais além do que isso. Ele está mais para um
mosaico existencial-sensorial de sentimentos e valores atávicos do ordenamento
ocidental capitalista. Por mais que a protagonista Irene (Karine Teles) e sua
família sejam de classe média baixa, todos os seus dilemas e conflitos dizem
respeito a corresponder aos anseios e desejos de um padrão de vida
pequeno-burguês. Nessa contradição sócio-econômica, é claro que a única coisa
que pode sair é uma perturbadora e constante percepção de algo que está em desiquilíbrio.
A grande sacada estética-narrativa do filme é justamente absorver essa condição
de desiquilíbrio para a sua própria formatação. Se em um primeiro momento a
abordagem da obra é a de teor naturalista, em momentos pontuais e decisivos da
trama fica evidente um tom delirante em sua atmosfera cênica, como se o
aparente realismo se convertesse em um teatro de absurdos do cotidiano,
principalmente quando uma série de situações-limites vão convergindo para uma
possível quebra da psique de Irene. Outra boa solução criativa de Pizzi,
entretanto, é afastar seu filme do previsível melodrama, dando à obra um
caráter entre o irônico e o melancólico, em que os personagens se adaptam e acomodam
com doce-amarga resignação às suas frustrações e perdas. Nessa muito peculiar
concepção de saga familiar, a atuação de Karine Teles é decisiva, com uma
impressionante atuação repleta de memoráveis nuances dramáticas.
sexta-feira, agosto 24, 2018
Other people, de Chris Kelly **1/2
Há elementos temáticos e de encenação em “Other people”
(2016) que trazem algum frescor para a obra, principalmente em relação à forma
mais libertária e madura com que aborda a questão da homossexualidade. Nesse
sentido, não há como não destacar a figura do garoto adotado gay, irmão do
amigo do protagonista David (Jesse Plemons), em sua caracterização exuberante e
exagerada de trejeitos e coreografias, sem que isso caia necessariamente no
caricatural. No mais, entretanto, essa produção dirigida por Chris Kelly pouco
se diferencia daquela linhagem de melodramas norte-americanos indies que
aparece aos borbotões. Há momentos comoventes, o elenco apresenta algumas boas
atuações, a narrativa é agradável, mas o filme também está repleto daqueles
truques estéticos e emocionais bem manjados. No saldo final, assim como é fácil
de se ver, também é fácil de esquecer.
quinta-feira, agosto 23, 2018
Sign 'o' the times, de Prince ****
A relação de Prince com o cinema sempre foi conturbada. Se o
drama ficcional “Purple rain” (1984) ajudou a consolidar o seu nome para o
estrelato, houve também obras que foram verdadeiros fiascos comerciais e
artísticos. Entre esses altos e baixos, “Sign ‘o’ the times” (1987) representa
a grande contribuição desse genial músico para a arte cinematográfica. Se o
álbum de mesmo nome era marcado por uma musicalidade descarnada em termos de
arranjos e produção, beirando o minimalismo, seu equivalente fílmico investiu
em uma opulência barroca e luxuriante. Com o próprio Prince na direção, a obra
se alterna em abordagens diferentes, ainda que o predomínio seja a formatação
de um filme-concerto. Há espaço para encenação estilizada e trechos videoclipeiros,
mas sempre preservando uma noção de unidade conceitual, em que música e
coreografia evidenciam um erotismo irônico e intenso que se contrapõe a uma
atmosfera entre o sombrio e o sórdido, reflexo claro de uma época em que a AIDS
avançava de forma impiedosa e as noções de desejo e culpa voltavam a se
contrapor (ainda que na visão de Prince tal embate passe por um viés
sarcástico). As canções de “Sign ‘o’ the times” se sucedem obedecendo a um rigoroso
e notável senso cênico e narrativo, em que a concepção imagética da obra
valoriza as nuances rítmicas e melódicas das performances de Prince e banda. Daria
até para dizer que assistir ao filme é uma experiência interessante até para
quem não gosta de Prince, mas confesso que acho difícil que algum ser humano
com um mínimo de sensibilidade não goste pelo menos um pouco da musicalidade
exuberante do cara.
quarta-feira, agosto 22, 2018
O animal cordial, de Gabriela Amaral Almeida ***
Ainda que a sua narrativa seja banhada por muito sangue e
violência, “Um animal cordial” (2017) está mais para uma simbólica obra de teor
sócio-político do que para um tradicional filme de horror e suspense. Cada
personagem da trama parece representar aspectos diversos das classes sociais no
Brasil, enquanto as situações do roteiro evocam um caráter alegórico. A
produção dirigida por Gabriela Amaral Almeida não se limita, entretanto, a dar lição
de sociologia. A cineasta consegue criar atmosferas de forte tensão
psicológica, por vezes enveredando para o francamente delirante, bem como tem
considerável senso cênico em sua concepção imagética. Nessa última
característica, inclusive, apresenta pelo menos uma sequência antológica,
aquela em que Inácio (Murilo Benício) e Sara (Luciana Paes) transam cobertos de
sangue, de um grafismo audiovisual doentio e perturbador. Por vezes, a
narrativa do longa se mostra um tanto irregular, principalmente quando a
diretora abusa de uma estilização de linguagem que chega a beirar o publicitário.
Além disso, a atuação de Murilo Benício como protagonista cai com frequência na
canastrice histriônica. Ainda assim, “O animal cordial” não perde seu caráter
instigante e envolvente. Afinal, num cenário nacional como o nosso na
atualidade, em que um fascista de pendores militaristas tem a forte
possibilidade de se tornar presidente da república com o apoio fundamental de
uma classe média alienada e ressentida, um personagem como Inácio, um
cidadão-psicopata “de bem”, acaba sendo bem representativo.
terça-feira, agosto 21, 2018
Irmãs, de Jason Moore ***
O que torna “Irmãs” (2015) um filme bem divertido não é
alguma grande ousadia temática ou narrativa. Pelo contrário. A produção
dirigida por Jason Moore abusa de truques cômicos corriqueiros e mesmo de um
tom moralista, elementos esses fortemente presentes nas comédias
norte-americanas nos últimos anos. O que dá um toque diferencial na história de
duas irmãs quarentonas imaturas emocionalmente que resolvem dar uma festa de
arromba para relembrar (ou exorcizar) a juventude está na boa sacada de Moore
em concentrar a narrativa nas atuações histriônicas do trio de atrizes
veteranas de Saturday Night Live Amy Poehler, Tina Fey e Maya Rudolph. Elas
conseguem dar credibilidade tanto para as sequências mais
escrotas/escatológicas quanto para aquelas com uma queda para o melodrama
familiar. Assim, “Irmãs” consegue se afastar daquela assepsia típica de boa
parte do que se faz no gênero na atualidade e oferecer alguns momentos hilários
memoráveis.
segunda-feira, agosto 20, 2018
Eu não sou um homem fácil, de Éléonore Pourriat *1/2
No papel, “Eu não sou um homem fácil” (2018) até aparenta
ser promissor. Uma comédia no gênero fantástico envolvendo realidades
alternativas, a dicotomia machismo/femininos, papéis sexuais e dominação
sócio-econômica. E a origem francesa também pode sugerir uma maior profundidade
na abordagem de tais temáticas complexas. O resultado final da obra dirigida
por Éléonore Pourriat, entretanto, joga por terras as boas expectativas. A
formatação da narrativa é excessivamente convencional, a encenação se perde no
caricatural e o roteiro abusa de soluções simplórias e óbvias.
sexta-feira, agosto 17, 2018
A festa, de Sally Potter **1/2
O tipo de proposta temática/narrativa de “A festa” (2017)
não chega a ser exatamente uma novidade, mas de vez em quando costuma render
alguma coisa de interessante: no ambiente fechado de uma pequena reunião
social, revelações e outras situações-limites levam os personagens a exporem
seus segredos sórdidos, preconceitos e hipocrisias, fazendo com que a linha
entre a civilidade e a selvageria se mostre muito tênue. No caso do filme de
Sally Potter, há também a preocupação em expor alguns dos principais dilemas e
conflitos da sociedade contemporânea (feminismo, machismo, arrivismo
sócio-econômico, alienação, famílias disfuncionais). Vale mencionar ainda que a
diretora contou em sua produção com um elenco de nomes expressivos no panorama
cinematográfico atual. O resultado final de sua obra, entretanto, é frustrante.
Culpa de uma certa mão pesada de Potter na condução de sua narrativa. A encenação
se mostra emperrada por uma verborragia excessiva, as atuações se perdem em
caracterizações caricaturais e o roteiro fica indeciso entre evocar alguma densidade
psicológica ou privilegiar um tom anedótico. Por vezes, “A festa” até insinua
um tom mais perturbador na forma com as frustrações e desejos dos personagens
são expostos em cena, mas no final das contas isso apenas serve para mostrar
que o filme poderia ter sido bem melhor. Aliás, faz até imaginar o que um
artista como Roman Polanski, por exemplo, mestre nesse tipo de trama, poderia
ter extraído de tais elementos narrativos.
quinta-feira, agosto 16, 2018
Você nunca esteve realmente aqui, de Lynne Ramsay ****
Na premissa de seu roteiro, “Você nunca esteve realmente
aqui” (2017) faz evocar algo como um cruzamento entre “Taxi driver” (1976) e “O
profissional” (1994). Entre o pesado drama psicológico e o franco thriller de
aventura, a diretora Lynne Ramsay faz o seu filme se localizar em um estranho
universo híbrido disso tudo e também muito particular. Sua dissecação da ação
cinematográfica nas sequências envolvendo brutalidade gráfica e atmosferas de
tensão tem um caráter bastante elíptico – tiros, marteladas e outros atos
violentos afins na maioria das vezes não são filmados de forma exatamente
direta, havendo uma preferência mais pela sugestão e pela exposição das
consequências de tais ações. Não se trata exatamente de poupar a suscetibilidade
do espectador, pois há sangue e carne dilacerada em profusão na narrativa. Na
verdade, essa maneira de registrar a violência é até mais perturbadora do que
se a preferência fosse pela mais tradicional de filmar. Nessa abordagem
imagética da cineasta há o sentido de complementar a psique atormentada do
protagonista Joe (Joaquin Phoenix), em constante conflito entre traumas difusos
do passado e um presente marcado por uma perseguição inclemente de uma
organização política-criminosa-sexual. Na saga do personagem principal, há um
tom quase fabular, em que no meio desse cenário de destruição, degradação e
melancolia brota de maneira insólita momentos de teor poético desconcertante (o
assassino que morre cantando uma melosa balada pop, o funeral aquático da mãe
de Joe, o seu imaginário e luminoso suicídio). Nesse conto de vingança de brilhante
e bizarra encenação se destacam ainda a atuação de pura possessão de Phoenix e
a etérea trilha sonora de Jonny Greenwod.
quarta-feira, agosto 15, 2018
O Babadook, de Jennifer Kent ***
São recorrentes comentários na internet de que “O Babadook” (2014)
e um dos filmes mais aterrorizantes dos últimos tempos. Se isso é fruto de
alguma engenhosa campanha marqueteira ou apenas da opinião de alguns
espectadores facilmente impressionáveis, o fato é que essa produção australiana
dirigida por Jennifer Kent está bem longe de ser considerado um marco no gênero
horror. É apenas uma obra que recicla vários clichês narrativos e temáticos
dessa linhagem de filmes. É fato também, entretanto, que faz isso com razoável
competência. O elenco apresenta algumas atuações convincentes (o garoto Noah
Wiseman é especialmente interessante na sua caracterização alucinada de um
pentelho irrequieto), as caracterizações imagéticas das trucagens têm um certo
frescor (a figura da monstruosa criatura do título, por exemplo, é memorável) e
Kent consegue extrair genuínas atmosferas de tensão dramática em algumas
sequências. Ou seja, nada que vá mudar o rumo do mundo, mas que pelo menos
garante uma sessão divertida no Netflix (aliás, coisa que não é tão frequente
assim no canal).
terça-feira, agosto 14, 2018
Ela quer tudo, de Spike Lee ****
Em um primeiro momento, pode-se dizer que o longa-metragem
de estreia do diretor norte-americano Spike Lee, “Ela quer tudo” (1986),
funcionou como uma espécie de laboratório de ideias que foram desenvolvidas de
forma mais amadurecida em produções posteriores do cineasta. É evidente também
um certo charme amador em algumas passagens, muito mais fruto dos recursos de
produção mais modestos do que propriamente por descuidos formais de Lee. Ainda
assim, esse filme continua a ser um dos trabalhos mais fulgurantes e singulares
do diretor, assim como um dos marcos fundamentais do cinema independente dos
Estados Unidos nos anos 80 ao lado de obras como “Estranhos no paraíso” (1984) e
“Gosto de sangue” (1984). Narrativa e estética são caracterizadas em uma
original síntese de hiper-realismo e estilização, sendo que tal abordagem artística
está em notável sintonia com um roteiro de expressivo teor libertário e
humanista e que também tem como ponto forte um sutil e cortante senso de
ironia. Já a encenação concebida por Lee a sua direção de atores apontam um
rumo muito particular e ousado, no sentido de se mostrar distante de mofados clichês
dramáticos de atmosfera e interpretação. Essa liberdade criativa recebe um
complemente preciso nos belos temas harmônicos e melódicos da trilha sonora de
Bill Lee. No cômputo geral, “Ela quer tudo” é um exemplar enfático daquela
linhagem de obras em que a economia de recursos acaba por extrair o máximo de
suas potencialidades artísticas.
segunda-feira, agosto 13, 2018
Dores de amores, de Raphael Vieira *1/2
Pelo menos em suas intenções artísticas, “Dores de amores”
(2012) poderia sugerir algo de promissor. A narrativa procura uma síntese entre
o realismo e atmosferas estilizadas/delirantes, o roteiro investe em um viés
crítico e irônico sobre as relações amorosas/sexuais, o elenco traz alguns dos
nomes mais expressivos do cinema brasileiro dos últimos anos. O problema do
filme dirigido por Raphael Vieira é que a junção disso tudo não dá liga. A
encenação é over é afetada, descambando com frequência para um incômodo tom de
empostação teatral. E mesmo as situações de suposta ousadia da trama se perdem
em soluções óbvias e simplórias. Além disso, alguns detalhes pictóricos como a
inserção de cenários grafitados soam como meros adereços imagéticos, não tendo
uma efetiva ligação com a narrativa. Ou seja, as altas pretensões
estéticas/temáticas da produção ficaram bem longe de se concretizar diante de
uma execução tão equivocada.
sexta-feira, agosto 10, 2018
Verónica, de Paco Plaza *1/2
Adolescente brinca com uma tábua de ouija, desperta alguns
demônios e passa a ser atormentado por eles. Quanto filmes já foram realizados
com essa premissa? Pois é, vários e que se até confundem na lembrança. O que
essa produção espanhola se diferencia em relação às outras? Só a língua, e olhe
lá. Mais uma das tantas produções irrelevantes que o Netflix gosta de ostentar
em seu catálogo de recomendações.
quinta-feira, agosto 09, 2018
Nico, 1988, de Susanna Nicchiarelli ****
Filmes sobre apocalipse praticamente representam um subgênero
na história do cinema. Na maioria das vezes, são obras no gênero fantástico que
mostram as consequências para o mundo de um hipotético evento-cataclisma que
destrói a ordem civilizada e expõe a sociedade a situações extremas de barbárie
e sobrevivência. Mas o que ocorre quando um filme retrata o apocalipse como
sentimento e não como um fato específico? Pois é justamente isso que retrata “Nico,
1988” (2017), produção biográfica que tem como protagonista a cultuada cantora
que participou do primeiro disco do Velvet Underground em 1967e depois
desenvolveu uma carreira solo marcada tanto pelo caráter artístico peculiar
quanto pela obscuridade em termos comerciais e de reconhecimento de um grande
público. Ao invés de fazer uma acadêmica e óbvia reconstituição resumida de
toda a vida de sua personagem principal, a obra prefere focar nos últimos dois
anos de carreira (e vida) da artista. Escolha muito acertada da diretora
Susanna Nicchiarelli: ao delimitar esse compacto espaço temporal, a narrativa
consegue evidenciar com sensibilidade e contundência a força abrasiva da música
muito particular de Nico bem como os dilemas e contradições pessoais que
marcavam a sua personalidade, além de revelar o traço do indissociável entre a
vida pessoal e a arte da cantora. A estética sombria e o roteiro muito bem
depurado formatam um conceito artístico e existencial de notável coerência e perspicácia,
o que se pode perceber em nuances extraordinárias como a sequência de abertura,
em que em sua infância Nico presencia de longe Berlin sendo devastada pelos
aliados. Em sua rotina de viagens e shows pela Europa na parte final de sua
carreira, percebe-se os estertores finais da Guerra Fria, e se estabelece com
sutileza a ponte entre a arte de Nico e tais eventos históricos de grandes
conflitos armados, em que canções e arranjos se mostram como a efetiva trilha
sonora de um século marcado por banhos de sangue e os sentimentos de paranoia e
mal-estar diante de um possível holocausto nuclear. O sóbrio formalismo adotado
por Nicchiarelli para “Nico, 1988” se encaixa de maneira precisa dentro dessa
conceituação artística, valorizando tanto um caráter realista da história da
cantora em sua abordagem quanto enfatizando um tom de imaginário estilizado sobre
a sua figura, principalmente quando retrata as conturbadas apresentações ao
vivo de Nico, o que dá ao filme uma atraente atmosfera misteriosa, típica de
uma época pré-internet em que informações sobre determinados artistas “malditos”
traziam um certo tom nebuloso.
quarta-feira, agosto 08, 2018
Missão impossível: Efeito fallout, de Christopher McQuarrie **1/2
É um argumento razoável colocar que os momentos mais
dramáticos/intimistas de “Missão impossível: Efeito fallout” (2018), aqueles
envolvendo mais a tensão psicológica e mesmo sentimental entre os personagens,
teriam um caráter secundário para o filme e serviriam apenas de pretexto para
as vertiginosas sequências de ação da produção dirigida por Christopher
McQuarrie. É verdade também, entretanto, é que tais momentos mais “calmos”
também contribuem na construção da narrativa e dessa forma ajudam a expor a própria
configuração artística/existencial da obra em questão. E nesse sentido, acabam
por revelar as fraquezas desse novo capítulo das aventuras de Ethan Hunt (Tom
Cruise). Se no extraordinário primeiro filme de 1996 concebido pelo mestre
Brian De Palma se tinha um longa preciso e exato na coreografia de sua ação
aliado a roteiro e atmosfera que remetiam a reconstrução do tom farsesco das
antigas aventuras de espionagem, nesse filme mais recente a ênfase é em um derivativo
caráter de gigantismo e exagero das inúmeras cenas de perseguições em terra e aéreas, embates físicos e tiroteios que têm como suporte uma trama repleta de
sentimentalismo barato beirando o infantil e simplificações éticas e
ideológicas duvidosas. Ver Luther (Ving Rhames) com cara de choro falando
seguido da conturbada vida sentimental de Hunt, por exemplo, chega a ser
constrangedor. E a simbologia de um protagonista algo truculento auxiliado por
dois geeks tecnológicos a combater terroristas e “anarquistas” que desafiam a
ordem sócio-econômica-política é perfeitamente coerente com o tempo que vivemos,
mas incomoda pelo teor conformista e defensor do establishment. É claro que a
maioria absoluta do que sai dos grandes estúdios no gênero nos últimos tempos
também adota essa postura narrativa, mas pelo alguns deles fazem com mais
sutileza, ironia ou mesmo alguma ousadia.
terça-feira, agosto 07, 2018
Anjos da noite, de Wilson Barros ***
Há filmes que são quase que indissociáveis da época em que
foram realizados. A produção brasileira “Anjos da noite” (1987) é um desses
casos. Nos anos 80, havia uma vertente no cinema nacional, principalmente
oriunda de São Paulo, que trazia uma urgência em colocar em prática um conjunto
estético-temático que se mostrasse em sintonia com um ideal artístico
pós-moderno, necessidade essa fruto provável do período obscurantista dos anos
de chumbo da ditadura militar. Se no Rio de Janeiro diretores e produtores
enveredavam por obras “praieiras” de caráter festivo-hedonista, em São Paulo o
foco estava numa ambientação noturna estilizada com tramas envolvendo figuras “outsiders”
(artistas, pequenos marginais, prostitutas, michês, gangsteres) em narrativas
que abarcavam tanto a encenação naturalista quanto atmosferas oníricas/delirantes
típicas do cinema fantástico e dos musicais e tons metalinguísticos. O filme de
Wilson Barros tem tudo isso, por vezes esbarrando em uma narrativa irregular e na
ingenuidade suas pretensões, em outros momentos trazendo algum encanto em sua
trama mosaico de vários personagens, como se fosse uma simpática versão nativa
do clássico da estilização cinematográfica oitentista “O fundo do coração”
(1982).
segunda-feira, agosto 06, 2018
Rei, de Niles Atallah ****
A relação conturbada entre o homem branco ocidental
colonizador e povos nativos/colonizados representa uma temática recorrente no
cinema, de clássicas obras-primas como “Aguirre, a cólera dos deuses” (1972) e “Apocalypse
Now” (1979) até extraordinários filmes mais recentes do quilate de “Z, a cidade
perdida” (2016) e “Zama” (2017). Nessa instigante tradição, inscreve-se também
a produção chilena “Rei” (2017). A formatação concebida pelo diretor Niles
Atallah faz lembrar o teor delirante do longa brasileiro “Ex-isto” (2010),
também de temática semelhante, mas com uma narrativa ainda mais estilizada.
Atallah insere alguns momentos de uma encenação realista. O efetivo foco
artístico de “Rei”, entretanto, está no romper com o naturalismo, em que o olhar
histórico sobre o episódio do aventureiro francês Antoine de Tounens (Rodrigo
Lisboa) que tentou construir um reino próprio nas regiões da Araucaria e da
Patagônia em meados do século XIX é perpassado por um viés mágico e subjetivo.
Para isso, Atallah se vale de recursos estéticos e narrativos variados –
utiliza bitolas antigas para filmar, encena com preceitos teatrais as
sequências de julgamento do protagonista, abusa de trucagens artesanais de
beleza pictórica desconcertante para enfatizar o caráter onírico de algumas
cenas. Esse insólito barroquismo de “Rei” não se limita ao mero efeito
experimental ou exótico, estando em perfeita sintonia existencial com o próprio
caráter ambíguo do roteiro, que tanto evidencia um fascínio com o modus
operandi alucinado e romântico de Tounens na busca de seus objetivos quanto um
teor crítico sobre as ações exploradoras/opressoras em relação aos povos
nativos da América do Sul.
sexta-feira, agosto 03, 2018
8 mulheres e meia, de Peter Greenaway ***1/2
Pode-se dizer que “8 mulheres e meia” (1998) é uma variação
dos preceitos estéticos e temáticos que o diretor britânico Peter Greenaway
tinha colocado em prática em outros de seus filmes com resultados mais
satisfatórios. Ainda assim, uma obra menor de Greenaway é sempre bem mais
interessante que a grande maioria dos filmes que estão em cartaz. Na produção
em questão, há aquela combinação habitual do cineasta – barroquismo delirante,
atmosferas carregadas de erotismo mórbido, caracterizações estilizadas de
personagens e situações, roteiro repleto de simbolismos diversos. Por vezes os
exageros formais e o cerebralismo que permeiam o longa, assim como o tom lúdico
e intrincado do roteiro a versar sobre opressão machista/econômica, deixam a
narrativa um tanto irregular e cansativa, mas em boa parte das sequências há
aquele impacto imagético/sensorial que deixa o espectador tanto desconcertado
quanto encantado com esse cinema muito peculiar de Greenaway.
quinta-feira, agosto 02, 2018
Custódia, de Xavier Legrand ***
Na sua construção formal-narrativa, “Custódia” (2017) parece
uma variação dos preceitos artísticos de alguns dos principais filmes dos
irmãos Dardenne. Há aquela sóbria abordagem estética a embalar uma trama de
forte conteúdo intimista-social. Ainda que tenha esse aspecto derivativo, o
filme do diretor francês Xavier Legrand consegue ter um considerável impacto
sensorial para as plateias. O conjunto encenação, edição e fotografia configura
uma forte atmosfera de tensão sufocante na história da conturbada relação entre
um homem violento e perturbado e a ex-mulher e filhos. Há um tom quase
documental por vezes na narrativa, em que até detalhes burocráticos e
administrativos de um processo judicial de separação litigiosa, por exemplo,
são expostos em suas minúcias justamente para caracterizar uma ambientação de
opressão machista e econômica sobre aqueles mais fragilizados (mulheres,
crianças, pobres) perante esse sistema sócio-econômico. Legrand não se vale de
artifícios de fácil manipulação sentimental, como música melosa ou
caracterizações caricatas – seu filme tem uma objetividade e secura que realçam
com precisão e sensibilidade alguns tormentos existenciais típicos da sociedade
contemporânea, além de um elenco cujas composições dramáticas à flor-da-pele se
mostram em notável sintonia com tal proposta.
quarta-feira, agosto 01, 2018
Giselle, de Victor Di Mello ***
Expressivo exemplar do exploitation brasileiro, “Giselle”
(1980) é uma obra que tem até alguns aspectos datados em termos narrativos, mas
que mesmo assim consegue impressionar nos dias de hoje. Certas nuances
temáticas e estéticas remetem muito ao cinema intimista de Walter Hugo Khouri,
só que com uma preponderância ainda maior para o erótico e o grotesco. Sugerem
ainda uma espécie de leitura sócio-política da época, principalmente no que diz
respeito à repressão do regime militar e os conflitos ideológicos, além de uma
visão irônica sobre os costumes da burguesia nativa. Por vezes, tais pretensões
artísticas existenciais trazem um caráter perturbador para a obra, em outros
momentos apenas resvalam no superficial e no oportunista. O que fica de
memorável realmente nesse longa dirigido por Victor Di Mello é no acentuado
fator de violência e sexualidade gráficas que inundam a tela em algumas
sequências. Pode-se acusar o filme de várias coisas, até de um certo apelo
preconceituoso que seria quase impensável no cinema contemporâneo, mas pelo
menos não se pode dizer que caia em concepções imagéticas e narrativas
assépticas. Por mais desagradável e vulgar que sejam algumas de suas cenas, “Giselle”
é o tipo de obra que se instaura de forma insinuante no imaginário do
espectador.
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