quinta-feira, março 25, 2010

Canção de Baal, de Helena Ignez 1/2 (meia estrela)


Helena Ignez foi uma musa e atriz expressiva do cinema brasileiro em obras clássicas como “Bandido da Luz Vermelha” (1968) e “Os Monstros de Babaloo” (1970). Como cineasta, entretanto, mostra-se muito distante do brilhantismo da sua trajetória pregressa, conforme pode se atestar no desastroso “Canção de Baal” (2009). A encenação baseada no original teatral de Bertolt Brecht exala um irritante amadorismo. A fotografia mal consegue sustentar algum enquadramento decente. A narrativa é trôpega, vacilante, mais parecendo um teatro filmado. A inserção de trechos de áudio com depoimentos de Brecht é gratuita, buscando mais legitimidade intelectual para uma obra tão falha. Talvez o que possa garantir algum interesse para a produção seja a beleza do texto de Brecht e algumas atuações do elenco. Tais méritos, entretanto, são insuficientes para qualificar “Canção de Baal” como um filme minimamente interessante ou Ignez como diretora relevante.

segunda-feira, março 22, 2010

A Todo Volume, de David Guggenheim ****


Os primeiros minutos de “A Todo Volume” (2008) fazem pressupor que se verá um tratado sobre a guitarra elétrica. Nas tomadas iniciais, Jack White, líder dos White Stripes e dos Raconteurs, fabrica uma rústica versão do que seria uma guitarra, e logo após nos créditos há closes ostensivos e apaixonados sobre os corpos de tais instrumentos em ação. Ao longo do documentário, entretanto, pode-se constatar que o verdadeiro foco da atenção é o rock and roll, traçando de forma fascinante a origem e evolução do gênero.

Os protagonistas de “A Todo Volume” são os guitarristas de bandas de relevo: Jimmy Page, do Led Zeppelin; The Edge, do U2; e o já referido Jack White. Tais grupos representam facetas diferentes e também complementares dentro do rock. O hard rock puxado para o blues do Led Zeppelin é uma das influências primordiais do punk blues garageiro dos White Stripes e dos Raconteurs. Já o U2, em sua origem, foi cria do movimento punk e na sua trajetória incorporou elementos diversos, indo do gospel ao eletrônico. Dentro desse contexto de estilos variados, “A Todo Volume” não direciona sua atenção para os detalhes técnicos e as capacidades virtuosísticas dos instrumentistas que são personagens do filme. Para o diretor Duggenheim, o que interessa é mostrar como a guitarra se insere em termos de composição e arranjo para a música. Tanto para o cineasta como para Page, The Edge e White, o instrumento é um meio, e não um fim em si. Tanto que em algumas seqüências de “A Todo Volume”, White aparece tocando piano ou ouvindo um compacto do bluesman Son House que consiste apenas de palmas e voz, apontando como sua canção favorita de todos os tempos. Assim, apenas confirma aquela velha máxima: no verdadeiro rock and roll, o que menos interessa é o “tocar bem” (ou seja, a técnica), valendo mesmo a intensidade e a criatividade.

Guggenheim filma seus protagonistas em depoimentos individuais e interagindo ora em conversas ora tocando juntos. Os trechos com as falas de Jimmy Page são os mais emocionais. Nas suas recordações, narra a angústia de quando era um requisitado músico de estúdio, mas sentido a necessidade de encontrar um veículo para manifestar suas reais obsessões artísticas. Ao ser questionado sobre qual seria uma das suas inspirações, Page acaba tendo um dos momentos mais luminosos de “A Todo Volume”: coloca na vitrola um velho compacto de “Rumble”, de Link Wray (canção utilizada também em “A Balada do Pistoleiro” e “Pulp Fiction”), tema instrumental lento, pesadão e barulhento, fazendo movimentos de guitarra imaginária e rindo como um garoto. The Edge rende momentos mais sóbrios e reflexivos, contando como fatos sociais importantes (os conflitos políticos e armados na Irlanda, principalmente) interferiram na musicalidade do U2 e deram origem a algumas da mais conhecidas canções da banda. Já White ganhou as seqüências mais divertidas e ousadas esteticamente do documentário. Guggenheim concebeu recriações cômicas da história do rapaz, com destaque do seu crescente envolvimento com música e da sua constante procura pelas raízes do rock. O próprio White atua como seu intérprete, além de ganhar uma versão infantil sua com quem até faz uma inusitada “jam session”.

Além das entrevistas, Guggenheim se vale de um rico e farto material de imagens e sons para ilustrar sua viagem pelas seis cordas e pelo rock. Há registros fílmicos preciosos como os de Jimmy Page tocando em um show de calouros com 14 anos de idade ou atuando ao lado dos clássicos Yardbirds, além de um primitivo clip do U2 com seus membros recém saindo da puberdade. De registros mais recentes, destaque absoluto para um concerto dos Raconteurs, com White tocando até sangrar as mãos e sujar a sua guitarra antes imaculadamente branca.

“A Todo Volume” não é apenas uma animada (e, por que não?, didática) aula sobre o rock and roll. É também uma deslavada declaração de amor a um gênero musical que, apesar de tão criticado e vilipendiado, é ainda decisivo no imaginário cultural de milhões de pessoas.

P.S.: há um momento em “A Todo Volume” em que Jimmy Page mostra o casarão onde reside, local em que o Led Zeppelin gravou o seu célebre quarto disco, com Page destacando a ampla sala em que John “Bonzo” Bonham teria feita o imponente registro de bateria da canção “When The Levee Break”. Ocorre que o U2 reproduziu digitalmente essa peculiar sonoridade da bateria de Bonham na música “Bullet The Blue Sky” do álbum “The Joshua Tree”. Seria apenas coincidência a menção de Jimmy Page?

sexta-feira, março 19, 2010

Sede de Sangue, de Chan-wook Park ****

Um filme de vampiro pela mão do diretor de “Old Boy” (2003) dificilmente cairia no convencionalismo. O grande barato de “Sede de Sangue” (2009) é justamente a combinação entre elementos tradicionais das obras de vampirismo com as concepções formais e temáticas de Park. Assim, tem-se uma obra recheada de horror e tensão, mas que sempre traz dentro de si uma estranha ironia. Park traz para um primeiro plano aspectos que geralmente são apenas esboçados em outras produções do gênero. Para o protagonista Sang-hyeon, a transformação em vampiro tem um aspecto libertador – antes um padre contido, como uma criatura da noite adquire uma vitalidade impetuosa, ganha até a capacidade de voar e busca avidamente o sexo. Com o tempo, entretanto, o seu hedonismo exige um preço, e a sua sede por sangue revela-se cada vez mais doentia. Park explora com habilidade esse conceito do vampirismo como patologia, chegando a lembrar o terror biológico do clássico “A Mosca” (1986) de David Cronenberg.

Park traz também para “Sede de Sangue” uma visão perturbadora sobre o universo feminino. No filme, o papel das mulheres é de uma força misteriosa, maléfica e desagregadora. O frágil equilíbrio que Sang-hyeon atinge na sua existência como vampiro, sugando sangue por tubos de vítimas em coma, é destroçado quando ele “contamina” a sua amante Tae-joo com a sua maldição. A moça transforma-se em uma sugadora de sangue contumaz, sem nenhum freio moral para escolher as suas vítimas.

A sucessão de desgraças que afligem Sang-hyeon faz de “Sede de Sangue” uma esquisita parábola sobre culpa e redenção, o que faz ainda mais sentido com o fato do protagonista ser um padre. A descoberta de uma vida cheia de prazeres é interrompida com a constatação que tais prazeres provêm da desgraça alheia. A culpa configura-se em tormentos esquisitos e embaraçosos, indo de olhares de desaprovação de uma velha catatônica até as grotescas aparições de um fantasma no meio do ato sexual.

Park embala a sua saga vampiresca e religiosa com uma apurada estética cinematográfica. A direção de fotografia tem um estilo limpo, quase asséptico, acentuando ainda mais a violência sangrenta que constantemente salta na tela. As seqüências de ação são um primor em termos de execução, com um brilhante trabalho de trucagens. As cenas com os amantes vampiros voando entre os prédios, por exemplo, têm um apelo visual extraordinário.

quinta-feira, março 18, 2010

Os Dispensáveis, de Andreas Arnstedt *1/2


Baseado em uma história real, a produção alemã “Os Dispensáveis” (2009) até mantém em algumas seqüências um certo tom seco na sua narrativa, principalmente no seu terço inicial. Com o passar do tempo, entretanto, vai caindo em simplificações e redundâncias que o tornam superficial e pouco atrativo. A subtrama do menino que quer tocar blues para desgosto do pai, por exemplo, beira o simplório na sua encenação. Mesmo o recurso de mostrar a linha temporal picotada, misturando passado e presente, mostra-se mal aproveitado e pouco acrescenta em termos formais.

quarta-feira, março 17, 2010

Uma Mulher é Uma Mulher, de Jean-Luc Godard ****


Como já dito no post anterior, o personagem principal nos filmes de Jean-Luc Godard é o próprio cinema. Em “Uma Mulher é Uma Mulher”, tal característica fica evidente na extraordinária manipulação da faixa sonora. Fatos e diálogos corriqueiros são marcados por intervenções musicais bombásticas, além de que em determinadas seqüências a trilha aparece ou é cortada de forma abrupta. Godard faz questão de explicitar que o seu cinema não é comprometido com encenações naturalistas e nem se acondiciona a gêneros específicos. A trama básica, a princípio dramática (stripper que deseja ter um filho do namorado), recebe um tratamento irônico e distanciado, formatando-se quase como uma distorção de comédia romântica com toques de musical. A desconstrução formal de Godard, entretanto, não cai no mero experimentalismo gratuito. “Uma Mulher é Uma Mulher” apresenta uma narrativa leve e lúdica, com Godard fazendo da sua estética um exercício libertador para o olhar.

terça-feira, março 16, 2010

O Desprezo, de Jean-Luc Godard ****


Na obra de Jean-Luc Godard, na grande maioria das oportunidades, o personagem e a temática principais é o próprio cinema, assim como a definição do gênero é complicada – a melhor classificação parece ser de que o hipotético filme seria “godardiano”. Dentro desse contexto, “O Desprezo” (1963) quase chega a ser a uma exceção. Godard esboça um flerte com o drama intimista, colocando como foco mais ostensivo a dissolução progressiva do casamento do roteirista Paul (Michel Picolli) e sua esposa Camille (Brigitte Bardot). Algumas seqüências que mostram os diálogos entre o casal representam, talvez, o que mais tenha se aproximado de uma linguagem naturalista por parte do diretor francês em sua carreira. Essa aproximação com o cinema mais convencional, contudo, é ilusória. Godard envenena várias cenas com recursos estéticos muito particulares (como demonstra o uso irônico de recordatórios acelerados), além de fazer a trama tornar-se cada vez mais alegórica com o passar do tempo. O fracasso de Paul como marido também é o seu fracasso como artista não disposto a abrir concessões. A desilusão de Camille com o marido é alusiva à descrença das platéias na possibilidade de um cinema mais arrojado e artístico. As figuras do produtor norte-americano canalha e sedutor (Jack Palance) e do diretor de cinema culto e cínico (Fritz Lang interpretando a si mesmo) reforçam ainda mais a simbologia ideológica de Godard. Por fim, o que era para ser uma obra versando sobre as relações humanas converte-se brilhantemente em uma reflexão sobre o fazer cinematográfico.

segunda-feira, março 15, 2010

A Ilha do Medo, de Martin Scorsese ****


Tanto no livro como no filme “Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano”, Martin Scorsese deixou claro a sua paixão pela filmografia B dos anos 40 a 60 dos Estados Unidos. Para o cineasta, os filmes dessa linhagem representavam a possibilidade e a concretização de ousadias formais e temáticas que eram praticamente inviáveis nas produções mais custosas dos grandes estúdios. “A Ilha do Medo” (2010), filme mais recente de Scorsese, representa uma releitura fascinante desse universo do cinema B. Em termos comparativos, seria como um filme B daquela época ganhasse o orçamento de um filme A.

Tendo como mote central de sua trama uma investigação policial, a verdade é que logo nas tomadas iniciais de “A Ilha do Medo” o que menos importará será saber a “verdade” do que aconteceu ou de quem é o culpado. Os cortes entre as cenas na chegada da barca à Shutter Island bem como no diálogo entre os agentes do FBI Teddy (Leonardo DiCaprio) e Chuck (Mark Ruffalo) são quase desconexos e deixam claro um fato primordial para o filme: o que veremos dali para a diante é o desenrolar da história sob o olhar transtornado de Teddy. Nessa perspectiva, sabe-se que nada é o que parece.

Em “A Ilha do Medo”, a tensão psicológica não vem de uma consistência e verossimilhança de situações e comportamentos, mas sim de um olhar progressivamente distorcido daquilo que poderia ser real. Assim, tudo no filme é exagerado, beirando o barroco. A música incidental, sempre opressiva e sinistra, acompanha até atos prosaicos. Os loucos de um asilo psiquiátrico parecem sempre prontos a pular no pescoço do protagonista. Uma tempestade se configura como se fosse o fim do mundo. Shutter Island não é apenas onde se localiza um hospício, mas sim o próprio inferno de Teddy. Mesmo quando o onírico entra em cena, suas fronteiras com o mundo desperto são muito tênues: realidade, sonhos, lembranças e delírios fundem-se de forma perturbadora.

Para materializar esse mundo de pesadelo, Scorsese lança mão febrilmente de uma gama de truques e técnicas. Como já mencionado anteriormente, a montagem abusa de cortes bruscos que emulam uma mente em ruptura. Há planos-sequência que revelam uma obsessão com o detalhe, como se da atenção constante em todos os elementos de cena dependesse a sobrevivência de Teddy. Os jogos de claro e escuro remetem a uma atmosfera gótica e sufocante – nesse sentido, são magníficas as cenas de Teddy percorrendo as masmorras do hospício tendo como iluminação apenas a luz escassa e breve de fósforos acesos. A caracterização dos personagens também é primorosa ao manter a permanente sensação de dubiedade de “A Ilha do Medo”: os médicos Cawley (Ben Kingsley) e Naehing (Max Von Sydow) tanto podem ser profissionais dedicados como aparentarem serem maquiavélicos gênios do mal, Chuck ostenta um eterno ar ambíguo nas suas intenções e Teddy é o próprio retrato da desintegração psíquica.

Essa riqueza formal que Scorsese põe em prática na sua concepção é que afasta “A Ilha do Medo” a milhões de anos luz da grande maioria das películas de suspense convencionais que dominam o cinema norte-americano na atualidade. Mais do que se limitar a um jogo de adivinhações, Scorsese realiza uma extraordinária viagem estética que recria e homenageia obras fundamentais e obscuras como “Paixões Que Alucinam” (1963) e “A Morte Num Beijo” (1955).

sexta-feira, março 12, 2010

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz ***


Há em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009) uma proposta estética ousada e instigante. Os diretores Marcelo Gomes e Karim Aïnouz combinam rústicas tomadas documentais e fotografias com um texto ficcional. O que dá sentido às imagens aparentemente aleatórias é a narração do personagem principal, um geólogo que faz uma viagem de quase um mês pelo sertão nordestino para pesquisar regiões que serão alagadas devido à transposição de um rio. O monólogo do protagonista oscila de forma desconcertante das descrições objetivas e profissionais que faz do seu projeto até confissões e impressões pessoais sobre os locais que visita e a confusão emocional que sente. Recém-separado da companheira, faz da viagem uma espécie de expurgo de frustrações e desejos. Conversando com os nativos, divertindo-se com prostitutas e contemplando o tempo passar lenta e inexoravelmente, ele faz da sua jornada pelas estradas poeirentas uma espécie de reavaliação existencial.

A câmera em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” é sempre subjetiva – o que as imagens retratam é aquilo que está sob o olhar do geólogo. A intenção é compartilhar de forma constante as sensações do personagem em questão: tédio, frustração, diversão, prazeres fugazes, melancolia, expectativas. Essa escolha formal é arriscada, afinal, nem tudo que o rapaz vê pode ser interessante, mas é coerente com a concepção temática da obra. A banalidade, o corriqueiro e o enfado da rotina do viajante, aos poucos, formam um todo envolvente e que adquire sentido na enigmática e poética seqüência final do filme.

quinta-feira, março 11, 2010

Fando e Lis, de Alejandro Jodorowsky


Mesmo não atingindo os mesmos patamares delirantes de “El Topo” (1971) e “A Montanha Sagrada” (1973), “Fando e Lis” é mais uma obra exemplar do cinema perturbador de Alejandro Jodorowsky. O diretor mistura referências místicas e psicológicas em uma obra que evoca uma versão distorcida de “A Estrada da Vida” (1954), produção clássica de Federico Fellini, principalmente pela relação de sadismo que se estabelece entre os protagonistas do título. A paralítica Lis (Diana Mariscal) parece descendente direta de Gelsomina (Giuletta Masina), a “heroína” do filme de Fellini, ambas personagens simbólicas na sua pureza que são tragadas pela violência transtornada de seus respectivos companheiros. Jodorowsky trabalha com brilhantismo também o conceito da viagem circular, o que acentua ainda mais o clima de pesadelo reinante em “Fando e Lis”. Nesse sentido, não há como não lembrar “A Estrada Perdida” (1997), de David Lynch, outra película que brincava com idas e vindas na narrativa.

Invictus, de Clint Eastwood ***1/2


Alguns comentários recorrentes sobre “Invictus” (2009) colocam o mesmo como uma obra menor de Clint Eastwood, além de reclamarem do tom sentimental e óbvio de algumas passagens. É claro que a produção não está no mesmo nível de obras-primas de Eastwood como “Josey Wales” (1976), “Os Imperdoáveis” (1992) ou “Sobre Meninos e Lobos” (2003). Também é inegável que determinadas seqüências pecam pela obviedade e redundância, principalmente pela trilha sonora incidental burocrática e a ingenuidade discursiva de parte das falas de Mandela (Morgan Freeman em interpretação excessivamente indulgente). Mesmo assim, “Invictus” é uma obra de impacto acima da média. Eastwood tem momentos fenomenais de domínio da narrativa, como aquele plano inicial em que se faz o contraste entre um treino de rugby de um time de brancos e uma partida de futebol entre jovens negros em um campo precário. A forma com que o cineasta filma as partidas decisivas de rugby também é outro triunfo artístico, com Eastwood entrelaçando diversas tomadas entre lances épicos no campo e o efeito sobre as arquibancadas e a própria cidade (os detalhes das ruas vazias e do menino de rua que confraterniza com os motoristas de táxis são prodigiosos). E mesmo no aspecto temático de “Invictus”, por mais que haja simplificações sobre a complexa situação social da África do Sul, predomina uma visão humanista até profunda sobre as contradições e dificuldades que marcam as relações raciais no país.

terça-feira, março 09, 2010

A Montanha Sagrada, de Alejandro Jodorowsky ****


Assim como “El Topo” (1971), “A Montanha Sagrada” (1973) é mais uma obra a desvendar o universo particular de Alejandro Jodorowsky. É uma produção ambiciosa nas suas intenções, o que faz com que a mesma seja confusa e irregular. Na primeira parte do filme, a trama apresenta um misto de reprodução sacrílega da via crucis e uma visão ácida e crítica sobre os impérios coloniais e a vulgaridade da sociedade ocidental moderna. Posteriormente, “A Montanha Sagrada” assume uma postura quase didática ao expor preceitos da tarologia e outros princípios místicos. Jodorowsky, em alguns momentos, não consegue equacionar com equilíbrio esses aspectos diferentes da narrativa. Mesmo assim, a película fascina pela beleza e o encanto de suas imagens expressivas e heréticas. O cineasta obtém um efeito sensorial notável com alguns de seus efeitos e trucagens, além de combinar fantasia e metalinguagem com muita criatividade.

segunda-feira, março 08, 2010

El Topo, de Alejandro Jodorowsky ****


É difícil tentar definir “El Topo” (1971) sem cair em reducionismos. Pode-se citar prováveis (ou discutíveis) referências, mas mesmo assim quem não assistiu a essa obra clássica do chileno Alejandro Jodorowsky continuaria sem ter a devida idéia do que ela representa. Até porque o diretor não parte apenas de elementos cinematográficos – na verdade, busca inspiração também em aspectos esotéricos e existenciais.

“El Topo” parece começar em um pique de faroeste mestiço, na linha espagueti, com seu personagem-título vagando a cavalo em deserto acompanhado por uma criança (seria um filho?) pelada. Logo, entretanto, essa premissa mostra-se insuficiente e o filme descamba para trama e imagens que revelam as obsessões estéticas e místicas de Jodorowsky. A ação é antinaturalista e estilizada, em uma narrativa tomada por simbologias obscuras, o que acaba se refletindo em um senso barroco de composição de cena – os enquadramentos chegam a evocar um tom pictórico nas divisões de cenas. Há também no filme um clima blasfemo permanente, na mesma medida que conceitos cristãos como culpa e redenção são primordiais nas intenções temáticas do diretor – o ideário de Jodorowsky é difuso e escorregadio nas suas definições.

Opiniões apressadas e simplistas costumam colocar “El Topo” no nível de apenas mais uma excentricidade cult. Nada mais equivocado. Afinal, é só observar como ainda influencia muito do que é feito no cinema contemporâneo, a começar pela filmografia de David Lynch, admirador confesso de Alejandro Jodorowsky.

sexta-feira, março 05, 2010

Zumbilândia, de Rubens Fleischer ***


Em termos de sátiras aos filmes de zumbis, “Shaun of The Dead” (ou “Todo Mundo Quase Morto, quem preferir a cretina versão brasileira do título), obra inglesa de 2004, continua sendo a obra-prima do gênero, até porque, mesmo fazendo todas aquelas gozações com a produções do gênero, mantém também um tom de homenagem aos cânones estabelecidos por George Romero em suas películas, além de ter uma tensão dramática perturbadora, ainda que dentro de um padrão de comédia. Em “Zumbilândia” (2009), o diretor Rubens Fleischer não dá tanta bola aos princípios “romerianos”. Seus zumbis são corredores e ágeis, não sendo exatamente necessário que levem um tiro na cabeça para serem exterminados. O tom da narrativa é quase cartunesco, tanto na violência quanto pela caracterização dos personagens, não havendo uma consistência em termos de suspense. A opção de Fleischer é pelo escracho e pastelão, e nesse sentido o cineasta é bem sucedido – “Zumbilândia” tem seqüências realmente hilariantes, além de personagens bastante carismáticos.

quinta-feira, março 04, 2010

A Fita Branca, de Michael Haneke ***1/2


A primeira coisa que chama a atenção em “A Fita Branca” (2009) é a direção de fotografia. Composições de cenas, enquadramentos e iluminação produzem um efeito quase pictórico na sua precisão visual. Mas a beleza oriunda dessa concepção de imagens é glacial, o que está em sintonia com a narrativa e a parte temática da obra. A edição tem poucos cortes, com Haneke privilegiando tomadas longas e a câmera movendo-se discretamente. Toda a abordagem é anti-climática, e mesmo seqüências que seriam reveladoras acabam recebendo um tratamento desapaixonado e distante. Esse estilo cerebral de Haneke pode ser adequado ao retratar a história de uma pequena vila alemã aterrorizada por inexplicáveis episódios de violência que nunca se esclarecem, e parece reafirmar o conceito de que a possibilidade de existência da brutalidade em uma sociedade pretensamente civilizada importa mais do que propriamente saber quem comete tal brutalidade, teoria que Haneke já havia lapidado em “Cachê” (2005). Ao mesmo tempo, entretanto, tal estilo torna “A Fita Branca” uma produção que não arrebata o espectador justamente por essa contenção formal que se prende ao rigor intelectual do cineasta em elaborar a sua parábola política e social.

quarta-feira, março 03, 2010

Crítico, de Kleber Mendonça Filho **1/2


É de se tirar o chapéu o farto material humano colhido por Kleber Mendonça Filho em “Crítico” (2008), obra que aborda a função e importância da crítica de cinema no atual panorama cultural. Mendonça baseou seu documentário, fundamentalmente, em vários depoimentos de articulistas, cineastas e até mesmo atores, traçando um rico painel de opiniões, contradições e informações. No meio de tantas interpretações que se faz sobre a atividade de dissertar sobre filmes, não se chega a uma conclusão definitiva sobre o assunto, e parece que essa nem era a intenção de Mendonça. Por mais que algumas colocações e concepções expostas sejam questionáveis, na mesma medida elas são estimulantes para a reflexão não só sobre a questão que protagoniza a discussão, mas também sobre qual é a posição da cultura e da mídia oficial perante uma sociedade já bastante inserida no mundo virtual, onde qualquer um pode opinar sobre tudo, inclusive filmes (assim como, por exemplo, esse que vos escreve).

Se como fonte de debate, “Crítico” empolga pela idéias que contém, como cinema, deixa a desejar por uma narrativa muito presa ao formato convencional de “entrevistas puras” que acaba deixando a produção enfadonha em algumas seqüências, o que acaba sendo decepcionante para quem conhece os trabalhos anteriores em curtas de Kleber Mendonça Filho, principalmente o ótimo “Vinil Verde” (2004).

terça-feira, março 02, 2010

Preciosa, de Lee Daniels ***


“Preciosa” (2009) abusa de quase todos os preceitos do gênero cinematográfico de dramas de superação pessoal. A vida da personagem-título é um verdadeiro calvário de provações e privações: pobre, analfabeta, obesa, brutalizada pela mãe, violentada pelo pai, com dois filhos incestuosos e soropositiva. É claro que no meio de tanta desgraça, o filme desemboca em várias seqüências lacrimosas, além de algumas lições edificantes de vida. O diretor Lee Daniels, entretanto, oferece uma concepção formal envolvente para “Preciosa” ao combinar diferentes elementos estéticos. Em vários momentos, evoca uma narrativa influenciada por neo-realismo italiano, com direito até a uma auto-gozação nesse sentido quando a protagonista se vê numa produção pastiche da época. No meio dessa linguagem naturalista, há toques de delírios nos devaneios da garota quando a mesma se encontra nos instantes mais extremos de suas dificuldades. Há também uma certa dose de cinema “blackexploitation” setentista nas seqüências de Preciosa caminhando pelas ruas ao som de uma trilha sonora soul e funk.

No mais, as participações de Mariah Carey e Lenny Kravitz no elenco são curiosas e surpreendentes – eles são bem mais convincentes no cinema do que na música.

segunda-feira, março 01, 2010

O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella ***


Dentro de “O Segredo dos Seus Olhos” (2009) parece haver mais de um filme. Há uma trama policial, uma história de amor, uma crônica política. O diretor argentino Juan José Campanella não consegue equacionar bem essas diferentes tramas, fazendo com que as mesmas sejam destoantes entre si. O lado romântico do filme é perfeitamente descartável em relação ao restante do filme e mal ajambrado. Afinal, o que impedia que o casal de protagonistas tivesse ficado junto durante os anos 70 se eles eram adultos e solteiros? O lado político da produção também não diz muito a que veio, pois a questão da ditadura militar que aproveitava bandidos no seu aparelho repressivo irrompe gratuitamente depois da metade do filme, sendo que até aquele momento não havia qualquer menção a mesma. O que mantém o interesse em “O Segredo dos Seus Olhos” é a sua trama policial envolvente ao retratar a obsessão e a persistência do perito Espósito (Ricardo Darin) em solucionar um caso de estupro seguido de assassinato. O desenlace final, entretanto, é frustrante ao buscar uma conclusão esdrúxula, típica de uma produção rasteira e que não combina com o tom elegante da narrativa de Campanella. Esse tropeço não apaga as boas qualidades da obra em questão, principalmente pela atuação de Guillermo Francella (em ótima caracterização de um bêbum) e pela excelente seqüência de perseguição no estádio de futebol do Racing, que começa com uma vertiginosa tomada aérea e desemboca em um estonteante plano seqüência.