quarta-feira, março 28, 2018

A luta do século, de Sérgio Machado ***1/2


A abordagem mais óbvia que se poderia dar à rivalidade entre os boxeadores Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield seria aquela em tom folclórico, caindo no francamente jocoso. Afinal, ao longo de três décadas de vários enfrentamentos nos ringues e fora deles os próprios lutadores trataram de fornecer uma matéria-prima cômica, involuntariamente ou não, além dos meios de comunicação terem acentuado bastante o lado patético do conflito entre tais indivíduos. No documentário “A luta do século” (2016), o diretor Sérgio Machado também se vale dessa visão irônica que ressalta o lado pitoresco de tais figuras e de algumas situações que protagonizaram. Tal concepção, entretanto, é predominante no terço inicial da narrativa. Em um processo criativo de fortes tons dialéticos, no restante do filme o cineasta se dedica a fazer uma perturbadora e cruel dissecação dos reais significados que envolvem as disputas pugilísticas e mesmo existenciais entre esses dois homens. Aos poucos, aquilo que parecia anedótico e divertido vai ganhando uma conotação mais complexa e melancólica ao evidenciar o despreparo emocional e cultural de Todo Duro e Holyfield em lidarem com os diversos aspectos da notoriedade que obtiveram quando estavam no auge de suas respectivas carreiras esportivas. No ocaso de suas trajetórias, as duras consequências econômicas e sociais lhe atingem com uma brutalidade devastadora. Relegados novamente à pobreza de origem, conformam-se a pequenos bicos, favores de amigos e familiares, confortos místicos de seitas religiosas e exploração de políticos. Ou seja, o perfeito retrato simbólico de milhões de brasileiros. Incapazes de uma reflexão mais profunda sobre as causas de suas insuficiências financeiras e de seus padecimentos físicos, acabam condenados a repetirem uma eterna luta que nunca terá fim, presos em personagens que eles mesmos não conseguem distinguir onde termina a fantasia e começa a realidade. Machado consegue um equilíbrio artístico notável entre a comicidade natural da primeira parte do filme com o direcionamento dramático posterior, fazendo com que esses diferentes planos narrativos convivam com uma naturalidade impressionante. Além disso, o discurso humanista do subtexto de “A luta do século” brota com sutileza e contundência dentro de uma dinâmica narrativa que combina farto material audiovisual de arquivo com muito bem sacadas tomadas próprias sem precisar apelar para previsíveis truques jornalísticos.

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