Reparem nas linhas gerais da progressão da trama de “Ouija –
O jogo dos espíritos” (2014): a protagonista Laine (Olivia Cooke) se sente
assombrada pelo fantasma de uma amiga, decide contatá-la através do jogo do título
na casa em que a falecida morava, acaba despertando espíritos malignos que
perseguem a ela e seus amigos, alguns deles são enganados e mortos, a
protagonista descobre que tais espíritos eram de pessoas que moravam na casa da
amiga morta e na conclusão há uma batalha épica para exorcizar todos esses
fantasmas. Ou seja, dá para sacar que é um roteiro bem manjado, o que por si só
não dá para dizer que seria uma garantia de ruindade para essa produção. O
problema maior, entretanto, é que o diretor Stiles White é tão mecânico e sem
inspiração ao acumular clichês temáticos e chavões formais que “Ouija” não vai
além de alguns sustos básicos e mequetrefes. Faltou uma condução de narrativa
mais sanguínea e uma estética mais ousada capazes de extrair alguma efetiva
tensão no meio de tantas obviedades.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
terça-feira, dezembro 30, 2014
segunda-feira, dezembro 29, 2014
Mommy, de Xavier Dolan ***1/2
Uma das coisas que mais impressiona no cineasta canadense
Xavier Dolan é a maturidade humanista das abordagens existenciais de seus filmes,
além do extraordinário vigor narrativo de tais produções. Isso já era evidente
em sua obra de estreia, “Eu matei a minha mãe?” (2009), lançado quando ele
tinha apenas 19 anos, e agora sua marca artística fica ainda mais indelével em “Mommy”
(2014). Assim como no seu debut, nesse filme mais recente a trama se concentra
num enfoque intimista e familiar, mas que também em seu subtexto traz uma visão
bastante coerente e ácida sobre as relações humanas no mundo moderno. A encenação
proposta por Dolan é um estranho misto entre atribulados embates físicos e sutis
nuances psicológicas. Dentro dessa complexa e intensa concepção formal/temática,
revela-se fundamental o esmerado trabalho de direção de atores com o trio
protagonista em composições dramáticas que variam com selvagem naturalismo
entre a contenção emocional e explosões de ira, alegria e sensualidade.
terça-feira, dezembro 23, 2014
Ultraje: Muito além, de Takeshi Kitano ***1/2
Takeshi Kitano fazendo continuação de um de seus filmes não é
algo exatamente habitual. Ainda mais de “Ultraje” (2010), um de seus melhores
trabalhos. “Ultraje: Muito além” (2010), a segunda parte da saga dos mafiosos
nipônicos, não tem a mesma intensidade formal da primeira produção, mas mesmo
assim é uma obra de peso que se coloca muito acima da média do que se faz no
cinema policial contemporâneo. Kitano se utiliza novamente de um roteiro de
variações mínimas, cujo mote principal está nas disputas brutais e insidiosas
entre clãs de criminosos. A força de suas concepções artísticas está na
construção de atmosferas secas e desoladas, na violência descarnada de algumas seqüências,
no extraordinário trabalho de composição cênica, na estranha ironia tipicamente
nipônica de Kitano. Tudo parece previsível na trama, mas mesmo assim o
espectador se sente surpreendido e atraído pelas noções perversas e trágicas
que escorrem de forma abundante da narrativa sangrenta engedrada pelo cineasta.
E a surpreendente conclusão do filme acentua a sensação de desconcerto, quando
num único ato brutal emana uma inesperada aura de conto moral.
segunda-feira, dezembro 22, 2014
O Hobbit: A batalha dos cinco exércitos, de Peter Jackson ***
Vi “O Hobbit: A batalha dos cinco exércitos” (2014) numa
projeção 3D HFR. Não costumo destacar nos meus comentários sobre filmes a
condição tecnológica na qual os assisti. Mas na produção em questão isso acaba
sendo inevitável. A tecnologia que mencionei dá uma impressão esquisita, de
como se estivéssemos vendo um filme no cinema com a textura de imagem de
televisão. Nessas condições, as trucagens digitais que grassam por praticamente
toda a metragem da obra de Peter Jackson não têm aquele realismo e naturalidade
que eram prementes tanto nos outros episódios da franquia quanto em toda a
trilogia de “O senhor dos anéis”. Por vezes, o resultado imagético aparenta muito
mais de um game do que de um filme propriamente dito. Ou seja, aquilo que vinha
sendo o grande mérito dos filmes anteriores, o formalismo rebuscado concebido
por Jackson, acaba não tendo o mesmo destaque. Ainda sim, é uma obra que dentro
do gênero da aventura cinematográfica consegue se colocar acima da média. Por
mais que o roteiro tenha seus excessos melodramáticos e chafurde em alguns
clichês épicos, a narrativa ainda é capaz de gerar tensão e mesmo encantar na
sua overdose de cabeças decepadas, construções ardendo em chamas, explosões e
corpos perfurados, além de alguns personagens apresentarem dimensão dramática e
construção psicológica mais acuradas. Ou seja, uma fantasia épica de um Peter
Jackson em entressafra tem mais estofo e substância que os “Percy Jackson” ou “Jogos
vorazes” da vida...
terça-feira, dezembro 09, 2014
Um homem misterioso, de Anton Corbjin ****
A vasta experiência do diretor Anton Corbjin como fotógrafo
se reflete de forma magnífica em seus filmes. “Um homem misterioso” (2010) é
uma prova indelével disso. As variações da trama são minimalistas, por vezes até
bastante previsíveis. A força
dessa produção está justamente na construção de atmosferas e na encenação
detalhista, que faz com que a obra tenha um clima de tensão permanente. O
subtexto é óbvio – quando o protagonista, o implacável matador de aluguel Jack
(George Clooney), entra em crise existencial e se apaixona, isso implica na sua
inexorável queda. Ainda sim, Corbjin estabelece um fatalismo perturbador,
fazendo com que “Um homem misterioso” ganhe a aura de uma tragédia clássica.
Para isso, o cineasta se vale de uma notável capacidade de composição de cena,
tanto em tomadas fixas cujos enquadramentos expressam uma força imagética memorável
quanto nas cenas de ação elegantemente coreografadas. A sobriedade da abordagem
emocional e a formalismo classudo concebidos por Corbjin fazem lembrar a produção
francesa “O samurai” (1967), uma das grandes obras-primas do gênero policial.
segunda-feira, dezembro 08, 2014
Meninos de Kichute, de Luca Amberg *
O gênero memorialista infantil, em que a trama se concentra
em episódios de infância de um protagonista, é bastante recorrente no cinema. E
pode parecer até um recurso manjado utilizar esse tipo de temática para ganhar
a simpatia das plateias. Isso não quer dizer, entretanto, que de vez em quando
não possa aparecer uma obra de relevância dentro do gênero, como é o caso do
recente e extraordinário “O verão do Skylab” (2011), obra singular na sua
combinação de narrativa fluente, roteiro bem amarrado, senso de humor afiado e
atmosfera encantadora. Nada disso aparece em “Meninos de Kichute” (2010) –
parece que o diretor Luca Amberg pensou que o simples fato de mostrar crianças
fazendo peraltices e dizendo umas bobagens seria capaz de fazer de sua obra
algo memorável. Não há vigor e inspiração na encenação proposta por Amberg,
apenas uma narrativa trôpega, cuja trama se revela um compêndio de lugares
comuns sem graça. Até a crítica que se faz a repressão religiosa no filme soa
mecânica e mal explorada. Poderia se dizer que por ser Amberg um diretor
estreante não daria para ser tão exigente com “Meninos de Kichute”, mas
Truffaut em seu longa de estréia, “Os incompreendidos” (1959), gerou uma
obra-prima sobre a infância e adolescência...
sexta-feira, dezembro 05, 2014
Os amigos, de Lina Chamie **
O documentário “São Silvestre” (2013), dirigido por Lina
Chamie, foi uma das mais gratas surpresas do cinema nacional nos últimos anos
na sua combinação de esporte, música e encenação insólita. Assim, “Os amigos”
(2013), outra recente obra de Chamie, acaba sendo uma decepção, tanto pela
comparação que se faz com a produção anterior quanto pelos seus supostos méritos
artísticos. É claro que se pode perceber uma louvável ambição artística da
cineasta ao estruturar sua narrativa aos moldes do clássico literário “A Odisséia”
de Homero dentro de uma ambientação moderna e urbana, além de rechear sua
encenação com toques intelectuais sofisticados, indo de boas escolhas nos temas
musicais e passando por referências literárias e teatrais. Chamie não se
contentou também com uma encenação naturalista, demonstrando ousadias estéticas
na utilização de trucagens visuais e desvios para o cinema fantástico. Na
realidade, entretanto, o excesso de pretensão e truques formais descamba para
uma narrativa afetada e truncada – pode-se eventualmente gostar de alguma
sacada cultural do filme, mas a demasia nos artifícios de linguagem poucas
vezes consegue efetivamente cativar o espectador, que pouco se sente envolvido
pelas situações e personagens da trama.
quinta-feira, dezembro 04, 2014
O pequeno fugitivo, de Morris Engel e Ruth Orkin ***1/2
Dizer que “O pequeno fugitivo” (1953) parece distante
daquilo que se faz atualmente no cinema pode até ser correto, mas também é
impreciso. Afinal, o filme em questão parece algo fora do tempo e espaço em
relação a qualquer época. A linguagem estética adotada pelos diretores Morris
Engel e Ruth Orkin encontra bastante ressonância naquele estilo de fotografia naturalista,
em que o preto-e-branco enfatizava um misto entre a simplicidade, o sórdido, o
excêntrico e o irônico no registro de tipos nada glamorosos dos grandes centros
urbanos. A estrutura narrativa engedrada por Engel e Orkin é marcada pela concisão
e eficiência – ao usar técnicas documentais na encenação de uma história
ficcional, eles conseguem a proeza de fazer uma estranha e fascinante síntese
entre a formatação naturalista e o inesperado tom fabular. Isso porque a trama é
perpassada em boa parte de sua duração pelo olhar infantil do protagonista Joey
(Richie Andrusco). Assim, aquilo que era para ter um caráter prosaico e
realista acaba ganhando uma estranha dimensão épica para o pequeno personagem
principal. Os jogos e brincadeiras em um parque e os passeios e recolhimento de
garrafas pela praia de Coney Island se transformam numa espécie de aventuras
grandiosas. O registro visual do filme acentua ainda mais tal impressão: poucas
vezes se viu no cinema ruas, objetos e prédios corriqueiros ganharem uma beleza
pictórica tão cativante. A expressiva trilha sonora, composta basicamente por
temas de melodias singelas levadas numa harmônica beirando o desafinado,
colabora ainda mais para essa percepção de uma obra idiossincrática e
atemporal.
quarta-feira, dezembro 03, 2014
Boyhood - Da infância à juventude, de Richard Linklater ***
O que mais impressiona em “Boyhood – Da infância à juventude”
(2014) não é o uso do recurso narrativo de usar os mesmos atores por mais de 10
anos para narrar a trajetória de amadurecimento de seus personagens. É claro
que isso dá um peso dramático na composição de situações e personagens, mas o
que pega mesmo no filme é que por trás da história de caráter intimista e
realista da produção há um rico subtexto político e cultural que faz um raio x
arguto da sociedade norte-americana contemporânea. Nesse sentido, há grande mérito
por parte do diretor Richard Linklater em não cair, pelo menos em boa parte do
filme, em maniqueísmos ou visões simplórias ao trazer à tona questões
complexas. Por mais que Mason (Ellar Coltrane) seja o protagonista de “Boyhood”,
é a totalidade de sua família (ele, pai, mãe e irmã) que sintetiza aquilo que
Linklater quer evidenciar – liberais em termos políticos e ateus, representam o
oposto ao ideário conservador que Hollywood e a mídia ocidental gostar de propagar
como modelo. Apesar disso, sentem necessidade de se adequar a certos valores e
convenções para poderem sobreviver, ainda que quebrem a cara com isso por vezes
(o fato da mãe casar duas vezes com homens aparentemente respeitáveis, um
professor e um policial, mas que se revelam bêbados violentos é emblemático
disso). Tal concepção temática e textual da produção representa talvez o seu efetivo
lado transgressivo, em um discurso perturbador que desafia inclusive o ideal do
amor romântico. Essa crueza no expor as relações interpessoais bem como na
caracterização de determinadas passagens da trama deixa clara a forte carga humanista
da obra de Linklater.
Se “Boyhood” impressiona pelo seu subtexto, por outro lado
sua estrutura narrativa e formal não acompanha a sua ousadia temática. Não há
grandes arroubos estéticos por parte de Linklater e é provável que essa nunca
tenha sido a sua intenção, pois o caráter de uma ambientação sóbria e
naturalista de um cotidiano familiar/social não exigiria barroquismos ou
estilizações. Ocorre, entretanto, que o próprio Linklater já provou que é possível
conciliar um roteiro de talhe realista com uma narrativa criativa em termos
formais na sensacional trilogia “Antes do amanhecer” (1995), “Antes do pôr-do-sol”
(2004) e “Antes da meia-noite” (2013). Além disso, o cineasta se rende em
alguns momentos a alguns incômodos truques melodramáticos que tiram a fluência
da narrativa.
Os senões que se pode fazer a “Boyhood” são frustrantes em
relação às expectativas positivas que se tinha em relação ao filme. Ainda sim,
é o tipo de obra que traz tantos elementos intrigantes que acaba permanecendo
na mente de quem a assistiu por um bom tempo, fazendo do filme de Linklater um
trabalho memorável como poucos.
terça-feira, dezembro 02, 2014
Tim Maia, de Mauro Lima 1/2 (meia estrela)
Logo após sair da sala onde assisti à “Tim Maia” (2013) ouvi
alguns comentários de pessoas que também viram o filme em questão, sendo que um
deles se destacou para mim: “Como alguém pôde desperdiçar a vida assim?”. Daí
eu é que me indaguei mentalmente: mas como falar em desperdiçar a vida em relação
a um homem que gravou, no mínimo, oito discos fundamentais para a música
brasileira, além de ser um dos maiores intérpretes de nosso cancioneiro? Mas
tal percepção acaba se justificando diante do equívoco que representa a
cinebiografia dirigida por Mauro Lima. Durante a longuíssima duração de tal
produção, o que mais se vê é o “homenageado” abusando de drogas e comida e
sendo repreendido com lições de morais e de vida por parte de parente, amigos e
namoradas. De vez em quando, sobra um espaço para mostrar que o cara também
compunha e cantava... Ou seja, o filme tem um repugnante caráter moralista e
arrogante, parecendo julgar a todo momento o comportamento errático de Tim Maia
e reduzindo a sua vida ao cotidiano de um junkie qualquer. Essa medíocre visão
temática da obra se estende para a própria concepção estética perpetrada por
Lima – encenação engessada, direção de arte primária, interpretações
caricaturais, roteiro incapaz de desenvolver situações e personagens. No geral,
“Tim Maia” mais parece, na realidade, um longo video clip musical mal dirigido
e com um subtexto tomado por infantilismos.
sexta-feira, novembro 28, 2014
Boa sorte, de Carolina Jabor ***
A questão da loucura em “Boa sorte” (2014) não se limita à
sua temática. A própria construção da narrativa da produção em questão
apresenta uma espécie de esquizofrenia artística, como se houvesse dois filmes
dentro de um só. Se por um lado o roteiro da obra, de autoria de Jorge Furtado
baseado em conto próprio, apresenta aquela sua habitual verborragia, em que os
diálogos dos personagens pecam pelo excesso de informações e auto-explicações,
por outro a direção de Carolina Jabor busca algumas sutilezas formais por vezes
ousadas e até líricas. Em alguns momentos, a narrativa atinge um discreto tom
delirante, tanto em alguns planos-sequência e truques de edição que sugerem uma
ambientação entre o fantasioso e o onírico quanto em algumas belas estilizações,
principalmente na parte final, em que os desenhos da protagonista Judite
(Deborah Secco) ganham vida, rendendo algumas poéticas cenas. É claro que o
travo sentimental do roteiro incomoda, principalmente na forma clichê e um
tanto moralista com que se resolve o destino de Judite, mas as boas soluções
formais de Jabor fazem de “Boa sorte” uma obra memorável.
quinta-feira, novembro 27, 2014
Riocorrente, de Paulo Sacramento ***1/2
Se Jogo das
decapitações (2013) abusa de uma
verborragia atordoante, Riocorrente (2013)
prefere se insinuar pelos silêncio de seus personagens. Assim como no filme de
Bianchi, pode-se perceber na obra de Paulo Sacramento que o desconforto, a
violência e a tensão são latentes, mas os principais personagens da trama não
verbalizam suas angústias e revoltas. Preferem descontar suas frustrações e
desconfortos através de sexo, porres, discussões, passeios sem rumo pelas ruas
desoladas de São Paulo, pequenos crimes. Na superfície, os conflitos intimistas
desses indivíduos escondem uma leitura política bastante arguta – o mecânico e
ladrão de carros Carlos (Lee Taylor), o jornalista e historiador Marcelo
(Roberto Audio), a socialite Renata (Simone Iliescu) e o menino de rua Exu
(Vinicius do Anjos) carregam uma conotação simbólica na constituição de suas
figuras, representando diferentes classes sociais, comportamentos e visões de
mundo que convivem aos trancos e barrancos na mesma sociedade. Essa
estruturação da trama baseado nos conflitos existenciais de cada um desses
personagens lembra muito o mote principal do extraordinário romance Contraponto (1923) de Aldous Huxley, em que a exposição das visões ideológicas e
filosóficas dos personagens era o eixo principal do ritmo narrativo da obra.
Essa tendência para a simbologia em Riocorrente
não se limita apenas na caracterização de seus principais personagens,
sendo que Sacramento pontua de forma recorrente no filme seqüências marcadas
por sutis trucagens evocando fogo e catarse, como no momento em que Carlos se
imagina com um coquetel molotov nas mãos ou naquele do onirismo desconcertante
de um Rio Tietê se incendiando.
É curioso observar ainda que tanto O jogo das decapitações quanto Riocorrente
apresentam momentos em que a música adquire uma conotação de redenção em
meio a narrativas marcadas pela temática da turbulência social e existencial.
Na conclusão do filme de Bianchi, há um número musical em que um grupo cultural
voluntário toca e canta uma versão apaixonada da panfletária Eu vivo num tempo de guerra,
emblemático tema de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, perante uma plateia de
garotos pobres de olhar desconfiado, enquanto a obra de Sacramento traz o misto
de rock e free jazz da Patife Band e o canto dilacerado do velho mutante
Arnaldo Baptista no seu clássico Te amo,
podes crer servindo como válvula de escape emocional para as tensões
atávicas de alguns personagens. No meio do clima de pessimismo e fúria que
impera nas duas produções, é como se os dois cineastas ainda vissem alguma
possibilidade de esperança na cultura e na sensibilidade, que tanto podem se
manifestar na música como nas suas respectivas obras cinematográficas.
quarta-feira, novembro 26, 2014
O jogo das decapitações, de Sérgio Bianchi ****
Sérgio Bianchi é um cineasta que tem um apreço especial por uma
temática singular – o mal-estar existencial do homem moderno. Seus filmes têm
como conteúdo fundamental a sensação de desconforto do brasileiro classe média
com tudo aquilo que foge dos seus padrões de comportamento e moralidade. Cronicamente inviável (2000) e Os inquilinos (2009) mostram as
contradições, preconceitos e hipocrisias oriundas das diferenças de classes
sociais, enquanto Quanto vale ou é por
quilo? (2005) apresenta uma das visões mais cruas e sarcásticas já
realizadas no cinema nacional sobre o racismo. Vale lembrar, entretanto, que na
cinematografia de Bianchi as dicotomias que se apresentam não implicam
necessariamente numa visão maniqueísta. Pobres, marginais e excluídos não se
limitam a um papel de vítima – eles têm um papel ativo no seu destino. Em O jogo das decapitações (2013), todos
esses conteúdos turbulentos afloram com a virulência habitual do cineasta. Na
realidade, há até uma expansão conceitual no universo provocador de Maldita
coincidência (1979), para ilustrar o legado artístico maldito de Jairo
Mendes. No final das contas, esse confronto entre a obra mais recente e um dos
primeiros trabalhos de Bianchi também serve para traçar a unidade
artístico-existencial da carreira do cineasta e também para a confrontação
brutal entre duas épocas distintas.Bianchi,
que não se furta, inclusive, a questionar e ironizar questões muito caras para
a esquerda como a concessão de indenizações e pensões para perseguidos pela
ditadura militar. Isso não quer dizer, todavia, que Bianchi se apresente como
um recém convertido a novo conservador, reacionário ou qualquer coisa que o
valha. Ele age mais como um cronista distante e amargurado da decadência social
e moral de uma nação. Para isso, ele toma por protagonista Leandro (Fernando
Alves Pinto) um confuso rapaz de classe média, filho de uma ex-guerrilheira e
de Jairo Mendes (Paulo César Pereio), um enigmático artista performático.
Leandro também é estudante pós-graduando em vias de ser “jubilado” e que vive
numa eterna pesquisa acadêmica não muito bem delineada e definida sobre a
ditadura militar. Bianchi dá a impressão que o seu olhar gravita entre a
perspectiva atônita de Leandro diante de uma realidade cada vez mais fraturada pela
violência e intolerância, e a fúria niilista e sarcástica de Rafael (Silvio
Guindane), colega de Leandro que desdenha de ideologias e das ortodoxias
sócio-políticas. Mas mesmo para um personagem como Rafael não há uma clareza –
suas descrenças e pretensa lucidez teriam um caráter libertário ou apenas
seriam motivos para o estímulo de mais preconceitos? A maturidade artística de
Bianchi faz com essa babel de fatos, referências e simbologias sejam filtradas
numa narrativa coesa e contundente. Os principais truques formais do cineasta
recebem um acabamento ainda mais refinado, fazendo com que encenação realista,
toques documentais, diálogos discursivos antinaturalistas e sequências
delirantes convivam em estranha harmonia que ganha um sentido singular no universo
de Bianchi, tanto que ele se permite a se auto-referencia ao usar trechos do
seu primeiro longa-metragem,
terça-feira, novembro 25, 2014
Pietá, de Kim Ki-duk ****
O cinema do diretor coreano Kim Ki-duk sempre procurou um
equilíbrio entre o olhar contemplativo tipicamente oriental com uma estrutura tradicional
de melodrama sutil. Filmes como “Casa vazia” (2004) e “O arco” (2005) são
exemplares fiéis dessa tendência artística do cineasta. Em “Pietá” (2012),
Ki-duk ainda envereda pelo seu particular estilo, mas acrescentando uma porção
bem maior de violência e melancolia. O resultado final é um desolador conto
moral sobre a brutalidade econômica e a falta de compaixão na sociedade
sul-coreana contemporânea (e, por tabela, do próprio mundo capitalista
pós-moderno). É claro que no mote principal de sua trama o filme tem um viés
intimista ao mostrar a conturbada relação entre um truculento e impiedoso
cobrador de vítimas de agiotagem e a sua suposta mãe. Mas aos poucos, a
narrativa vai ganhando uma conotação simbólica ao retratar um cotidiano de
dificuldades financeiras e insuportáveis coações físicas em áreas urbanas
degradadas de uma grande metrópole. Por vezes a trama permite algum respiro ao
flagrar raros momentos de algum sentimento mais nobre em seus personagens, mas
isso apenas aumenta o grau de choque nas explosões de violência e tragédia que
irrompem de forma inesperada e impiedosa. Kim Ki-duk tem alguns truques
perversos na cartola – em determinados momentos no faz acreditar em alguma
possibilidade de redenção para as suas criaturas, mas isso é ilusório, pois, em
sua essência, “Pietá” é uma obra que versa sobre a vingança levada às últimas conseqüências,
fazendo lembrar a inesquecível trilogia da vingança concebida pelo também
sul-coreano Chan-wook Park. A crueldade temática de Ki-duk vem acompanhada de
uma concepção formal extraordinária, repleta de planos de expressiva beleza
pictórica e uma narrativa exasperante na sua capacidade de criação de tensão
dramática.
segunda-feira, novembro 24, 2014
Castanha, de Davi Pretto ***1/2
A abertura de “Castanha” (2014) é uma contundente carta de
intenções do filme: numa sugestão de pesadelo, uma estranha figura coberta de
uma espécie de óleo negro caminha cambaleante por uma estrada ao som de um
ensurdecedor e dissonante tema “drone”. O efeito sensorial é desconcertante. Essa
mesma sensação de misto de encanto e perturbação permeia toda a metragem da
produção dirigida por Davi Pretto. A estrutura da narrativa pode soar insólita
nos primeiros momentos, mas aos poucos vai ficando familiar e natural para o
espectador – por mais que se evoque alguns trejeitos documentais, o cerne da
obra de Pretto é uma encenação bastante fluida e que revela um rigor estético
extraordinário. O que na superfície podo soar casual ou aleatório na verdade
revela um senso plástico belíssimo, em que a direção de fotografia extrai
alguns enquadramentos antológicos em registros variados, indo do apartamento
simples do protagonista Castanha, passando pela ambientação sombria e sórdida
da boate gay em que ele trabalha e chegando em tomadas melancólicas das ruas de
Porto Alegre, quase como se sugerindo que à noite a cidade se convertesse numa
localidade de outra dimensão. Pode parecer contrastante que uma temática que
foca um olhar seco sobre cotidiano de uma figura solitária e fora dos padrões
de “normalidade” ganhe um tratamento formal cheio de nuances de linguagem, mas
a força de “Castanha” está justamente no entrechoque inesperado entre o real e
o delírio onírico, em que a fronteira desses dois planos existenciais por vezes
fica imprecisa de maneira fascinante, fazendo do filme de Preto, ao lado de “Morro
do Céu” (2014) e “Argus Montenegro” (2012), uma das melhores coisas que
apareceram no cinema gaúcho nos últimos anos.
sexta-feira, novembro 21, 2014
Debi & Lóide 2, de Bobby e Peter Farrelly ***
Pode-se acusar “Debi & Lóide 2” (2014) de todos os
adjetivos que se costumar atribuir a obras de continuação de sucessos
comerciais: oportunista, apelativo, variação derivativa do original e afins. Mesmo
assim, é uma comédia daquelas que vem se tornando cada vez mais raras nos
cinemas nesses tempos de politicamente correto, na sua combinação bem azeitada
de escatologia, mau gosto e humor beirando o delirante. Assim como no primeiro
filme, a lógica aqui não está em tentar encontrar sentido no fio de história do
roteiro ou em sutilezas de subtexto. O forte dos irmãos Farrelly e da dupla Jim
Carrey e Jeff Daniels está na encenação alucinada de seqüências de puro
nonsense em que não se economiza no exagero de humor físico pastelão e na infâmia
de piadas que vão das brincadeiras com fluidos corporais diversos até tirações
de sarro com deficientes. É claro que tal estética do riso por vezes cheira a
mofo e decadência, mas talvez um dos segredos do estranho encanto dessa produção
esteja num certo caráter nostálgico de um tipo de produção que está à beira da
extinção.
quinta-feira, novembro 20, 2014
Interestelar, de Christopher Nolan ***
O diretor Christopher Nolan mantém uma relação forte com o
universo dos quadrinhos, apesar de tal aproximação não ser ostensivamente
declarada. Além é claro da óbvia conexão de ter sido o responsável criativo
pela recente trilogia cinematográfica do Batman, em alguns dos seus filmes se
podem perceber influências e referências visíveis de “comics”. Em “A origem”
(2010), a estrutura narrativa se divide em diversos planos de realidade, em um
recurso que remete tanto aos universos paralelos das editoras Marvel e DC bem
como às narrativas oníricas da série “Sandman”. Em seu mais recente filme, “Interestelar”
(2014), Nolan volta a buscar inspiração nas HQs. O grande mote do roteiro da
obra em questão se relaciona a um pequeno truque temporal que o genial
roteirista Grant Morrison já havia utilizado de forma bastante engenhosa em sua
extraordinária fase na revista do “Homem-animal”. Nolan não tem a mesma verve
criativa de Morrison no uso do referido recurso narrativo, mas mesmo assim obtém
um efeito dramático de eficiente impacto.
Talvez o que incomode em “Interestelar” esteja justamente
nessa questão da pretensão de ser genial ou ousado. Nolan dá a constante
impressão de que seu filme deseja ser uma espécie de “2001: Uma odisséia no
espaço” (1968) para o século XXI. Parte do público e crítica compra essa ideia para
o mal e acaba detonando a produção pela sua intenção de ser “séria” e “profunda”.
O diretor não tem esse estofo artístico para fazer o grande épico metafísico e
existencial que propõe – por vezes, a intenção de ser poético e reflexivo
descamba para o melodrama barato. E isso sem falar na conclusão da história, um
verdadeiro imbróglio incompreensível de teorias despirocadas. A melhor forma de
assistir às quase três horas de duração de “Interestelar” é encarando a obra
como aquilo que ela efetivamente é: uma boa aventura escapista de ficção científica.
As cenas de ação têm boa desenvoltura narrativa e a dose certa de tensão, além
da direção de fotografia saber valorizar com razoável sensibilidade tanto a
beleza dos cenários naturais quanto o requinte imagético das trucagens. E por
mais chorão e hesitante que o protagonista Cooper possa ser, Matthew McConaughey
tem um tipo de carisma que faz pensar num tipo de cowboy pos-apocalíptico.
quarta-feira, novembro 19, 2014
Avós, de Carla Valencia D'Ávila **1/2
A objetividade e o distanciamento emocional cada vez mais de
forma deliberada se distanciam da formatação dos documentários contemporâneos.
Estão se tornado bastante recorrentes obras dentro de tal gênero que se deixam
permear por um caráter intimista de seus realizadores, em que suas impressões e
dilemas pessoais se impõem como matéria prima na exposição de suas temáticas. “Avós”
é um exemplar interessante de tal vertente do “cinema verdade”. Essa produção
chilena-equatoriana combina na mesma moeda política e intimismo com razoável
fluência orgânica. A diretora Carla Valencia D’Ávila conta duas histórias – a de
seu avô paterno chileno, preso e morto no início da ditadura militar
orquestrada por Pinochet, e a de seu avô materno, farmacêutico que se curou de
um tumor maligno com medicamentos elaborados por ele mesmo e que depois acabou
se tornando um misto de curandeiro e médico, tendo sucesso no tratamento de
diversos pacientes. A cineasta não apresenta grandes arroubos criativos em
termos formais – a narrativa de “Avós” é pausada e clássica, por vezes até árida
dentro da contida estética da diretora. De qualquer forma, Ávila, ao expor as
vidas singulares de seus biografados, constrói uma obra que no seu subtexto
acaba oferecendo um estranho e sedutor panorama da história existencial de um
período crítico da América do Sul, em que repressão política, misticismo e
idealismo libertário conviviam de maneira não muito harmônica no continente.
terça-feira, novembro 18, 2014
Uma jovem tão bela como eu, de François Truffaut ****
Em uma rápida primeira impressão, “Uma jovem tão bela como
eu” (1972) se mostra como uma excentricidade do diretor François Truffaut,
tendo em vista a sua estrutura narrativa emular uma espécie de ligeira chanchada.
Com o desenvolver da obra e um olhar mais atento, entretanto, o filme vai
ganhando contornos cada vez mais surpreendentes. Algumas trucagens e detalhes
visuais revelam uma estética baseada em influências cartunescas e mesmo de clássicas
comédias físicas, fazendo da produção umas das viagens mais ousadas e radicais
de Truffaut em termos de linguagem cinematográfica. O cineasta recria tais
referências sob uma perspectiva própria, em que elementos cômicos e picarescos
se entrelaçam de forma perturbadora com a atmosfera sombria e melancólica de
algumas sequências. Em outros momentos, há nuances artísticas e temáticas que
se conectam de forma contundente com o universo existencial do diretor – as peripécias
transgressoras da protagonista Camille Bliss (Bernadette Lafont) guardam
sintonia com as encrencas do Antoine Doinel, alter ego de Truffaut e personagem
recorrente em sua filmografia. É nessa confluência de desconstrução de gêneros
(comédia e suspense) e reforço de um traço autoral que “Uma jovem tão bela como
eu” se configura como uma estranha pérola dentro do conjunto da obra de
Truffaut.
segunda-feira, novembro 17, 2014
O juiz, de David Dobkin *
Um filme como “O juiz” (2014) é o tipo de obra que não
parece surgir como uma inspiração de um roteirista ou diretor, mas sim como uma
equação econômica de algum produtor mercenário. Ele deve ter pensado: “Hum,
filmes de tribunal costumam render um lucro praticamente certo”. E daí o nosso
amigo picareta pode ter concluído ainda: “E se eu acrescentar o gênero melodrama
familiar com lições de vida? Eu estarei rico”. O resultado de todas essas
considerações é uma produção que faz lembrar um Frankenstein alquebrado – o roteiro
parece seguir um manual de clichês e apelações dignas de uma telenovela, o seu formalismo
vazio se baseia numa encenação burocrática e fotografia asséptica e destituída
de personalidade, um elenco cujos principais nomes (Robert Duvall e Robert
Downey Jr.) estão com a cabeça em outro lugar (provavelmente constrangidos com
os diálogos que têm de proferir), temas musicais melosos a pontuar os momentos
mais “dramáticos” do filme. Mas o que mais irrita ainda é que “O juiz”
transparece se levar a sério demais, mesmo tomado pela cretinice temática e estética
que exala de forma constante. E toda essa mediocridade se arrasta por intermináveis
141 minutos....
quinta-feira, novembro 13, 2014
O ciúme, de Philippe Garrel ***1/2
O cinema de Philippe Garrel parece obedecer a uma lógica
muito pessoal, quase como se desenvolvesse num universo paralelo. Em termos temáticos,
as tramas de seus filmes giram em torno de sentimentos e sensações marcados
pela crueza e intensidade a flor-da-pele, sem que, entretanto, sucumbam a
arroubos emocionais exagerados, sendo que tais obsessões textuais recebem um
tratamento formal sóbrio e repleto de delicadas nuances estéticas. “O ciúme”
(2013), obra mais recente de Garrel, se enquadra nesses habituais preceitos artísticos
do cineasta. As desventuras amorosas do protagonista Louis (Louis Garrel) são
narradas num estilo de ritmo fluido e rigor plástico notável (o detalhe da câmera
filmando a ação a partir de uma fechadura, por exemplo, é uma sacada visual
engenhosa e marcante). Philippe Garrel estrutura o filme como se fosse um conto
moral pleno de pungência e ironia, mas sem cair em maniqueísmos ou obviedades. A
serena edição de poucos cortes, o roteiro em que os fatos se sucedem como
flashes de pensamento, a direção de fotografia em esmaecido preto e branco e de
enquadramentos expressivos, os discretos e pontuais temas musicais de tons
melancólicos e o elenco de composições dramáticas de sensível naturalismo compõem
uma produção de atmosfera rarefeita e atemporal e que se encerra quase como uma
lembrança fugidia.
quarta-feira, novembro 12, 2014
Drácula - A história nunca contada, de Gary Shore *1/2
Quando lançou “Drácula de Bram Stoker” (1992), Francis Ford
Coppola buscou uma nova perspectiva para o mitológico personagem do horror,
enfatizando um certo caráter romântico e trágico para a criatura. Na criativa
revisão que empreendeu, entretanto, não esqueceu de algo fundamental para que
Drácula permanecesse relevante: ele continuava a ser um vilão assustador e a
estrutura narrativa era de um legítimo conto de horror. E é justamente nesse
ponto que reside o grande equívoco de “Drácula – A história nunca contada”
(2014). A produção dirigida por Gary Shore parece ser um amálgama mal ajambrado
de algumas tendências recorrentes no cinema de fantasia contemporâneo: o revisionismo
pseudo-histórico e realista de personagens clássicos da cultura ocidental, violência
gráfica asséptica, readequação moral de lendas e mitos sob uma perspectiva
politicamente correta. Nessa formatação, Drácula passa a ser uma espécie de
super-herói atormentado e romântico e sua trajetória está mais para uma aguada
aventura épica do que para uma narrativa gótica e sombria. Por mais que haja
uma profusão de mortes brutais e caninos sangrentos, em nenhum momento da trama
há uma efetiva tensão dramática ou uma sensação de medo – o Drácula da produção
em questão é basicamente um “cara de família” cheio de boas intenções. Que
saudades do Christopher Lee seduzindo e mordendo mocinha incautas...
terça-feira, novembro 11, 2014
Carta para a morte, de Mike Mendez ***
O diretor “chicano” Mike Mendez já esteve em Porto Alegre
por ocasião de uma sessão especial do FANTASPOA para o filme “Big ass spider” (2013),
filme esse que pouco impressionou na sua combinação de gênero “monster movie”
com piadinhas infames. A má impressão sobre tal obra, entretanto, não pode ser
motivo para deixar de conferir “Carta para a morte” (2013). O filme em questão é
bem superior ao mencionado trabalho posterior de Mendez – não prima pela
originalidade e nem por grandes vôos criativos, mas é eficiente naquilo que
toda uma produção de horror deve ser (o que, nos dias de hoje, já é um grande mérito).
De vez em quando alguns efeitos visuais digitais fuleiros até incomodam, mas o
senso narrativo do diretor compensa com sobras. A atmosfera sombria e por vezes
de tons góticos, o roteiro bem delineado, os momentos de forte violência gráfica
e mesmo a canastrice simpática do elenco remetem de maneira nostálgica o espectador
ao universo dos filmes B de terror oitentistas. E é até compreensível que “Carta
para a morte” tenha sido diretamente lançado em DVD no Brasil, pois não dá para
imaginá-lo sendo exibido nas assépticas salas de um multiplex.
segunda-feira, novembro 10, 2014
4:44 - O fim do mundo, de Abel Ferrara ***
Por mais que se aventure por vários gêneros cinematográficos,
a lógica principal na filmografia do diretor Abel Ferrara é que tudo se adapte às
suas particulares concepções artísticas e existenciais. “4:44 – O fim do mundo”
(2011) obedece a tal preceito – molda-se na superfície como uma espécie de ficção-científica
apocalíptica, mas aos poucos sua narrativa rarefeita se converte numa incômoda
exposição das obsessões de Ferrara. Assim, sexo desesperado, vício em drogas,
desajuste família e vazio existencial preenchem pontualmente a trama. A encenação
proposta pelo cineasta é austera e criativa na forma que adapta os conceitos
inerentes ao gênero ficção científica de acordo com a contenção formal e a
economia de recursos da obra. Assim, Ferrara induz ao espectador que o fim do
mundo está chegado na elaboração de uma sombria atmosfera e nos diálogos metafóricos
de seus personagens, tornando o clima de desesperança mais palpável do que se
tivesse simplesmente apelado a assépticos efeitos visuais digitais. Ainda que não
tenha a contundência estética e o impacto sensorial de “Melancolia” (2011),
outro filme que versou sobre o final dos tempos sob uma perspectiva mais
contemplativa e ácida, o filme de Ferrara tem o seu encanto perverso na forma
sem concessões com que retrata os dilemas e hipocrisias da humanidade perante
um mundo em colapso.
sexta-feira, novembro 07, 2014
Sétimo, de Patxi Amezcua *1/2
Confesso que nos últimos meses eu tinha voltado a dar crédito
para o cinema argentino. Obras vigorosas como “Viola” (2012), “Algumas garotas”
(2013) e “Relatos selvagens” (2014) mostravam parte de um panorama cinematográfico
disposto a fugir de um padrão asséptico que havia se tornado dominante nas
produções dos hermanos. Dentro dessa linha de pensamento, assistir a “Sétimo”
(2013) acaba sendo uma decepção. O filme não chega a ser exatamente ruim – por vezes,
consegue até ser divertido no seu subtexto ostensivamente misógino. Talvez por
isso o filme pedisse uma abordagem mais irônica e alucinada, algo como aquelas
comédias dementes do cineasta espanhol Alex De La Iglesia (“Mortos de riso”, “Crime
ferpeito”). Do jeito que ficou, algo no gênero “suspense psicológico” de estética
derivativa, a obra do diretor Patxi Amezcua chafurda em clichês narrativos e
numa encenação amorfa, abusando de um formalismo bastante burocrático e de um
elenco baseado em interpretações que oscilam entre o “piloto automático” e o
francamente canastrão. Para alguns espectadores é provável que “Sétimo” se
mostre “diferente” e tenha alguma seriedade artística por ser falado em
espanhol e ter Ricardo Darin batendo ponto nos créditos. Mas convenhamos: se
fosse falado em inglês, o filme passaria batido como a mais rasteira produção
norte-americana (tipo aquelas que passam nos telecines da vida). E o seu plano
final, uma grande tomada aérea noturna de Buenos Aires tipo cartão postal para
turista, talvez sintomático da absoluta falta do que dizer e mostrar em “Sétimo”.
quarta-feira, novembro 05, 2014
O grande mestre, de Wong Kar-Wai ***1/2
Mesmo estranhando alguns trechos mais contemplativos e da
abordagem emocional um tanto distanciada, os apreciadores mais tradicionais do
gênero artes marciais poderão se divertir com “O grande mestre” (2013). O filme
do diretor Wong Kar-Wai apresenta alguns momentos antológicos nas bem
elaboradas seqüências de lutas que pontuam a narrativa. Ao contrário da
fantasia extrema de golpes impossíveis e lutadores que voam de produções como “O
tigre e o dragão” (2000) e “O clã das adagas voadoras” (2004), “O grande mestre”
se vincula a uma linha mais realista em seus trechos de pancadaria (até porque
a trama é baseada em eventos reais importantes da história da China). Isso não é
impedimento, entretanto, para que Wong Kar-Wai não deixe impresso em cada
fotograma a sua característica elegância formal em termos de encenação e
montagem. Sua habitual sutileza também se manifesta na rarefeita composição
dramática da narrativa, repleta de simbologias e subtextos nas atitudes,
diálogos e expressões dos personagens, fazendo de sua obra um estranho e
sedutor conto moral – a dinâmica de lutas e intrigas políticas serve como um
reflexo dos valores e dilemas de uma nação em um complexo contexto histórico.
terça-feira, novembro 04, 2014
Festa no céu, de Jorge R. Gutierrez ***
A participação de Gullermo Del Toro na produção de “Festa no
céu” (2014) não é gratuita – a animação dirigida por Jorge R. Gutierrez é uma
bizarrice bem divertida e que faz lembrar alguns dos melhores e mais idiossincráticos
filmes de Del Toro como “Cronos” (1993) e “O labirinto do fauno” (2006). O
grafismo da obra é de uma beleza por vezes exuberante na sua combinação de estilização
berrante e toques sombrios, em que os elementos tradicionais da festa dos
mortos da cultura mexicana são incorporados na particular estética do filme com
notável fluidez. Essa abordagem estética em que bom humor e morbidez se fundem
com naturalidade se expande também para a trama – a estrutura tradicional de
uma história infantil de tom fabular é mantida, mas permeada com um certo senso
de humor perverso e uma visão bastante crítica da sociedade patriarcal machista
inerente da sociedade mexicana (e também do próprio mundo ocidental de matiz
cristã católica). A própria natureza maniqueísta na diferenciação entre heróis
e vilões vai se tornando difusa com o desenrolar do roteiro, o que torna “Festa
no céu” uma obra em forte sintonia com os tempos atuais.
segunda-feira, novembro 03, 2014
Sob a pele, de Jonathan Glazer ***1/2
Na superfície da premissa de sua trama, “Sob a pele” (2013)
aparenta se vincular a uma ficção científica genérica – a alienígena (Scarlett Johansson)
que se esconde sob uma bela aparência física que seduz incautos e depois os
aprisiona e mata. Mesmo na sua leitura simbólica, não há grandes novidades,
fazendo com que a trajetória existencial da protagonista sirva como uma espécie
de metáfora da “destruição sentimental”, em que o indivíduo que desconhece as
emoções humanas e que depois de expostas a ela acaba sucumbindo pela desordem
psíquica provocada por tal contato. O que diferencia de forma expressiva a
produção em questão é o idiossincrático tratamento formal concebido pelo
diretor Jonathan Glazer. Ao invés de tinturas épicas, o filme se desenvolve
como uma sóbria e melancólica narrativa, formatada em truques estéticos
eficientes em termos de encenação, fotografia e montagem, num clima de
estranheza que se acentua pela dissonante trilha sonora e pela abordagem
emocional distanciada. A própria figura Scarlett Johansson representa uma espécie
de síntese das ideias artísticas de Glazer: a composição dramática da atriz é
inexpressiva, mas de forte presença cênica, reforçando a atmosfera de esquisitice
e desesperança da obra.
segunda-feira, outubro 27, 2014
Uma família em Tóquio, de Yoji Yamada ***
Na comparação com “Era uma vez em Tóquio” (1953), obra da
qual é uma refilmagem, “Uma família em Tóquio” (2013) claramente sai perdendo.
O diretor Yoji Yamada não apresenta o mesmo rigor estético característico de
Yasugiro Ozu – ao invés da exatidão daqueles expressivos planos-sequência
estáticos do filme original, predomina um estilo mais tradicional de narrativa.
Além disso, também não há aquela desconcertante abordagem emocional mais
contida inerente ao estilo de Ozu, com Yamada se vinculado a um formato
clássico de melodrama, ainda que reciclado para a época atual. Apesar da
desvantagem na comparação, essa produção mais recente está longe de ser um mau
filme (até porque tentar recriar aquele que é considerado por muitos o melhor
trabalho da cinematografia japonesa é uma tarefa bem ingrata). É inegável a
capacidade de “Uma família em Tóquio” envolver e comover o espectador com o
humanismo que flui naturalmente tanto da trama de viés realista quanto do sutil
formalismo impresso por Yamada. Os dilemas e conflitos que predominavam em “Era
uma em Tóquio” são adaptados com sensibilidade para o mundo contemporâneo e
ressaltam ainda mais a perenidade da obra-prima de Ozu.
sexta-feira, outubro 24, 2014
Relatos selvagens, de Damián Szifron ***
Dentro do panorama atual do cinema argentino, repleto de
melodramas e comédias de estrutura formal e temática convencional que remetem a
quadradas produções televisivas, um filme como “Relatos selvagens” (2014) acaba
sendo uma grata surpresa. As referências estéticas que pontuam a narrativa da
produção dirigida por Damián Szifron fogem do previsível (ainda que o estilo do
cineasta tenha um certo caráter asséptico na sua concepção visual): atmosferas
tensas e sórdidas e explosões de violência que lembram o cinema italiano de
horror e suspense dos anos 60 e 70 (por vezes, por exemplo, dá a impressão que
estamos ouvindo algum tema do Goblin, banda que teve parceria fértil com Dario
Argento), o ritmo narrativo cartunesco do melhor da cinematografia de Alex de
La Inglesia, o senso de humor bagaceiro e ácido das comédias de Pedro Almodóvar
– nesse último caso, não é surpresa que a própria El Deseo tenha produzido “Relatos
selvagens”. Tais influências servem como moldura adequada para os contos de
violência e vingança que compõem o filme. A condução da narrativa é eficiente e
mantém com consistência o clima de perversa diversão para o público, com o
roteiro trazendo também um intrigante subtexto, em que a profusão de
brutalidade e humor negro também ilustram uma espécie de radiografia
existencial da classe média ocidental perante aqueles que seria seu supostos
algozes (Estados, classes baixas, criminalidade e seus próprios pares de
classe). Nesse sentido, “Relatos selvagens” se revela uma obra emblemática no
sentido de captar o espírito de uma época.
quinta-feira, outubro 23, 2014
Terror 2000, de Christoph Schlingensief *
A proposta artística do diretor alemão Christoph
Schlingensief para “Terror 2000” (1994) é interessante numa primeira impressão,
juntando a estranha ironia política-comportamental de Fassbinder (a presença de
Udo Kier não é gratuita), a fuleiragem demente das produções da Troma e o gosto
por figuras e situações esquisitas dos melhores filmes de John Waters. O
resultado final dessa equação, entretanto, é bem indigesta e desinteressante.
Como narrativa, a obra de Schlingensief naufraga pela ausência de fluência e
por uma tosquice formal enjoada. Se nas primeiras cenas os exageros e
escatologias da trama até conseguem por vezes serem engraçados, com o passar do
tempo se tornam apenas cansativos e beirando o insuportável. Dá para sentir em
alguns momentos que por trás de toda as loucuras e excessos que permeiam o
filme há um sentido político e existencial a retratar uma espécie de condição
da “alma alemã”. Mas essa pretensão de subtexto acaba se perdendo diante da
frouxidão da direção de Schlingensief.
quarta-feira, outubro 22, 2014
Viva a liberdade, de Roberto Andò ***
O diretor italiano Roberto Andò formata “Viva a liberdade” (2013)
a partir de uma estrutura narrativa convencional de uma comédia de erros. A
trama focaliza as confusões e enganos provocados por dois gêmeos, um senador em
crise existencial e um professor recém saído de uma clínica psiquátrica, que
por condições aparentemente involuntárias do destino acabam trocando de lugar.
Num primeiro momento, o conflito do roteiro navega por um clichê básico – as diferenças
de temperamento e concepções de vida dos irmãos seriam o mote principal da
graça e do sentido do filme. Ocorre, entretanto, que com o desenrolar da trama
esse conceito vai ficando cada vez mais difuso. Elementos do passado dos
protagonistas vem à tona sutilmente e revelam que a força da relação dos dois
talvez esteja nas semelhanças filosóficas e culturais que os unem. Esse tom
obscuro da narrativa torna a obra cada vez mais intrigante e acaba evidenciando
um notável caráter simbólico do filme, em que a complexidade do relacionamento
entre os irmãos e também com aqueles que os rodeiam refletem a própria condição
singular da política e da sociedade italianas. Dessa forma, não é por acaso que
em determinado momento da produção aparece um vídeo do mestre Fellini desancando
autoridades e políticas: os delírios fellinianos pairam como discreta influência
dentro das curiosas soluções estéticas e temáticas estabelecidas por Andò em “Viva
a liberdade”.
terça-feira, outubro 21, 2014
Trash - A esperança vem do lixo, de Stephen Daldry *
O diretor britânico Stephen Daldry até que causou uma boa
impressão com “Billy Elliot” (1999) e “As horas” (2001), seus filmes iniciais.
Ainda que bastante convencionais em termos formais, traziam vigor na encenação
e considerável consistência dramática. Já nas duas produções que sucederam, os
medíocres “O leitor” (2008) e “Tão forte e tão perto” (2011), as narrativas de
ritmo arrastado se desenvolviam como novelões de excessos sentimentais. E agora
em “Trash – A esperança vem do lixo” (2014) dá para dizer que Daldry chega a um
novo patamar na sua carreira – ele conseguiu fazer um filme francamente ruim
como poucos. A obra parece seguir a partir de uma indigesta mistura dirigida
com uma mão pesada e burocrata – uma combinação nada sutil e sem inspiração de “Quem
quer ser milionário?” (2008) e “Cidade de Deus” (2002) que se estrutura num
roteiro derivativo no gênero “caça ao tesouro” (lembra a horrorosa franquia “A
lenda do tesouro perdido”). O negócio se torna ainda pior quando se evidencia
uma trama de visão preconceituosa e estereotipada da realidade brasileira e
atores nativos deixando aflorar a canastrice com toda a intensidade. No cômputo
geral, de tão patético o filme até acaba se tornando engraçado!
Assinar:
Postagens (Atom)