quinta-feira, dezembro 27, 2018

O beijo no asfalto, de Murilo Benício ***1/2


Pode-se dizer que a narrativa na versão cinematográfica de “O beijo no asfalto” (2018) dirigida por Murilo Benício avança de forma linear. Isso não quer dizer, entretanto, que estamos diante de mais uma adaptação convencional da obra de Nelson Rodrigues. O cineasta envereda por uma escolha estética bastante intrigante, dividindo a encenação em três planos: o ensaio em uma mesa com os atores, a ação que se desenvolve em âmbito de cinema e a dramatização como peça teatral. Em todas essas direções, sempre fica presente de maneira visível para o espectador uma desconstrução da ilusão de “realidade” – os artistas discutem as nuances do texto original, as câmeras interagem de maneira ostensiva com o elenco, a plateia no teatro se mostra presente em outras passagens. Tais detalhes formais não levam para um distanciamento emocional em relação àquilo que se vê na tela, mas sim para explicitar a atemporalidade da dramaticidade e lucidez do texto original, além de acentuar o vigor da encenação proposta por Benício. A sensacional direção de fotografia de Walter Carvalho a valorizar um expressionista preto-e-branco colabora para a sensação de uma sombria e sufocante atmosfera de opressão e hipocrisia moral. A arejada modernidade dessa concepção artística não se resume a uma mera experiência de estilização, fazendo com que o texto de Nelson Rodrigues ganhe uma perturbadora ressonância existencial com o tenebroso cenário sócio-político do Brasil atual.

3 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

O novo O Beijo no Asfalto comprova que a obra de Nelson Rodrigues sobreviveu ao teste do tempo e que, novamente, revela um Brasil consumido pelo conservadorismo.Saiba mais no meu blog.
https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2018/12/cine-especial-clube-de-cinema-de-porto.html

eron duarte fagundes disse...

André, embora eu discorde do adjetivo linear para o filme, ao menos no que eu entendo para a palavra linear (e creio que o sentido que tu dás é provavelmente outro), teu texto capta muito bem todas as realidades do filme de Benício. E fecha pondo aquilo que parece desde o início a intenção central dos envolvidos na realização: qual é o sentido da arte no mundo brasileiro de hoje?

André Kleinert disse...

Quando eu falo em narrativa linear, comento no sentido de que ela não é fragmentada, que se sucede dentro de uma linha temporal convencional (o que não considero demérito), ainda que a encenação enverede por diversos formatos.