Benedetta, de Paul Verhoeven ****
A fé exige um princípio de loucura. Exige a supressão da lógica, da razão e da ética para que se acredite em desígnios morais discutíveis de uma suposta entidade metafísica. Note-se: essa exigência é válida para qualquer religião. Assim, não dá para fazer uma gradação de qual religião, ou mesmo fé, é mais “racional” que a outra, pois todas vão exigir essa crença em algo que nunca se materializou. O que pode variar é a forma burocrática com que cada seita, culto ou coisa parecida administrará os seus princípios místicos (ou seja, as vontades divinas) e o comportamento de seus seguidores. É claro que isso que eu escrevi é uma versão resumida de uma visão existencial que é amplamente discutida em diversas obras (aliás, nesse sentido, recomendo bastante a leitura de dois livros sensacionais - “Pela bandeira do paraíso”, de John Krakauer, e “O amor impiedoso”, de Slavov Zizek).
Também é relevante ressaltar outro aspecto – é evidente que dentro de uma religião formatada existe uma quantidade considerável, às vezes até a maioria, de indivíduos que não acredita na ladainha mística, mas que mesmo assim “seguem”, ainda que aos trancos e barrancos, as tais leis divinas. Por quê? Ora, porque ser um cidadão de bem seguidor da vontade de um deus lhe dá legitimidade moral perante a sociedade em que vive e por vezes até lhe dá o direito de perpetrar algumas barbaridades sob a desculpa de apenas seguir as ordens de um ser supremo. Exemplos? Colonialismo, inquisição, cruzadas, sacrifícios e afins. O grande mentor da presente cruzada mundial da extrema-direita, Steve Bannon, costuma dizer que não é necessário acreditar nos princípios cristãos para se arrogar como um crente e usar essa força moral-mística para colocar em prática o plano da retomada da supremacia branca cristã ocidental.
Claro que nada do que eu escrevi aqui até agora é uma grande novidade. Mas acredito que é um preâmbulo necessário para tentar dar uma dimensão da genialidade do diretor holandês Paul Verhoeven em “Benedetta” (2021), pois ele consegue preservar toda a complexa dimensão humana e existencial de tais questões religiosas as formatando dentro de uma estrutura narrativa eletrizante de thriller erótico. Os meandros e contradições do cristianismo já tinham sido abordados em algumas obras marcantes da história do cinema, como o pastor cético de “Luz do inverno” (1963) de Ingmar Bergman ou as provações de jesuítas no Japão do shogunato em “Silêncio” (2016) de Martin Scorsese. O interessante, entretanto, é que os filmes mencionados preservavam uma rigorosa (e asceta) abordagem formal e temática, enquanto que “Benedetta” parte para uma concepção narrativa de teor grandioso e espetacular. Por vezes, fiquei com a impressão até de assistir ao clássico verhoeveniano “Instinto selvagem” (1992) com Jesus Cristo entre os principais personagens! Essa propensão para o exagero e para o barroco, entretanto, sempre fez parte de senso de humor perverso de Verhoeven. No meio dessa junção furiosa e escandalosa de sexo, violência e religião há sempre uma fina ironia a perturbar (e encantar) o espectador.
O universo de uma Idade Média tomada pela doença, pelo fanatismo religioso e por uma forte carnalidade não é estranho para Verhoeven, visto um dos grandes trabalhos de sua filmografia, “Conquista sangrenta” (1985). Em “Benedetta”, entretanto, ele vai mais fundo na desconstrução da opressão e hipocrisia do cristianismo. A saga da protagonista, uma freira em busca da santificação em vida, descortina de maneira brutal e sardônica os mecanismos de poder dentro da religião cristã (mas que poderia se aplicar a qualquer outra linha estruturada de devoção metafísica). A tal crença em uma entidade divina se divide basicamente entre a credulidade dos ignorantes, os delírios enlouquecidos de poder da personagem principal e a frieza pragmática das autoridades religiosas (na realidade, essas bem cientes da inexistência de deus, mas que reafirmam sua presença para justificar seus privilégios econômicos e sociais). Nesse ambiente de frequentes conspirações e traições, o erotismo à flor-da-pele de algumas sequências é muito mais que escandaloso: são os verdadeiros sopros de humanidade e sentimento dentro de uma ambientação de sufocante opressão mística. Assim, lapidar a imagem de uma virgem Maria e a transformar em um consolo não se converte apenas em mero sensacionalismo: representa também dar alguma utilidade verdadeira e prazerosa para um símbolo do obscurantismo repressor e desumano.
Durante toda a narrativa de “Benedetta” perpassa uma dúvida entre os personagens: qual seria afinal a vontade desse deus diante de toda essa saga de brutal busca pelo poder? No final das contas, Verhoeven parece no dizer de maneira maliciosa que os misteriosos desígnios divinos na verdade de misteriosos não têm coisa alguma. Apenas escondem o vazio existencial e ético de algo que não existe...