sexta-feira, janeiro 04, 2019

Estorvo, de Ruy Guerra ***


A relação artística entre Ruy Guerra e Chico Buarque é longa e prolífica. Principalmente nos anos 70, rendeu algumas canções e peças teatrais memoráveis. Assim, o cineasta adaptar um livro do cantor e compositor pareceu uma consequência natural. O resultado final, “Estorvo” (1998), está bem distante de ser uma obra-prima, mas ainda assim revela perturbadoras inquietações criativas. Para começar, a síntese entre cinema e literatura na produção não se conjuga de forma tão fluida e natural –Guerra não se mostra interessado em somente adaptar a trama da obra literária dentro de uma linguagem cinematográfica convencional. Ele parece obcecado pela palavra, pela nuances do texto, e procura encaixar a sonoridade do discurso dentro de um fluxo sensorial marcado pelo lirismo e sordidez. A sucessão daquilo que ocorre na tela obedece a um pensamento desordenado e fragmentado do protagonista (Jorge Perrugoria), fazendo com que a estética e a atmosfera do filme se guiem por uma lógica de subjetividade que por vezes beira o delirante. A abordagem naturalista é evocada de vez em quando na narrativa, mas logo é manchada por um desordenamento formal e existencial predominante na visão artística do diretor. As escolhas de Guerra não são gratuitas, pois na confusa saga do personagem principal se escondem lúcidos questionamentos sócio-políticos-intimistas que desembocam em soluções formais e temáticas desconcertantes. A jornada narrativa de “Estorvo” é irregular e difícil, mas em sua conclusão a impressão é que ela ficará grudada em nosso imaginário como uma lembrança entre o incômodo e o prazeroso.

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