sexta-feira, agosto 30, 2013

Celine e Julie vão de barco, de Jacques Rivette ***1/2


O delirante e o onírico ganham uma nova dimensão nas mãos de Jacques Rivette em “Celine e Julie vão de barco” (1974). O filme parece meio aleatório na sua estrutura narrativa – é como se a trama evoluísse por alguma intuição do diretor e de suas protagonistas. No roteiro, há duas histórias que por vezes correm paralelamente, e noutros momentos se fundem de acordo com uma lógica surrealista. Ocorre, entretanto, que esse direcionamento de fantasia não se prende aos ditames tradicionais do cinema fantástico; na realidade, é como se fosse uma extensão das particulares concepções artísticas de Rivette. Ele cria atmosfera e dinâmica rarefeitas para buscar uma linguagem que seja própria do cinema, ainda que se utilize de alguns preceitos da literatura e do teatro. Seu formalismo anti-naturalista dá uma sensação ao espectador de se encontrar numa montanha russa sensorial. Se essa opção criativa pode ser cansativa em algumas seqüências, em outras é estranhamente sedutora, principalmente por evocar um cinema cujos maneirismos enveredam tanto por uma direção de fotografia de tons granulados e esmaecidos (quase como se fosse um vídeo caseiro) quanto por uma estética gótica de araque e um tanto irônica. Para Rivette, as noções de realismo e linearidade só servem para serem distorcidas em busca de um olhar livre e inquietante.

quinta-feira, agosto 29, 2013

Paris nos pertence, de Jacques Rivette ***


Um dos nomes considerados pilares da Nouvelle Vague, Jacques Rivette não demonstrou em sua obra de estreia, “Paris nos pertence” (1961), o mesmo grau de excelência artística que seus pares François Truffaut e Jean-Luc Godard atingiram em seus respectivos debut, “Os incompreendidos” (1959) e “Acossado” (1960). Ao assistir ao filme, pode-se perceber a procura de um estilo mais definido, de uma narrativa melhor formatada. È inegável, entretanto, que em vários momentos de tal produção há a presença de elementos que posteriormente em outras obras se cristalizaram numa estética definitiva e indelével de Rivette. Mesmo dotado de recursos limitados para filmar, o cineasta já demonstra o instinto para enquadramentos de peculiar beleza, assim como tangencia um diálogo criativo com outros meios de expressão como o teatro e a literatura. O mistério e a fantasia, dois grandes norteadores de sua filmografia, estão ali presentes, configurando um onirismo estranho e uma atmosfera rarefeita, em que o fio de trama dá a aparência de que irá se desvanecer a qualquer momento. A sensação final após a conclusão de “Paris nos pertence” é semelhante ao de um sonho – não lembramos direito do que se trata a história, mas permanece a recordação de algumas imagens sedutoras.

quarta-feira, agosto 28, 2013

A religiosa, de Jacques Rivette ****


A relação entre cinema e literatura atinge um estágio bastante singular na versão para as telas concebida pelo diretor francês Jacques Rivette para “A religiosa” (1966), baseada no texto original de Denis Diderot. O cineasta não envereda por uma direção tão precisa – o filme tanto preserva e ressalta uma linguagem muito próxima da literária, mas também traz uma estrutura narrativa cujo sentido é bastante próprio de um meio de expressão particularmente cinematográfico. O que pode parecer, então, uma certa esquizofrenia formal se revela como uma estética ousada e envolvente. Rivette preserva aquilo que a trama teria de mais básico e extrai a essência daquilo que eterniza a escrita de Diderot: a combinação intrínseca entre dramatismo e ironia, o distanciamento emocional que se aproxima do sarcasmo, a crítica ácida das instituições religiosas. É como se o livro fosse descarnado, reduzido a um sentido primordial, e nesse processo o próprio cinema de Rivette adquirisse uma contundente concisão. Dessa forma, prevalece um rigor que se estende pelos principais pilares de “A religiosa”. A direção de arte é espartana, as composições dramáticas do elenco são concentradas em definições exageradas em detrimento de psicologismos detalhados, montagem e roteiro se relacionam numa narrativa elíptica (é como se um livro fosse lido com algumas páginas arrancadas). E nessa adaptação que se esgueira entre a fidelidade e a transgressão, Rivette parece desconstruir sutilmente alguns cânones até do gênero dos filmes de época. Assim, a produção acaba soando perturbadora tanto para carolas pelo seu forte teor anticlerical quanto para aqueles apreciadores de um cinema mais comportado.

terça-feira, agosto 27, 2013

Hannah Arendt, de Margarethe Von Trotta ****


Num primeiro momento, a estrutura narrativa proposta pela diretora alemã Margarethe Von Trotta em “Hannah Arendt” (2012) pode aparentar um convencionalismo na sua linearidade com eventuais flashbacks. Com o desenvolver do filme, entretanto, revela-se um trabalho muito mais complexo e fascinante. Trotta concebe a sua obra como uma extensão artística e existencial do próprio pensamento filosófico da sua protagonista. Assim, por mais que a produção evoque questões de forte teor sentimental, a abordagem da cineasta traz um distanciamento emocional desconcertante. Tanto para Arendt como para Trotta, o falacioso entendimento de que o sentimentalismo seria uma espécie de sinônimo de humanismo é equivocado, sendo que o afastamento do pensamento mais racional representa um caminho de aproximação ao totalitarismo. A identificação intelectual e de ideais entre a diretora e a filósofa não faz com que a cinebiografia tenha um conteúdo meramente laudatório, pois Trotta não se furta de apresentar as contradições e dilemas que marcavam a vida e obra de Arendt, o que torna ainda mais inquietante o seu pensamento de forte cunho libertário em relação a ideários nacionalistas e comportamentais. A aludida identificação se traduz numa precisão cirúrgica na condução da narrativa, e que por vezes traz de forma sutil uma ironia cruel, principalmente nos momentos finais da produção, quando se acredita que Arendt se encaminha para uma possível “redenção” perante seus pares para que na conclusão só se confirme o seu status de pensadora fora do status quo dos padrões aceitáveis de normalidade e moralidade. E são nesses detalhes que Trotta qualifica seu filme em níveis transgressores semelhantes àqueles estabelecidos nos escritos de Arendt.

segunda-feira, agosto 26, 2013

Branca de Neve, de Pablo Berger ***


Em primeiro momento, poderia-se dizer que essa versão espanhola de “Branca de Neve” (2012) seria uma espécie de releitura perversa do tradicional conto de fadas. Ocorre, entretanto, que esse tipo de fábula, em suas origens, tem um forte conteúdo sombrio e que com o tempo foi recebendo um tratamento mais infantil e adocicado (vide os desenhos da Disney, por exemplo). Dessa forma, essa produção dirigida por Pablo Berger tem um certo sentido de resgate da concepção original do conto de fada em questão. Para acentuar a bizarrice de tal abordagem, o cineasta utiliza um formalismo que remete ao cinema mudo, além de rechear a obra com referências da cultura espanhola. As escolhas de Berger acabam gerando uma produção singular, principalmente pela atmosfera dúbia, em que sensualidade, morbidez, encanto e violência convivem com estranha naturalidade. Algumas cenas, devido a uma complexa simbologia, fazem lembrar trabalhos visionários de Alejandro Jodorowski, ainda que a estética construída por Berger esteja longe da genialidade delirante daquele.

sexta-feira, agosto 23, 2013

Pégaso, de Mohamed Mouftakir **


Por ser uma produção marroquina, algo não muito habitual de aparecer nos nossos cinemas, “Pégaso” (2009) pode causar curiosidade pelo seu exotismo. Por vezes, tal expectativa até se cumpre – a direção de fotografia e a direção de arte realçam alguns aspectos visuais insólitos, principalmente no que diz respeito a questões culturais que são prementes no roteiro. Isso, entretanto, acaba sendo insuficiente para dar uma efetiva envergadura artística para o filme. A narrativa é muito amarrada em convencionalismo, e o roteiro padece de um viés psicanalítico muito ostensivo – as viradas da trama são esquemáticas e o subtexto perde sua sutileza na forma com que todos os conflitos e dilemas são entregues “mastigados” para o espectador.

quinta-feira, agosto 22, 2013

Zarafa, de Remi Bezançon e Jean-Christophe Lie ***1/2


O cinema francês vem cada vez mais incorporando influências orientais em suas concepções, não só temática como na sua própria formatação (na realidade, tal fenômeno é premente em boa parte dos países do continente europeu). Fruto provável da cada vez maior massa de imigrantes que lá residem, esse direcionamento também pode ser constatado em animações como “Zarafa” (2012). A própria trama de tal produção é simbólica desse direcionamento: baseada em fatos reais, mostra a saga envolvendo a viagem do Egito para a França da primeira girafa que adentrou o território desse último país. Os diretores Remi Bezançon e Jean-Christophe Lie conseguem obter uma síntese bastante eficiente entre aventura e um tom mais reflexivo e contemplativo. A atmosfera de “Zarafa” é de um misto de inocência, exotismo, mistério, sensualidade e violência, e nesse sentido a beleza do traço da animação é fundamental – por vezes, há uma certa rusticidade no grafismo, como se evocasse o lado selvagem dos povos dos desertos na África, mas que envereda também por uma arte de toques entre o onírico e o rebuscamento visual (nesse último caso, quando a história passa a se concentrar em Paris). Essa alternância de estilos estabelece uma narrativa cativante e que situa com precisão os dilemas e contradições presentes no roteiro – a dicotomia de atração e repulsa que sempre foi a tônica das relações entre Ocidente e Oriente.

quarta-feira, agosto 21, 2013

Tese sobre um homicídio, de Hernán Glodfrid **1/2


O culto por parte de alas da crítica e do público em relação ao cinema argentino contemporâneo merecia até um estudo. Afinal, os filmes dos hermanos são frequentemente citados como exemplos a serem seguidos em termos de produção latina. Depois que o superestimado “O segredo dos seus olhos” (2009) ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, tal admiração cresceu mais ainda. O que ocorre na realidade é que o cinema argentino prima por uma certa organização: a infraestrutura de produção é razoável, os roteiros têm certa fluidez, há diversidade de gêneros cinematográficos. Mas se há um padrão de qualidade nesse lado “logístico”, em termos criativos as coisas se complicam, pois a maioria dos filmes argentinos atuais prima pelo excessivo convencionalismo. “Tese sobre um homicídio” (2013) é exemplo perfeito dessa condição. A narrativa não tem maiores sobressaltos, fotografia e edição são competentes e no elenco prevalece o inegável carisma de Ricardo Darín. Só que o filme soa mecânico demais – dá para ver com clareza a estrutura de uma obra de “bom gosto”, mas que beira o insípido. O espectador até se envolve em determinados momentos, mas fica também com aquela incômoda sensação de já viu tudo aquilo antes de forma bem mais impactante em outras obras.

terça-feira, agosto 20, 2013

Wolverine: Imortal, de James Mangold ***


Depois da patética abordagem pseudo-artística e filosófica de “O homem de aço” e do show de descaracterização e de piadinhas sem graça em “O Homem de Ferro 3”, uma obra como “Wolverine: Imortal” (2013) chega a ser alentadora dentro do gênero de adaptações de quadrinhos. Não que o filme seja exatamente uma obra-prima, mas é inegável que o diretor James Mangold faz um feijão com arroz convincente, conseguindo tanto preservar boa parte da essência das HQs originais do personagem-título quanto demonstrar competência na encenação de aventura desenfreada. Por vezes, o roteiro apresenta algumas gorduras dispensáveis, principalmente quando mostra um Wolverine (Hugh Jackman) vacilante demais nas suas forçadas lembranças de Jean Grey (Famke Janssen). No mais das vezes, entretanto, o que predomina é muita ação casca grossa. Mesmo com as limitações de violência típicas de uma grande produção, Mangold tem boas sacadas narrativas, principalmente pela opção de focar a trama no Japão (que nos gibis originais do protagonista sempre teve uma participação importante no desenvolvimento de sua personalidade), o que faz com que se tenha uma profusão de lutas, duelos de arte marcial, ataques de ninjas e afins, propiciando que Logan tenha bastantes oportunidades para colocar suas garras em ação. E a cena em que Wolverine realiza uma autocirurgia no coração é antológica no seu exagero e brutalidade. Assim, no cômputo geral, “Wolverine: Imortal” é bastante superior a “X-Men Origens: Wolverine” (2009) e cria uma razoável expectativa para a próxima aventura dos X-Men a ser transposta para as telas, “Dias de um futuro esquecido” (onde o baixinho canadense terá papel fundamental).

segunda-feira, agosto 19, 2013

Amor pleno, de Terrence Malick ****


As concepções artísticas do diretor norte-americano Terrence Malick parecem se tornar cada vez mais personalíssimas e radicais com o passar dos anos. Em “Amor pleno” (2012) isso fica muito evidente, pois a estrutura narrativa rompe com os padrões tradicionais e obedece a uma lógica muito própria – ela se desenvolve como um fluxo de consciência, onde o subjetivismo é primordial. Dentro desse conceito, a obra segue numa linha semelhante à “A árvore da vida” (2011), a obra anterior de Malick, em que as inquietações intimistas das personagens se expandem para uma conotação mais ampla, ganhando uma dimensão existencialista e épica. Nesse sentido, o formalismo barroco e difuso do filme não é apenas um adereço estético; na realidade, ele dá sentido às inquietações metafísicas e filosóficas da trama. O filme, assim, não é um mero pretexto para se contar uma história. O que se propõe ao espectador é uma imersão sensorial, em que a profusão de imagens e sons faz com que se entre de cabeça na percepção atormentada das personagens. Nesse contexto, mesmo aqueles princípios considerados básicos de um roteiro se dissolvem – situações e figuras aparecem e desaparecem de acordo com as necessidades difusas desse olhar subjetivo. As ousadias e complexidades desses padrões estéticos e temáticos se materializam numa direção de fotografia espetacular, em que planos-sequência, enquadramentos inusitados e os tons crepusculares compõem uma plasticidade arrebatadora, algo entre o onírico e o celestial.

sexta-feira, agosto 16, 2013

Boca, de Flavio Frederico ***


Os moldes clássicos das cinebiografias de bandidos famosos representam a cartilha básica de “Boca” (2010), obra que focaliza a trajetória Hiroito Joanides, que por um bom tempo foi o grande rei do crime na Boca do Lixo (SP). O filme de Flavio Frederico parece ter como modelo de estrutura narrativa o clássico “Os bons companheiros” (1990), de Martin Scorsese – uma dinâmica narrativa contundente ao focalizar a ascensão e o auge do personagem-título. O roteiro não se interessa por maiores minúcias psicológicas na composição de situações e personagens, enfatizando principalmente o lado icônico da história, fazendo por vezes com que Hiroito mais pareça uma força da natureza do que um indivíduo. Nessa escolha de abordagem, é inegável que Frederico demonstra naturalidade na coreografia nas cenas de ação e violência, além da reconstituição de época puxar para uma estética que remete a um imaginário da época focada (décadas de 60 e 70) em detrimento do realismo. Na parte da produção que retrata a decadência do protagonista, a atmosfera de decadência e a tensão dramática são convincentes, até porque a trama não se restringe a um caráter puramente maniqueísta. A atuação de Daniel Oliveira no papel principal também é um trunfo para “Boca”: sua atuação é sanguínea e com nuances expressivas, fazendo com que Hiroito transite com desenvoltura entre a brutalidade assustadora e um surpreendente carisma.

quinta-feira, agosto 15, 2013

O concurso, de Pedro Vasconcelos *


A profusão de comédias que vem aparecendo nos cinemas nos últimos anos, principalmente aquelas produzidas pela Globo Filmes, acaba gerando a impressão de uma espécie de movimento, algo como se fosse uma onde de “neo-chanchadas”. Apesar de focarem principalmente num lado popularesco e comercial, alguns desses filmes até apresentam inquietações temáticas e formais, ainda que de forma discreta. Nessa direção, dá para lembrar “Os penetras” (2012) e “Vai que dá certo” (2013). Mas há produções, entretanto, em que o resultado é rasteiro demais em termos de ruindade, o que é o caso justamente de “O concurso” (2013). Dá para perceber no roteiro algumas tentativas de trazer uma visão crítica de determinados dilemas prementes da sociedade brasileira contemporânea no meio de todos os quiproquós da trama, mas a direção de Pedro Vasconcelos é tão mambembe que joga todas as boas promessas no lixo. Qualquer cena que envolva ação, algum movimento ou disposição de elementos no quadro é tão desajeitada que sugere um amadorismo constrangedor. Além disso, Vasconcelos demonstra péssima mão para direção de atores –as interpretações oscilam entre o inexpressivo e o risível. É provável que com toda máquina de marketing e pela estrutura “televisiva” de sua narrativa “O concurso” vai ser sucesso de bilheteria, mas será incapaz de se grudar na mente do espectador como experiência cinematográfica memorável (a não ser para alguns possíveis apreciadores de tosquices).

quarta-feira, agosto 14, 2013

O cavaleiro solitário, de Gore Verbinski ***1/2

Eu tenho a crença de que “Os imperdoáveis” (1992) marcou o fim dos faroestes como gênero cinematográfico contemporâneo, no sentido de que tanto em termos temáticos como formais não haveria mais o que acrescentar. O que veio depois consistiu basicamente em reciclagens e pastiches. Nesse último quesito é que pode ser classificado “O cavaleiro solitário” (2013). Apesar de sua trama se desenvolver dentro daquele período que foi objeto da grande parte das produções do gênero, a abordagem do diretor Gore Verbinski beira o paródico – está mais para um espalhafatoso filme de aventura moderno que se passa naquela época. A atmosfera da obra varia entre o exagerado e o grotesco. Os clichês dos faroestes estão todos ali, mas retorcidos de forma até perturbadora. Não é de estranhar, portanto, que a produção tenha sido um grande fracasso comercial; há doses de violência, perversidade e morbidez maiores que o habitual nos blockbusters. Tal escolha de direcionamento é adequada para o subtexto bastante crítico do filme em relação à história dos Estados Unidos na época do desbravamento do Oeste (exploração econômica, massacre de índios). Na verdade, pode-se dizer que o clima de “O cavaleiro solitário” é crepuscular, semelhante aos faroestes mais cínicos e brutais de Sergio Leone e Sam Peckinpah. Nesse sentido, a figura do índio Tonto (Johnny Depp) é uma síntese aproximada do espírito do filme: decadente, sardônico e melancólico. Tais idiossincrasias aliadas a um senso alucinado de Verbinski para cenas de ação inverossímeis geraram uma obra singular e que provavelmente acabará merecendo uma reavaliação mais cuidadosa por parte de crítica e cinéfilos daqui alguns anos.

terça-feira, agosto 13, 2013

Renoir, de Gilles Bourdos ***


Dá para traçar uma diferenciação existencial entre as respectivas artes de pai e filho Renoir. O pai Auguste, pintor expressionista, dava uma ênfase para aquilo que era belo e agradável aos olhos. Já o filho Jean, cineasta, teve como marca registrada em sua filmografia uma visão irônica, por vezes cínica, outras vezes amarga, das relações humanas. No tratamento formal de “Renoir” (2012), filme de conotação biográfica, parece que a preferência foi pela abordagem do patriarca. A fotografia luminosa, que valoriza tanto a beleza da natureza onde se situa o sítio do pintor, onde se desenvolve grande parte da ação, quanto a voluptuosidade do jovem corpo de Andrée (Christa Teret), modelo do artista, mostra uma espécie de sintonia espiritual com a própria técnica pictórica de Auguste (Michel Bouquet). Mas o filme não se resume a uma mera exaltação do belo e do bucolismo. Quando Jean Renoir (Vincent Rottiers) entra em cena, aparece também o elemento de tensão da produção, em que o idilismo estético de Auguste se confronta com a dura realidade da guerra que Jean traz no próprio corpo. Por mais que o envolvimento romântico entre Jean e Andrée prevaleça em alguns momentos, a realidade é que a tônica central do filme está no embate silencioso e sutil, mas contundente, entre pai e filho. Os diálogos entre eles trazem um rico subtexto que sintetizam de forma admirável os dilemas e contradições de uma época. Os apreciadores de cinema que esperam aquele espírito sardônico típico das produções mais estimadas de Jean Renoir podem se decepcionar, mas mesmo assim “Renoir” é uma obra que transcende o simples registro despersonalizado de fatos históricos.

segunda-feira, agosto 12, 2013

Ferrugem e osso, de Jacques Audiard ***1/2


A estrutura da narrativa de “Ferrugem e osso” (2012) é a de um melodrama convencional. O que faz a diferença no filme é a força da encenação estabelecida pelo diretor Jacques Audiard. A trama traz elementos temáticos diversos e que por vezes beiram o insólito: lutas de vale-tudo, treinadores de baleias, deficientes físicos, questões de imigração, conflitos familiares. No conjunto, entretanto, todos esses elementos acabam ganhando uma unidade surpreendente na forma com que o roteiro bem estruturado os une. Como nas obras anteriores do mesmo diretor, “De tanto bater meu coração parou” (2005) e “O profeta” (2009), um dos trunfos da obra está na conjunção audiovisual proposta pela edição – a excelente direção de fotografia ganha impacto ainda maior com a forma com que a música se insere em cena. Audiard consegue também uma equilibrada alternância de atmosferas: nas seqüências mais intimistas, a tensão dramática é sutil e valoriza bastante as arejadas interpretações de seu elenco, enquanto nos momentos envolvendo violência e sexo, a ação é coreografada com vigor e belo detalhismo cênico.

sexta-feira, agosto 09, 2013

A estrada para Nod, de M.A. Littler ***


A influência do cineasta norte-americano Jim Jamursch é capital no cinema de M.A. Littler. “A estrada para Nod” (2007) talvez seja o filme do diretor alemão que mais deixa evidente tal influência. A direção de fotografia em preto-e-branco atmosférico, a narrativa minimalista e rarefeita, músicos como atores nos principais papéis, comicidade idiossincrática, a trilha sonora puxada para um blues climático, a abordagem emocional distanciada – todos esses elementos parecem nos remeter àquelas produções cult de Jamursch dos anos 80. Mas Littler consegue dar vigor e uma certa cara própria para essas referências. Na aparência, o filme se vincula ao gênero policial, mas os preceitos básicos estão ali mais como um esqueleto a sustentar um pessoal exercício de estética. O roteiro tem um caráter improvisado e irregular por vezes, mas é inegável que o conjunto audiovisual tem um efeito sensorial sedutor em determinadas passagens.

quinta-feira, agosto 08, 2013

Zownir: Homem radical, de M.A. Littler ***1/2


Como pode ser observado em outros filmes de M.A. Littler já comentados neste blog, o referido diretor alemão se interessa bastante pelo universo contracultural. Assim, é natural que a obra do fotógrafo, cineasta e escritor Miron Zownir tenha lhe chamado à atenção. “Zownir: Homem radical” (2006) é um tributo visceral de Littler para o seu biografado. A arte de Zownir tem como influência fundamental o preceito “do it yourself” do movimento punk rock. Assim, o seu trabalho sempre foi marcado pelo registro cru da sordidez dos subterrâneos culturais e mesmo existenciais, mas ao mesmo tempo extraindo disso tudo uma espécie de lirismo. Litler, que já havia demonstrado a sua admiração por artistas marginais e obscuros em obras como “Voodoo Rhythm – O gospel do rock’n’roll primitivo” (2005) e “The Dead Brothers – A morte não é o fim” (2006), oferece uma moldura estética em perfeita sintonia com as brutais concepções artísticas de Zownir: direção de fotografia preto-e-branco (o que até emula os instantâneos captados pelo artista), edição ágil combinando os depoimentos de Zownir com trechos do seu trabalho (onde teoria, vivência e prática se mostram ligadas de forma intrínseca), ambientação sombria. Assim, ao focalizar a história pessoal de um artista multimídia tão peculiar, Littler realiza também uma cortante radiografia do papel da cultura underground na contestação dos valores da sociedade ocidental.

quarta-feira, agosto 07, 2013

A boneca, o gordo e eu, de Axel Ranisch ***


A influência de Aki Kaurismäki na produção alemã “A boneca, o gordo e eu” (2012) é evidente em cada fotograma. O diretor Axel Ranisch, em seu longa de estreia, segue os preceitos do cineasta finlandês com dedicação: narrativa minimalista, abordagem emocional distanciada, personagens outsiders, comicidade amarga, uso constante de planos fixos, trilha sonora marcada por uns rocks esquisitos. Apesar da pouca originalidade, o filme convence – a narrativa é envolvente, direção de fotografia e edição de caráter simples e sóbrio, os atores são carismáticos nas suas caracterizações idiossincráticas. É fato também que é uma obra que pouco transcende, mas para um primeiro longa o resultado é satisfatório. Agora é esperar para ver se Ranisch em seus próximos trabalhos conseguirá sair da sombra de Kaurismäki.

terça-feira, agosto 06, 2013

Headlock, de Johan Carlsen ***


A condução da narrativa em “Headlock” (2011) não poderia ser mais germânica na sua dureza e sobriedade. Ao focar o cotidiano cinzento de uma mãe solteira proletária e simplória e de seu filho adolescente e problemático, alvo constante de bullying na escola, a produção adota um registro de tinturas realistas, onde não há muito espaço para soluções fáceis ou alguma redenção para os seus protagonistas. O diretor Johan Carlsen se permite sutis toques de ironia e perversidade ao inserir durante a trama breves seqüências de teor fantástico, relacionadas a delírios e sonhos de personagens, que em contraste com o formalismo de influência documental que predomina durante maior parte da trama acaba causando um efeito contrastante perturbador. Assim, mesmo não tendo maiores voos estéticos, é uma obra curiosa na sua crueza e crueldade ao expor algumas mazelas da sociedade ocidental contemporânea.

segunda-feira, agosto 05, 2013

The Bambi Molesters: Uma noite em Zagreb, de M.A. Littler ***1/2


Os filmes do diretor alemão M.A. Littler são marcados pelo conceito “fora do tempo e do espaço” – mesmo quando situados numa determinada localidade ou num período delimitado, o particular estilo do cineasta faz parecer que tudo está ocorrendo num universo paralelo. O filme-concerto “The Bambi Molesters: Uma noite em Zagreb” (2012) é um exemplar contundente desse preceito. Os Bambi Molesters são uma banda de surf music instrumental da Croácia, sendo que o documentário em questão é o registro na íntegra de uma apresentação do grupo na capital de seu país. Assim, a sensação de estranhamento é uma constante na produção, afinal eles tocam um estilo musical retrô norte-americano e têm o seu show documentado por um alemão! E nem tem mar ou surfistas em Zagreb... Aos poucos, entretanto, percebe-se que nada é tão estanque e que conceitos territoriais e estéticos vão se misturando sem cerimônia. A música dos Bambi Molesters não se limita a uma simples recriação de um gênero. Eles oferecem uma ambientação própria, algo entre o soturno e o pós-punk e com toques folk. A forma com que Littler filma a apresentação é uma extensão não só das suas concepções próprias de cinema como do próprio caráter difuso e mestiço da música da banda. O cineasta consegue captar com sensibilidade uma atmosfera gótica e sexy, o que fica também evidente nas eventuais tomadas externas com os Molesters caminhando pela cidade, cuja arquitetura clássica reforça a sensação de atemporalidade. Os belos jogos de alternância de câmeras fazem lembrar a obra-prima de Scorsese no gênero documentário musical, “O último concerto de rock” (1978). Enfim, o encontro de Bambi Molesters e Littler acaba gerando uma pérola underground típica desses tempos esquisitos em que as definições culturais ficam cada vez mais longe dos rótulos e dos padrões de “normalidade”.

sexta-feira, agosto 02, 2013

O homem de aço, de Zack Snyder *


Forçando um pouco a barra, dá para dizer que “O homem de aço” (2013) compõe junto a “300” (2006) e “Watchmen” (2009) uma espécie de trilogia dos quadrinhos do diretor Zack Snyder. Bem, do jeito que estão as coisas, é provável que daqui poucos anos deixe de ser trilogia... Essa trindade representa uma vertente equivocada de se verter HQs para o cinema. Em tal concepção, basta combinar muitas cenas com pancadaria, bastante barulho e uma atmosfera pós-moderna e pronto: aí está um bom produto para agradar fãs e neófitos. Na realidade, o que se discute aqui não é o fato de tais versões serem fieis ou não à mídia que lhes deram origem. O que incomoda nessas produções é o fato de que como obras cinematográficas são experiências frustrantes. Nessa transposição mais recente das aventuras do Superman para as telas, Snyder mostra que não há limites para a sua falta de traquejo. O filme se pretende como uma espécie de fusão entre aventura existencialista e ação desenfreada e na realidade não se mostra satisfatório em nenhuma dessas direções, quanto mais na intenção de que elas se misturem. No final das contas, parece uma colcha de retalhos de idéias e referências que são muito mal-costuradas, colocadas na trama mais intenção de soar “contemporâneo” do que por inspiração. Por vezes, Snyder procura emular aquele tom metafísico e difuso de Terrence Malick, principalmente na abertura que parece copiar o estilo de “A árvore da vida” (2011), mas está muito longe de ter a classe estilística de Malick e beira o patético na sua pretensão de soar “artístico”. Toda aquela seqüência que se desenvolve em Kripton dá a impressão de um refugo da franquia “Guerra nas estrelas”. E o cerne da questão dos excessos de violência e destruição nas partes de ação de “O homem de aço” não está no lado moral, mas sim na forma burocrática e sem criatividade que Snyder conduz tais cenas. Tais opções do cineasta configuram a grande contradição do filme (a mesma que já havia marcado o irregular “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”): para uma obra que se pretende tão séria e sombria, o resultado final acaba soando alienado e infantil (nesse último caso, no pior sentido do termo).

quinta-feira, agosto 01, 2013

O que traz boas novas, de Phillipe Fardeau ***1/2


O fascinante em uma produção como “O que traz boas novas” (2011) é a sua abordagem humanista e universal – a partir de um melodrama de contornos que beiram o intimista, a obra avança sobre questões de um espectro social muito maior. A trama se foca basicamente em dois tópicos chaves: as conseqüências do suicídio de uma professora em pleno ambiente escolar e o processo de adaptação do educador substituto, um imigrante argelino, no colégio. A partir disso, o roteiro traz à tona uma série de conflitos e dilemas emblemáticos dos tempos contemporâneos, tanto no que se refere à relação entre alunos e professores como entre “nativos” e imigrantes. Ainda que o filme trafegue por uma estrutura narrativa típica de melodrama convencional, o diretor Phillipe Fardeau propõe um tratamento temático bastante contundente, não se furtando em alguns momentos de construir uma atmosfera um tanto sufocante, sem que se perca, entretanto, a sutileza necessária para se explorar as complexas nuances de algumas das relações humanas que se estabelecem ao longo do filme. A elegância da direção de Fardeau faz com que “O que traz boas novas” tenha uma condução dramática sóbria e coerente, conciliando de forma admirável um certo cerebralismo ao radiografar as distorções do sistema educacional no mundo contemporâneo e um toque sentimental fundamental na criação de empatia com os personagens. A emocionante cena de conclusão sintetiza com perfeição as intenções de Fardeau e seu filme.