O diretor Vicente Amorim atira para todos os lados em “Motorrad”
(2017) – fotografia estilo cartão postal a registrar uma região árida do
interior brasileiro, cenas de corridas e perseguições com motocicletas, direção
de arte que remete à franquia “Mad Max”, elementos fantásticos e forte teor de
violência gráfica que se relacionam a produções de horror contemporâneo. Na
ânsia de se mostrar “moderno”, erra em todos os alvos. Os mencionados elementos
diversos da narrativa não se ligam com alguma coerência estética e temática. Falta
convicção artística para tirar o seu filme daquela zona situada entre o fake e
o asséptico. As sequências de ação não têm brilho criativo, resvalando várias
vezes no francamente tosco. Não há efetiva tensão dramática nas cenas e os
personagens são destituídos de carisma. Nesse conjunto constrangedor de
equívocos, o filme cai com frequência no humor involuntário.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, novembro 29, 2018
quarta-feira, novembro 28, 2018
Tempo de decisão, de Noah Baumbach **1/2
O diretor Noah Baumbach é um dos nomes mais expressivos do
cinema independente contemporâneo – a afirmação pode ser óbvia, mas é difícil
não sair dela. Para o bem e para o mal. Assim como já mostrou em alguns
trabalhos que é capaz de memoráveis picos criativos, em outros deixou evidente
uma certa autoindulgência na forma superficial e previsível com que tratou
temáticas típicas dessa linhagem cinematográfica, principalmente quando se
voltou para o gênero melodrama que trata de questões geracionais. “Tempo de
decisão” (1995), uma das primeiras produções que dirigiu, é um exemplar claro
dessa tendência de Baumbach em se voltar para o próprio umbigo sob um olhar
estético bastante convencional, ainda que se pretenda a formular narrativa e
formalismo metidos a moderninho. Em um contexto geral, não chega a ser
exatamente ruim. É tudo apenas irrelevante e esquecível em suas ideias e
formulações mofadas.
terça-feira, novembro 27, 2018
Infiltrado na Klan, de Spike Lee ****
Pelo meu interesse por cinema e sua história, assisti a “O
nascimento de uma nação” (1915) em mais de uma oportunidade. A forma com que
estrutura a sua narrativa fez do filme um dos marcos fundadores da linguagem
cinematográfica. Nesse sentido, esse aspecto formal e estético da obra dirigida
por D.W. Griffith é o que lhe deu uma perenidade histórica e artística. O lado
sócio-político da produção é evidentemente repugnante no seu racismo
escancarado e na visão histórica distorcida. Confesso, entretanto, que nas
oportunidades em que vi o filme esse lado preconceituoso me pareceu algo
distanciado, não no sentido de que não houvesse mais racismo no mundo, mas pelo
simples fato que o tratamento grotesco oferecido por Griffith soava tão
exagerado que parecia não encontrar ressonância tão imediata com os dias de
hoje (pelo menos nos períodos em que assisti ao filme). Bem, os fatos dos últimos
anos no Brasil e no mundo deixaram bem evidente o meu equívoco nessa
apreciação. Assim, não é à toa que Spike Lee cite com tanta frequência “O
nascimento de uma nação” em “Infiltrados na Klan” (2018). Na verdade, ele até
recorre com lucidez desconcertante aos recursos do falso distanciamento existencial
e mesmo no uso de certas estilizações e clichês narrativos para construir uma
obra que varia com naturalidade perturbadora entre a farsa e o realismo. O
cineasta se utiliza de uma abordagem que em um primeiro momento pode soar como
simples maniqueísmos e flertando por vezes com o puro panfletarismo
ideológico-racial – as sequências envolvendo reuniões entre os personagens
negros (festas, protestos, debates) são tomadas por uma atmosfera que beira a
beatitude, enquanto a grande maioria dos brancos são retratados como um bando
de caipiras ignorantes e racistas. Aliás, um dos seus grandes trunfos
artísticos é como ele trabalha com um detalhismo cênico impressionante e uma brilhante
direção de arte de puro imaginário setentista, vide passagens antológicas como
o baile na boate do primeiro encontro romântico entre o protagonista Ron
Stallworth (John David Washington) e Patrice (Laura Harrier) e as contundentes
referências visuais e temáticas com o gênero blackexploitation. Ocorre,
entretanto, que esse viés narrativo convencional na forma com que se expõe o
bem e o mal, que poderia até soar ingênuo, aos poucos vai adquirindo contornos humanistas
mais profundos no momento em que se começa a perceber que o discurso dos
antagonistas ganha uma ressonância muito próxima com aquilo que se propaga por
teóricos e governos ligados a ultra direita na atualidade, além do roteiro
mostrar de maneira crua que não há soluções fáceis ou mágicas para superar um
sentimento que está ligado de maneira íntima e direta com os mecanismos de
opressão sócio-econômica que dominam o mundo contemporâneo. As assustadoras
imagens documentais finais confirmam com devastadora coerência a sombria e
pessimista visão de mundo do filme, e reforçam ainda mais a impressão de que “Infiltrado
no Klan” é um dos títulos mais expressivos da filmografia de Spike Lee.
segunda-feira, novembro 26, 2018
Memórias secretas, de Atom Egoyan ***
Para quem admira o trabalho do diretor Atom Egoyan por obras
memoráveis e instigantes como “Exótica” (1994) e “O doce amanhã” (1997), pode
parecer um tanto frustrante vê-lo nos últimos anos trabalhar dentro de padrões
mais convencionais vinculados ao gênero suspense. “Memórias secretas” (2015) é
um claro exemplar dessa tendência na filmografia recente do cineasta. O roteiro
é um tanto surrado em sua formulação, principalmente nas “surpresas” novelescas
do terço final da narrativa, repisando em velhos clichês de filmes relativos às
consequências da 2ª Guerra Mundial (se bem que o avanço de ideias típicas do
nazi-fascismo nos dias de hoje mostra que nem mesmo a lembrança constante do
conflito via cinema foi capaz de ensinar algo para a humanidade). Mesmo que o
resultado final da obra se situe dentro de uma incômoda previsibilidade,
entretanto, é evidente também que em determinadas passagens da produção fica
evidente a mão diferenciada de Egoyan em termos estéticos e mesmo temáticos. A
encenação tem uma certa sobriedade dramática que consegue dar uma consistência
psicológica perturbadora para cenas importantes. Além disso, há algumas nuances
no roteiro que revelam um bem-vindo viés irônico em alguns dos exageros da
trama. De se destacar ainda as elegantes interpretações de parte do elenco que
oferecem dignidade para personagens com tendências para o melodrama barato. Ou
seja, nesse contexto geral, dá para dizer que Egoyan ainda tem crédito
suficiente para ser um nome para sempre se prestar atenção.
sexta-feira, novembro 23, 2018
A cidade dos piratas, de Otto Guerra ****
A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me
pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente
desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística
um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele
trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção
disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos
negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e
temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e
previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos
trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas
intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária
e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que
veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a
um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e
escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que
já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para
o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o
processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um
câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e
contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa
fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo
uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o
presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante
pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos,
preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada
sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse
processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com
traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos
cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante
frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por
exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom
lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um
efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já
lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou
precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é
que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos
que vivemos.
quinta-feira, novembro 22, 2018
Inimigos pelo destino, de Abel Ferrara ***1/2
Se “Amor, sublime amor” (1961) era uma releitura
estilizada/musicada da clássica peça shakespeariana “Romeu e Julieta”, “Inimigos
pelo destino” (1987) adapta ambas as obras pelo olhar muito particular do
diretor norte-americano Abel Ferrara. A trágica história original de amor
impossível entre dois jovens permanece praticamente a mesma, assim como a
atualização da trama para um ambiente de gangues em eterno desafio. O que muda
em termos efetivos é a perspectiva mais sórdida e carregada de uma
religiosidade distorcida que é típica da filmografia de Ferrara. O diretor
capricha na violência gráfica e na encenação exagerada, mas sem cair no choque
sensorial gratuito. Assim, o tradicional drama dos amantes se converte em algo
entre o bizarro conto moral e o exploitation descabelado. Shakespeare renasce
sob um âmbito artístico que tanto se mostra repulsivo quanto fascinante nessa
moldura barroca-realista.
quarta-feira, novembro 21, 2018
Vizinhos 2, de Nicholas Stoller **1/2
Na continuação do primeiro “Vizinhos” (2014), o diretor
Nicholas Stoller, também responsável por aquele primeiro filme, não mudou muito
em relação à abordagem artística – em meio a uma narrativa típica de comédia
escrachada, há um subtexto a criticar com ironia os dilemas e contradições da
classe média norte-americana contemporânea. Em “Vizinhos 2” (2018), inclusive,
até se insinua uma leve menção a questões feministas, o que permite à produção
ainda fazer uma leve desconstrução do gênero “filmes de fraternidade
universitária com muito sexo, drogas e rock and roll”. Há momentos bem
engraçados, principalmente quando se envereda pelo lado de um humor físico que
puxa para a linha entre o grosseiro, o violento e o levemente escatológico, mas
em um contexto geral prevalece uma incômoda sensação de clichês narrativos
sendo repisados com algum excesso. Paira uma impressão de que Stoller dá uma
frouxada na direção para acentuar uma atmosfera de comicidade alucinada, para dar
um clima mesmo de “chapação” para a narrativa. Se em alguns momentos essa
pretensão se revela justificada ao dar uma certa verdade para a encenação,
também é evidente em outras sequências que essa frouxidão na narrativa deixa “Vizinhos
2” um tanto enfadonho em suas soluções formais e temáticas.
terça-feira, novembro 20, 2018
Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald, de David Yates **1/2
Em relação ao primeiro filme de 2016, pouca coisa mudou em “Animais
fantásticos: Os crimes de Grindelwald” (2018). Pode-se dizer que isso ocorre
porque nessa continuação permanece o mesmo diretor David Yates. E é verdade
também que ele se mostra um cineasta confiável para os produtores e fãs da
franquia “Harry Potter” e derivados porque praticamente não sai de uma fórmula
consagrada e derivativa e nesse contexto fugir desses padrões seria considerado
uma grande traição para os nerds, geeks e outros fanáticos afins (e para o
grande mercado ávido por um lucro fácil, é claro). Mesmo uma pretensa ousadia
de deixar um pouco mais explícita a homossexualidade de um personagem
importante como Albus Dumbledore (Jude Law) na realidade só atesta o
conservadorismo e previsibilidade esperados do filme, no sentido que tal
particularidade é tratada como um sinal de fraqueza para ele (Dumbledore não
pode confrontar diretamente o vilão Grindelwald devido a um pacto de sangue e
amor que ambos estabeleceram na juventude). No mais, para quem assistiu com
alguma atenção a todos os capítulos da saga de Harry Potter, ou pelo menos a
maioria deles, fica evidente que nesse spin off retcon (pois é, as designações
nessas franquias ficam cada vez mais específicas e esquisitas) há também uma
tendência para que a narrativa ganhe uma atmosfera mais sombria ou coisa que o
valha na medida que a história avance, mas que na realidade acaba só acentuando
personagens cada vez mais rasos em interpretações canastronas do elenco e uma
trama que adquire contornos de novela mexicana (sério, há um excesso de revelações
bombásticas do tipo “fulano é filho do sicrano”, com direito a musiquinha
estridente de “surpresa”).
segunda-feira, novembro 19, 2018
Sueño Florianópolis, de Ana Katz ***1/2
Não consigo escrever sobre “Sueño Florianópolis” (2018) sem
fazer referência a uma reminiscência pessoal própria. É que já fui algumas
vezes às praias da Armação e do Matadeiro, ambas localizadas na capital
catarinense. Vizinhas, o que as liga é uma pequena faixa de mar e pedras, em
que a segunda fica mais isolada, não tendo como acessá-la por veículos
automotores terrestres. Por pequenas particularidades como essa, quando se
chega em Matadeiro a impressão é de um maior isolamento, um contato mais forte
com o elemento natureza e que, de certa forma, se entra em uma espécie de
universo paralelo. O fato da diretora Ana Katz situar a ação de seu filme nesse
microverso, dessa forma, não é gratuita. Mais no início da narrativa, o maduro casal
de protagonistas Lucrécia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón) menciona
que visitara há alguns anos em Florianópolis, em uma fase mais feliz do
relacionamento, uma praia mais urbanizada e aburguesada. Agora, na companhia
dos filhos já saindo da adolescência e com o casamento em vias de terminar,
acabam por cair em um local mais “selvagem”. O simbolismo é simples, quase
óbvio, mas é articulado com eficácia e sutileza por Katz. A família aos poucos
se deixa envolver por uma atmosfera algo luxuriante e nebulosa – todos parecem
confusos e inebriados, ainda que por vezes não admitam claramente seus desejos
e medos. Mesmo a abordagem narrativa que se apresenta em um primeiro plano
dentro de uma tendência realista em momentos cruciais se contamina por um
discreto e desconcertante onirismo. E tudo vai se tornando mais fascinante
quanto se percebe que o filme não se preocupa tanto em amarrar as pontas soltas
de seu roteiro, preferindo deixar os elementos temáticos ainda mais em abertos,
carregando em algumas belas metáforas visuais. A sequência de Lucrécia
navegando em um caiaque, por exemplo, tem um desconcertante teor poético. Nesse
singular contexto artístico de “Suenõ Florianópolis”, é provável que o nosso
imaginário tenha uma outra percepção quando vermos os hermanos partindo para fazer
turismo no litoral catarinense.
sexta-feira, novembro 16, 2018
O grande circo místico, de Cacá Diegues *
O grande mérito artístico de “Bye Bye Brasil” (1979), obra
que talvez seja a realização mais iluminada de Cacá Diegues como diretor, era
fazer um lúcido retrato entre o amargo e o irônico das mazelas econômicas,
sociais e morais de um Brasil profundo através de uma marcante síntese de
narrativa de forte dinamismo cênico, elenco de interpretações carismáticas e um
roteiro repleto de notáveis nuances dramáticas e cômicas ao contar as
peripécias de uma trupe de artistas mambembes pelo interior nacional. A trama
de “O grande circo místico” (2018), filme mais recente de Diegues, tem uma
temática semelhante ao narrar a história de uma família de profissionais do
circo do título do filme ao longo de 100 anos. O parentesco entre as duas
produções, entretanto, parece parar por aí, pois há uma distância abissal em
termos de qualidade artística entre ambas. O que uma tinha de vivacidade
criativa e precisão formal nas suas ideias a outra despeja na tela concepção e
execução mofadas e por vezes até indigente. Pode-se até dizer que havia uma
pretensão ousada por parte de Diegues em evocar um certo caráter onírico e
grotesco para a obra, mas a forma como isso é colocado em cena é desastroso. O
que era para ser poético e refinado em termos estético e existencial acaba enveredando
para o brega e a vazia opulência visual. Mesmo a belíssima trilha sonora
original composta por Chico Buarque e Edu Lobo é desperdiçada de maneira
lamentável – na realidade, por vezes a impressão é de que o filme parece um
longo vídeo clip mal-ajambrado para adequar com uma coerência textual meio
qualquer nota os números musicais com um roteiro digno de minissérie global
derivativa. Há passagens que até insinuam que “O grande circo místico” tinha
potencial para ser algo bem melhor, principalmente na expressiva sequência de
sexo acrobático entre Beatriz (Bruna Linzmeyer) e Fred (Rafael Lozano) e nas
cenas finais das gêmeas que flutuam em meio as ruínas do circo, mas esses
breves acertos sucumbem diante da direção artrítica de Diegues.
quarta-feira, novembro 14, 2018
Sedução e vingança, de Abel Ferrara ****
Os primeiros longas-metragens do diretor norte-americano
Abel Ferrara eram marcados por uma bizarra equação artística – ainda que
posteriormente ele tenha refinado mais o formalismo de seus filmes, ele nunca
perdeu o punch dessa estranha abordagem artística. Nesses primeiros filmes, o
cineasta abusava de uma estética sórdida típica das produções exploitation que
se adequava de maneira perturbadora a uma formatação narrativa que remetia a
insólitos contos morais. “Sedução e vingança” (1981) é um exemplar contundente
dessa singular concepção fílmica de Ferrara. Em um primeiro momento, pode-se
até pensar que o roteiro que mostra trajetória de desforra da protagonista
Thana (Zoë Lund) contra o mundo masculino após ser estuprada duas vezes no
mesmo dia remete ao tradicional modelo do filme de vingança. No desenrolar da
narrativa, contudo, Ferrara desmonta tais expectativas ao dar um caráter cada
vez mais nebuloso e mítico para as atitudes da personagem e também ao elaborar
atmosferas e encenação que enveredam com sutileza para o irreal e a uma
estilização “suja”. Assim, paira sobre a obra uma desconcertante ambiguidade
que se cristaliza de maneira impactante na antológica sequência final de um massacre
promovido por Thana que culmina em um inesperado castigo que lhe tira qualquer
possibilidade de redenção. No conturbado mundo de Abel Ferrara, nada é o que
parece...
segunda-feira, novembro 12, 2018
George Harrison: Living in the material world, de Martin Scorsese ***
A combinação Martin Scorsese e documentário musical sempre
chamará a atenção de quem gosta de cinema e música. Afinal, o diretor
norte-americano tem em seu currículo algumas obras memoráveis no gênero. Nesses
termos, pela alta expectativa que se pode criar, “George Harrison: Living in
the material world” (2011) acaba sendo um tanto decepcionante. É claro que que
está longe de ser um filme ruim. Afinal, Scorsese sabe conduzir uma narrativa,
o material audiovisual de arquivo é farto e relevante e a própria figura do
biografado é mais do que interessante. O que falta efetivamente para a produção
é foco e conceito melhores definidos, aspectos esses que eram articulados com
precisão em “O último concerto de rock” (1978), “Feel like going home” (2003) e
“Bob Dylan – No direction home” (2005). Na obra sobre Harrison, fica insinuado
que talvez o objetivo de Scorsese fosse relacionar as intensas inquietações
espirituais de seu protagonista com a sua própria produção artística. A duração
excessiva do filme, o acúmulo exagerado de um determinado tipo de informações
(por vezes, parece que estamos apenas assistindo a mais um protocolar
documentário sobre os Beatles) e a falta de uma exposição mais minuciosa sobre
outros tipos de fatos (principalmente de uma dissecação um pouco mais minuciosa
sobre a discografia de Harrison) tornam a narrativa por vezes cansativa e
redundante. Ou seja, é uma obra que tem os seus momentos envolventes e tem um
certo caráter obrigatório para quem gosta da temática e dos artistas
envolvidos, mas está bem longe de ser o material definitivo e referencial sobre
a figura de Harrison.
sexta-feira, novembro 09, 2018
Invasão a Londres, de Babak Najafi *
“Invasão a Casa Branca” (2013) trazia um grande diferencial
na sua realização: o nome de Antoine Fuqua na direção, um expressivo nome do
gênero ação nos últimos anos. E apesar de todas as patriotadas típicas dessa
linhagem de filmes, havia alguns elementos narrativos que elevavam o patamar
artístico da produção, principalmente nas coreografias de pancadarias,
explosões e tiroteios que remetiam a alguns clássicos do cinema de ação
casca-grossa dos anos 80. A ausência de Fuqua é bastante sentida na continuação
“Invasão a Londres” (2016), pois o diretor Babak Najafi envereda por uma
abordagem derivativa e sem graça para a narrativa. O resultado final é uma obra
enfadonha e desprovida de qualquer personalidade, incapaz de gerar alguma
tensão e empatia para o espectador. Nesse contexto, a visão de mundo
maniqueísta e o ufanista discurso bélico pró-americano do roteiro se mostram
mais insuportáveis e asquerosos.
quinta-feira, novembro 08, 2018
A cidade dos amaldiçoados, de John Carpenter ***1/2
Mais do que uma mera refilmagem do clássico “A aldeia dos
malditos” (1960), “A cidade dos amaldiçoados” (1995) é um exemplar contundente
da indelével e coerente marca autoral do cinema do diretor norte-americano John
Carpenter. A construção da narrativa e as atmosferas de tensão são marcadas
pela sobriedade, enquanto o grafismo violento e as trucagens são articulados
com notável senso de contenção dramática. Os sustos típicos de um filme de
horror estão lá, mas mesmo que sejam previsíveis também são perversamente
eficazes. Carpenter sabe aproveitar com maestria as possibilidades criativas do
material que tem em mãos, principalmente no sutil subtexto erótico da trama e
do traço perturbador de ter crianças como as principais vilãs da história. Ao
contrário da grande maioria das franquias de horror que grassam atualmente nos
multiplexes da vida, o filme não se rende a um tratamento formal asséptico ou a
um teor excessivamente conservador nas soluções do roteiro. Pelo contrário,
pois consegue uma abordagem estética-temática sombria e por vezes até irônica
dentro dos preceitos característicos do horror tradicional.
quarta-feira, novembro 07, 2018
Premonição 2, de David R. Ellis ***
As franquias contemporâneas de horror podem não ser muito
confiáveis no sentido de entregar com alguma regularidade filmes realmente
assustadores, parecendo mais satisfeitas em contentar com um padrão artístico
asséptico aos frequentadores adolescentes e afins dos multiplexes da vida. De
vez em quando, entretanto, acaba parecendo alguma obra dessa linhagem de
produções que acaba destoando dessa monotonia criativa. É o caso desse “Premonição
2” (2006). O grande mérito do diretor David R. Ellis é investir no tom irônico
da narrativa e no grafismo violento e exagerado das sequências de destruição e
morte. Nesse último aspecto, destaque absoluto para uma das sequências iniciais
em que um gigantesco acidente automobilístico culmina em uma absurda sucessão
de mutilações, explosões e outras atrocidades.
terça-feira, novembro 06, 2018
A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier ****
Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês
Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo
amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo
estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se
formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial
da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas
patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse
bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um
suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do
protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de
transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua
psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a
narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a
uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações
mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta
reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística
ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente
que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões
estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas
ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses
de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe
não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista
na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita
civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância
quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump,
Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate
civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à
própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência
final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante
realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.
segunda-feira, novembro 05, 2018
Stelinha, de Miguel Faria Jr. ***
A música popular brasileira é um assunto que vira e mexe o
diretor Miguel Faria Jr. gosta de abordar de alguma forma em seus filmes. Do
musical (“Para viver um grande amor”) ao documentário biográfico (“Vinicíus”, “Chico
Brasileiro”), o cineasta demonstrou o seu apreço pelo cancioneiro nacional.
Dentro de tal temática, entretanto, é curioso observar que seu melhor filme é
justamente “Stelinha” (1990), obra ficcional a narrar a decadência artística e
existencial de uma cantora brasileira da “velha guarda” do samba-canção. Por
vezes a encenação e o roteiro caem em excessos melodramáticos que resvalam no
brega, mas o filme de Faria Jr. acaba se mostrando memorável em alguns detalhes
estéticos e temáticos trabalhados com convicção e sensibilidade. Com uma trama
situada no final dos anos 80, a produção consegue oferecer um panorama intenso
e algo cruel sobre a indústria da música, em que artistas e suas obras são
tratados como meros produtos – a grande questão é saber se conseguem se adequar
ao gosto efêmero do público e se ainda são vendáveis. Se a narrativa começa
como uma abordagem naturalista, com o seu desenrolar “Stelinha” vai ganhando
cada vez um caráter mais simbolista, por vezes quase delirante, em atmosferas
de sordidez que ganham cada vez mais um caráter de pesadelo. A atuação over de
Ester Góes no papel-título e os números músicas estilizados acentuam essa
impressão de onirismo perturbador do filme.
quinta-feira, novembro 01, 2018
Fala comigo, de Felipe Sholl ***
Em termos de roteiro e encenação, “Fala comigo” (2016) é uma
obra que de maneira constante flerta com o convencional, ainda que a sua
narrativa seja envolvente para o espectador e em algumas passagens a trama apresente
um teor mais libertário. Ou seja, não chegaria a ser algo de especialmente
memorável. O que dá ao filme do diretor Felipe Sholl uma certa transcendência
artística e o cola no nosso imaginário é a atuação monumental de Karine Teles
no papel de uma maníaca-depressiva quarentona que se envolve romanticamente com
um adolescente. Os grandes momentos dramáticos da produção, e mesmo os cômicos,
ficam concentrados nas notáveis nuances de interpretação de Teles, que constrói
uma personagem que varia de forma admirável entre o obsessivo, o sensual e o
carismático. Ela ajuda a dar consistência criativa e empatia para os momentos
mais cruciais do filme, principalmente nas intensas sequências eróticas e nas
cenas com foco em diálogos espirituosos e irônicos. E esse desempenho da atriz
não se trata de um acerto pontual em sua carreira, pois ela se mostrou ainda
mais brilhante em “Benzinho” (2018).
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