Anti-Dicas de Cinema: o blog cinematográfico de André kleinert
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é
porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, novembro 16, 2022
Benedetta, de Paul Verhoeven ****
A fé exige um
princípio de loucura. Exige a supressão da lógica, da razão e da
ética para que se acredite em desígnios morais discutíveis de uma
suposta entidade metafísica. Note-se: essa exigência é válida
para qualquer religião. Assim, não dá para fazer uma gradação de
qual religião, ou mesmo fé, é mais “racional” que a outra,
pois todas vão exigir essa crença em algo que nunca se
materializou. O que pode variar é a forma burocrática com que cada
seita, culto ou coisa parecida administrará os seus princípios
místicos (ou seja, as vontades divinas) e o comportamento de seus
seguidores. É claro que isso que eu escrevi é uma versão resumida
de uma visão existencial que é amplamente discutida em diversas
obras (aliás, nesse sentido, recomendo bastante a leitura de dois
livros sensacionais - “Pela bandeira do paraíso”, de John
Krakauer, e “O amor impiedoso”, de Slavov Zizek).
Também é relevante
ressaltar outro aspecto – é evidente que dentro de uma religião
formatada existe uma quantidade considerável, às vezes até a
maioria, de indivíduos que não acredita na ladainha mística, mas
que mesmo assim “seguem”, ainda que aos trancos e barrancos, as
tais leis divinas. Por quê? Ora, porque ser um cidadão de bem
seguidor da vontade de um deus lhe dá legitimidade moral perante a
sociedade em que vive e por vezes até lhe dá o direito de perpetrar
algumas barbaridades sob a desculpa de apenas seguir as ordens de um
ser supremo. Exemplos? Colonialismo, inquisição, cruzadas,
sacrifícios e afins. O grande mentor da presente cruzada mundial da
extrema-direita, Steve Bannon, costuma dizer que não é necessário
acreditar nos princípios cristãos para se arrogar como um crente e
usar essa força moral-mística para colocar em prática o plano da
retomada da supremacia branca cristã ocidental.
Claro que nada do
que eu escrevi aqui até agora é uma grande novidade. Mas acredito
que é um preâmbulo necessário para tentar dar uma dimensão da
genialidade do diretor holandês Paul Verhoeven em “Benedetta”
(2021), pois ele consegue preservar toda a complexa dimensão humana
e existencial de tais questões religiosas as formatando dentro de
uma estrutura narrativa eletrizante de thriller erótico. Os meandros
e contradições do cristianismo já tinham sido abordados em algumas
obras marcantes da história do cinema, como o pastor cético de “Luz
do inverno” (1963) de Ingmar Bergman ou as provações de jesuítas
no Japão do shogunato em “Silêncio” (2016) de Martin Scorsese.
O interessante, entretanto, é que os filmes mencionados preservavam
uma rigorosa (e asceta) abordagem formal e temática, enquanto que
“Benedetta” parte para uma concepção narrativa de teor
grandioso e espetacular. Por vezes, fiquei com a impressão até de
assistir ao clássico verhoeveniano “Instinto selvagem” (1992)
com Jesus Cristo entre os principais personagens! Essa propensão
para o exagero e para o barroco, entretanto, sempre fez parte de
senso de humor perverso de Verhoeven. No meio dessa junção furiosa
e escandalosa de sexo, violência e religião há sempre uma fina
ironia a perturbar (e encantar) o espectador.
O universo de uma
Idade Média tomada pela doença, pelo fanatismo religioso e por uma
forte carnalidade não é estranho para Verhoeven, visto um dos
grandes trabalhos de sua filmografia, “Conquista sangrenta”
(1985). Em “Benedetta”, entretanto, ele vai mais fundo na
desconstrução da opressão e hipocrisia do cristianismo. A saga da
protagonista, uma freira em busca da santificação em vida,
descortina de maneira brutal e sardônica os mecanismos de poder
dentro da religião cristã (mas que poderia se aplicar a qualquer
outra linha estruturada de devoção metafísica). A tal crença em
uma entidade divina se divide basicamente entre a credulidade dos
ignorantes, os delírios enlouquecidos de poder da personagem
principal e a frieza pragmática das autoridades religiosas (na
realidade, essas bem cientes da inexistência de deus, mas que
reafirmam sua presença para justificar seus privilégios econômicos
e sociais). Nesse ambiente de frequentes conspirações e traições,
o erotismo à flor-da-pele de algumas sequências é muito mais que
escandaloso: são os verdadeiros sopros de humanidade e sentimento
dentro de uma ambientação de sufocante opressão mística. Assim,
lapidar a imagem de uma virgem Maria e a transformar em um consolo
não se converte apenas em mero sensacionalismo: representa também
dar alguma utilidade verdadeira e prazerosa para um símbolo do
obscurantismo repressor e desumano.
Durante toda a
narrativa de “Benedetta” perpassa uma dúvida entre os
personagens: qual seria afinal a vontade desse deus diante de toda
essa saga de brutal busca pelo poder? No final das contas, Verhoeven
parece no dizer de maneira maliciosa que os misteriosos desígnios
divinos na verdade de misteriosos não têm coisa alguma. Apenas
escondem o vazio existencial e ético de algo que não existe...
O diretor neozelandês Taika Waititi vinha em uma ascendente
interessante. Depois do divertido e promissor “O que fazemos nas sombras”
(2014), ele foi responsável por umas das obras mais personalíssima e engraçada
dos Estúdios Marvel, o ótimo “Thor: Ragnarok” (2017). Assim, as expectativas
para “Jojo Rabbit” (2019) eram consideráveis. Os 15 minutos iniciais do filme,
basicamente a parte em que o protagonista fica no acampamento para crianças
nazistas, são antológicos e honram as boas promessas geradas em torno de
Waititi. São de um humor alucinado, ácido, com uma encenação tão pirada que até
faz lembrar o Monty Pyton. Depois, a magia se desfaz e a impressão que fica é
que Waititi se adequa a alguns preceitos acadêmicos óbvios de filmes de 2ª
Guerra para sugerir uma respeitabilidade artística. Não chega a ser exatamente
ruim, só é dolorosamente óbvio e previsível, uma espécie de variante mais
engraçadinha de “A vida é bela” (1997). Nem mesmo a boa sacada imagética/textual
de um Hitler como amigo imaginário consegue se sustentar de maneira
convincente. Pelo menos a conclusão poética de “Jojo Rabbit” tira um pouco a
obra da vala comum e mostra que Waititi não é um talento totalmente
domesticado.
O gênero dos filmes de guerra não é estranho para o diretor
britânico Sam Mendes. Ele dirigiu “Soldado anônimo” (2005), sardônica obra a
refletir sobre o desigual conflito no Golfo Pérsico entre Estados Unidos e
Iraque. A irônica e desapaixonada narrativa evidenciava uma ácida reflexão
sobre o vazio ético daquela guerra, retirando qualquer carga patriótica ou
ufanista de sua abordagem. Assim, causa estranheza que Mendes tenha entregue um
trabalho tão asséptico e convencional em “1917” (2019), que narra episódios
baseados em fatos reais que se sucederam no front europeu na I Guerra Mundial.
A princípio, o filme sugere uma certa ousadia formal ao sugerir que toda a
trama será concentrada em uma encenação sem cortes. Tal recurso narrativo,
entretanto, pouco acrescenta ao filme em termos sensoriais, dando até por vezes
a impressão que se está assistindo a alguém jogando um game de guerra. Essa
impressão é acentuada pelo próprio roteiro do filme, em que fatos se sucedem de
maneira esquemática e apelativa. Falta profundidade psicológica e efetiva
densidade dramática para as ações da trama e seus personagens – tudo se
desenvolve quase mecanicamente a reproduzir de maneira algo preguiçosa os
clichês de heroísmo e sacrifício do gênero. O mofado resultado final de “1917”
mais evidencia uma obra protocolar para marcar os 100 anos do final do conflito
do que uma pretensão de se entregar um filme realmente memorável.
Depois da obra-prima “A bruxa” (2016), o diretor
norte-americano Robert Eggers volta a investir no horror calcado em fortes
simbologias em “O farol” (2019). Se o resultado final não é tão expressivo
quanto a obra anterior, é de se convir que ainda assim o filme em questão tem
momentos memoráveis. O cineasta abdica de facilidades narrativas e investe em
um formalismo de notável rigor estético e em uma encenação que funde sem
cerimônias o naturalismo e o delirante, às vezes resvalando até em uma concepção
teatral desconcertante (nesse sentido, a interpretação possessa de William
Dafoe é um enfático indicativo). A tenebrosa fotografia em preto e branco, o
grafismo brutal de algumas sequências e a soturna ambientação da obra
claramente sugerem o uso de alguns preceitos básicos do gênero horror, mas com
o desenvolver da trama tais quesitos se distorcem a favor de um intrincado jogo
cênico e textual em que os limites da realidade e da fantasia se mostram cada
vez mais tênues, jogando o filme em uma bizarra e perturbadora área artística-existencial
que evoca tanto uma jornada devastadora sobre a natureza humana quanto um conto
a expor de maneira visceral o atávico conflito entre o homem e a natureza.
Como já escrevi em alguns textos anteriores neste blog, não
tenho o costume de falar de coisas pessoais neste espaço. Tendo em vista,
entretanto, que fiquei bastante tempo sem escrever por aqui, achei que era oportuno
eu dar algumas explicações do que ocorreu na minha vida nos últimos meses.
Não sou aquilo que se pode chamar de um escritor
“profissional”, no sentido de ser alguém que vive da escrita. Também não gosto
de dizer que se trata de “hobby” porque sinto uma grande necessidade em
determinados momentos de me expressar escrevendo as minhas impressões. Acredito
ainda que o simples gosto pela escrita ou mesmo uma certa facilidade para
elaborar textos não implica necessariamente em uma grande facilidade no ato de
escrever. Isso porque quem tem o costume de publicar aquilo que escreve na
maioria das vezes procurará ter o cuidado em ter um encadeamento lógico de
ideias, um certo cuidado formal, até mesmo oferecer alguma relevância para
aquilo que está produzindo. Assim, em boa parte dos anos em que escrevi para
esse blog procurei estabelecer uma certa autodisciplina ao elaborar meus
textos, no sentido de que boa parte daquilo que a que assistisse nos cinemas ou
em outras mídias (canal a cabo, DVD) fosse comentado nesse espaço.
Bem, essa pequena digressão acima é para tentar justificar
esse longo período sem escrever, pois a tal autodisciplina que mencionei também
exige um certo tempo livre no dia para que eu pudesse refletir e produzir os
textos desse blog. Conforme já disse no início desse texto, não sou um escritor
profissional. O que sou na verdade é um funcionário público que gosta muito de
cinema (e outras formas de expressão cultural) e tem a necessidade de expor
suas ideias sobre os filmes que vê. Assim, nas horas vagas da minha atividade
profissional e de algumas outras obrigações pessoais sempre procurei
estabelecer esse hábito da escrita e publicação virtual. Dessa forma, o item
tempo sempre foi essencial para a existência desse blog, assim, é claro, como
uma relativa calma existencial (ou simplesmente cabeça fria) para poder exercer
alguma reflexão e botar as ideias na página em branco do word. Ah, e tempo
também para poder ver os filmes...
Ocorre que a partir de agosto de 2019 a minha vida pessoal
entrou em um grande turbilhão emocional, em que tempo se tornou algo escasso e
várias preocupações tomaram a minha mente. Nessa época, minha esposa Mariana,
que se encontrava grávida, foi internada com um quadro grave de pré-eclâmpsia.
Para aqueles que não conhecem essa doença (confesso que tomei conhecimento dela
quando a Mariana foi internada), em língua de leigo seria basicamente um mal
que acomete as grávidas fazendo com que a pressão delas fique constantemente
alta e a placenta fica seriamente prejudicada e passa pouca alimentação para o
bebê. Ou seja, a gravidez se torna de risco. A grande batalha em situações como
essa é tentar prolongar ao máximo o período de gestação da criança que
certamente nascerá prematura. Quando internada, minha esposa estava com 24
semanas de gestação, o que fazia com que o parto naquele momento se tornasse
muito arriscado e com altas chances de óbito da nossa bebê. No início, a
Mariana estava internada no hospital Divina Providência, mas devido à complexidade
de sua situação foi transferida para o hospital São Lucas, da PUC, cujo setor
materno-infantil era referência-modelo no nosso Estado. Conseguimos segurar por
mais duas semanas a gravidez dela, e com 26 semanas e 6 dias de gestação,
pesando 484 gramas, a nossa filha, a Lola, nasceu. Devido ao trabalho de alta
qualificação e incansável de profissionais da UTI neonatal do Hospital São
Lucas, onde ficou internada por quase 7 meses, e sem esquecer também das
importantes ações prévias do setor de obstetrícia dessa mesma instituição
hospitalar, a Lola não apenas sobreviveu como apresentou uma progressiva e
impressionante melhora em sua qualidade de vida. Seria muito cômodo vir aqui e
dizer que tudo isso se tratou de um milagre divino, mas o que realmente presenciamos
foi o fruto da competência, estudo e dedicação de todos essas pessoas (médicas
e médicos, técnicas e técnicos, enfermeiras). Cada medida adotada por esses
profissionais vinha com tanto embasamento técnico-científico, entusiasmo e
carinho que acabamos adquirindo com o tempo mais segurança e esperança de que
tudo daria certo.
Nesse ponto do meu relato, quero destacar um aspecto muito
importante, dentro de outros tantos, que aprendi nessa situação de pai de uma
prematura extrema com quem diariamente ficava dentro de uma UTI neonatal por
todo esse longo tempo de internação da Lola. A constante presença de pai e mãe
junto ao bebê prematuro é fundamental para sua sobrevivência, recuperação e bem
estar. Isso não é lição de auto ajuda ou algum misticismo. É ciência mesmo,
comprovada pela experiência. A criança reconhece seus pais, sente-se estimulada
pela presença deles. Na UTI, procurávamos dar todo o nosso carinho possível,
acompanhávamos boa parte das ações médicas, até ajudávamos no que podíamos os profissionais
que lá trabalhavam. Para que essa minha participação ativa fosse possível tive
a boa ventura de ser funcionário público municipal de Porto Alegre, o que
possibilitou que eu obtivesse e renovasse por mais de uma vez a minha LTF
(licença para tratamento de familiar). Na UTI, presenciei várias situações em
que os pais não podiam permanecer acompanhando seus bebês internados porque não
dispunham da possibilidade de uma licença como essa, somente a licença
paternidade de 20 dias. Ou seja, se a criança ficasse mais de 20 dias
internadas, e eram vários os casos em que isso ocorria, a grande maioria dos
pais não tinha a possibilidade de um acompanhamento mais constante de seus
filhos. Uma LTF como a que eu tirei não é um privilégio (como a mídia oficial e
boa parte da sociedade gosta de pregar), mas sim um direito social que todos os
pais deviam ter. É uma medida humana, necessária, sadia. Para muitos o que
estou dizendo pode soar anacrônico, afinal o Estado do Bem Estar Social vem
sendo avacalhado sistematicamente por boa parte dos governantes no mundo e pela
grande imprensa (principalmente a do Brasil). O que posso dizer é que um
direito como esse foi duramente conquistado, exigiu muita luta e tempo para ser
implementado e consolidado. Só que para tirá-lo basta uma maioria de direita em
algum congresso ou assembleia, e assim ele vai para o espaço. Não se trata de
mera pregação de uma teoria conspiratória. Na atual gestão do prefeito
Marchezan, o plano de carreira dos servidores municipais foi sistematicamente destruído,
fazendo com que vários cargos públicos necessários para suprir serviços
essenciais para a sociedade se tornassem pouco atrativos para atrair bons
profissionais nos concursos públicos, além de arrochar os salários daqueles que
já trabalham na Administração Municipal. E os próximos passos declarados nessa
marcha insensata e cruel de Marchezan seria atacar uma série de direitos
sociais dos servidores, o que acabaria inclusive se refletindo na qualidade do
serviço público prestado para a população. Com a derrota de Marchezan no
primeiro turno estamos livres disso? É claro que não. Sebastião Melo é um
político de direita que também acredita no Estado Mínimo, sendo que seu vice,
Ricardo Gomes, foi um dos vereadores que comandaram a campanha de destruição do
plano de carreira dos servidores públicos municipais de Porto Alegre,
respaldando a política administrativa nefasta de Marchezan. Ou seja, essa
coalização da chapa de Sebastião Mello apoiou as ações sociais, políticas,
econômicas, administrativas e culturais de Marchezan por quase todo o seu
mandato.
Voltando a falar do período em que a Lola ficou internada,
gostaria de fazer um destaque especial a um profissional do setor Materno
Infantil do Hospital São Lucas dentro desse extraordinário grupo de pessoas que
salvou a vida da minha filha: o cirurgião-pediátrico João Cyrus Bastos. Ele
realizou uma lobectomia em nossa filha quando ela tinha apenas duas semanas de
vida e ainda com menos de 500 gramas de peso. Tal procedimento era a única
coisa que podia ser feita para salvar a vida dela, pois ela estava com um
enfisema em seu pequeno pulmão. Segundo comentários que ouvimos nos corredores,
era uma operação arriscadíssima e não havia notícias que havia dado certo em um
bebê tão diminuto quanto a Lola. O Dr. Cyrus não só realizou com extrema
perícia tal cirurgia como também foi muito bem sucedido no resultado final – a
Lola deixou de apresentar a situação de enfisema e a partir disso seu quadro
clínico evoluiu de maneira bárbara. Meses depois, levamos a Lola para o Dr.
Cyrus examiná-la em seu consultório e nessa oportunidade ele nos contou que nos
anos 80 ele estava no Japão a estudos e lá presenciou uma cirurgia exatamente
igual a que tinha feito em nossa filha, mas que cujo resultado tinha sido o
óbito do bebê. Ele disse que naquele momento ele aprendeu o que não devia fazer
naquela situação (não nos perguntem o que foi, pois somos leigos nesses
assuntos...), e usou esse conhecimento justamente no caso da Lola. Ou seja, um
ato que consistiu em puros empirismo e conhecimento.
Pois não é que o Dr. Cyrus, profissional brilhante e
dedicado conforme descrevemos acima, foi sumariamente demitido pela atual
direção do Hospital São Lucas no corrente ano? Seu grande ato faltoso foi
simplesmente ter participado de uma manifestação no Parque da Redenção
contrária à decisão por parte da referida direção para o fechamento de toda o
setor materno infantil do hospital em questão, além de várias vezes ter
manifestado sua inconformidade com tal decisão. Ou seja, simplesmente porque
ele expressou de maneira livre a sua opinião sofreu essa represália arbitrária
e cruel contra a sua pessoa. Deve-se ressaltar que a causa que o Dr. Cyrus
defende é mais do que justa: além de afetar a vida de vários profissionais que
ali trabalham, o fechamento de toda a ala pediátrica da Hospital São Lucas teve
como principais vítimas as camadas mais pobres e necessitadas da população de
Porto Alegre e do resto do Estado, tendo em vista que a maioria dos
atendimentos que lá se efetivavam eram bancada pelo SUS. Em nome do lucro
econômico de alguns poucos sócios e acionistas, milhares de mães e crianças
ficaram simplesmente desassistidas, pois, afinal, que instituições conseguirão
cobrir a falta daquele que é considerado como o centro de referência do Rio Grande
do Sul no nascimento e atendimento de milhares de bebês? Ou seja, por agir como
um cidadão consciente, em atitude de justa contestação que deveria ser seguida
por todos aqueles que tivessem um mínimo de consciência social (coisa que a
maioria dos brasileiros não tem), o Dr. Cyrus foi defenestrado de maneira vil e
autoritária pela direção da instituição em que trabalhava. Como diria William
Blake em “Provérbios do inferno”, digas a verdade e o homem torpe te evitará...
Aliás, essa postura questionável na forma de encarar o contraditório por parte
da direção do São Lucas já havia ficado evidente no mesmo dia em que as
notícias sobre o fechamento da ala pediátrica se espalharam no hospital, quando
ficou bastante ostensiva a presença de guardas pelos andares dos prédios, em
clara atitude de intimidação em relação aos profissionais, estudantes de
medicina da PUC e usuários dos serviços da instituição. Pelo jeito, a noção de
diálogo democrático por parte dessa direção é bem distorcida.
A forma mesquinha e insensível com que a atual direção do
Hospital São Lucas tem agiu, tanto pela decisão de fechar sua ala materno
infantil como pela maneira draconiana que puniu o Dr. Cyrus, nos faz lembra o
conceito formulado pela filósofa Hannah Arendt, a da banalidade do mal, em que
ações desumanas e cruéis são efetivadas como se fossem meras medidas
burocráticas e técnicas.
Não temos exatamente o conhecimento preciso da natureza ou
regime jurídicos que constitui e rege uma instituição como o Hospital São Lucas
da PUC. Sabemos com certeza, entretanto, que tem a participação do grupo
religioso dos irmãos maristas, ligados à igreja católica, e que devido a isso a
instituição acaba recebendo um tratamento de tributos diferenciado por se
tratar de órgão filantrópico ou coisa parecida. Assim, nos perguntamos qual
seria a opinião desses “homens de deus” sobre o desmonte de um centro de
excelência no tratamento médico de bebês e crianças que atende um número amplo
de pessoas atingidas por forte vulnerabilidade social e econômica e também
sobre a forma com que são tratados aqueles que questionam a ética e moralidade
de uma ação deletéria como essa da atual administração do Hospital São Lucas.
Tais religiosos concordam que o lucro econômico da instituição vem em primeiro
lugar em detrimento da saúde e bem-estar de milhares de bebês e crianças? Os
irmãos maristas acham perfeitamente normal demitir sumariamente um profissional
gabaritado e bem-quisto como o Dr. Cyrus simplesmente pelo fato dele discordar
da decisão em questão da direção do hospital e manifestar de forma livre e
expressa a sua opinião? Essa é a noção de humanismo por parte desses cristãos?
A ação de solidariedade e fraternidade de tais religiosos se limitaria a rezar
padre-nosso e ave maria na beira da cama de pacientes e ficar contando o quanto
faturaram no mês ao invés de fazer algo que realmente colabore de forma efetiva
para uma vida melhor das pessoas? Em caso de respostas positivas para tais
perguntas, até não nos surpreenderia tanto, afinal tais religiosos podem estar
saudosos da época da inquisição...
E também nos perguntamos: qual seria a opinião do Sindicato
Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS) sobre essa afrontosa demissão do Dr.
Cyrus? O SIMERS considera normal um profissional da área que pretende defender
ser tratado de forma tão desrespeitosa assim? E sobre o fechamento sumário do
setor materno infantil? Ou está mais preocupada em caçar médicos cubanos
comunistas que supostamente querem invadir o Brasil?
E eu me pergunto: se a gravidez e internação da minha esposa
e o nascimento da Lola tivessem ocorrido alguns meses após, quando não existia
mais o setor materno infantil do Hospital São Lucas? Minha filha conseguiria
sobreviver? Em caso de óbito, eu deveria me consolar com o fato de que os donos
da instituição estariam lucrando mais?
Sei que não vai ser essa demissão absurda que impedirá o Dr.
Cyrus de continuar exercendo a sua profissão com os habituais talento e
dedicação. A menção que faço nesse relato é apenas para reforçar a gratidão e
admiração pela sua figura. Se o senhor já era um herói para nós por ser um dos
principais responsáveis pela sobrevivência e bem-estar de nossa filhinha, ficou
ainda em um patamar mais alto ao sabermos que teve a coragem de enfrentar de
peito aberto esses tecnocratas arrivistas da atual direção do Hospital São
Lucas. Por mais que o senhor tenha ficado incomodado com o seu desligamento da
instituição em que trabalhou com afinco por tantos anos, temos certeza de que
pode dormir com a consciência tranquila por ter agido como um grande humanista.
Por mais que os membros da direção do São Lucas e seus asseclas maristas
provavelmente devam ter recebido tapinhas nas costas de seus amigos e
conhecidos de maçonaria, MBL, Opus Dei e afins por fecharem a ala pediátrica do
hospital e tiranizar aqueles que se mostraram contrários a tal decisão, eles
não terão a possibilidade de ficar com a consciência em paz como o senhor, Dr.
Cyrus, pode desfrutar. A História os julgará por aquilo que eles realmente são
e representam.
Pessoalmente, foi uma experiência dolorosa presenciar o
desmantelamento do setor materno infantil do Hospital São Lucas. Quando
chegamos lá, eu e a Mariana ficamos impressionados logo de cara com a estrutura
profissional, material e humana de tudo aquilo. Com o tempo, principalmente
depois do nascimento da Lola, ficou ainda mais evidente o grande grau de
experiência científica e tecnológica disponível para os pacientes e aqueles que
o acompanhavam, não só para os atendimentos particulares e de convênio como
também para aqueles provenientes de SUS. Com absoluta certeza toda essa
especialização diferenciada salvou a vida de um incontável número de crianças
(o que foi justamente o caso da Lola). A partir de abril desse ano, quando foi
anunciado de maneira brusca que daqui pouco meses toda aquela estrutura seria
extinta do hospital, foi simplesmente melancólico ver tudo aquilo se
desintegrando dia a dia. Dava na gente um nó na garganta ver o trabalho íntegro
e diferenciado e os sonhos de todos aqueles profissionais se evaporando como se
fosse nada, além de angústia por saber das várias famílias que ficariam
desassistidas com o fim do materno infantil da instituição. A pergunta que mais
me vinha à cabeça é como a sociedade porto-alegrense aceitou de forma tão
branda essa perda inestimável para a área de saúde da cidade. Onde estavam as
comunidades mais carentes da região que certamente seriam as mais prejudicadas
por essa decisão desumana da direção do hospital? Ou daqueles supostos indignados
de classe média alta que adoravam desfilar no Parcão em suas manifestações em
2015 e 2016?
Quando a Mariana foi internada, eu estava fora da cidade. Eu
havia recebido um convite para trabalhar na edição do Festival de Gramado daquele
ano (2019) participando do júri da crítica e representando a ACCIRS (Associação
dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul). A internação da minha esposa se
deu no antepenúltimo dia do festival, no final da tarde. Fiquei mais um dia
para ver os restantes dos filmes das mostras e participar da reunião do júri
para decidir os vencedores. Parti de volta para Porto Alegre no sábado de
manhã, no dia da premiação. Assim, não presenciei os fatos lamentáveis de
apedrejamento de profissionais do cinema por parte de “populares” no tapete
vermelho na noite de premiação. Aliás, gostaria de agradecer à organização do
festival por ter compreendido a minha situação e providenciado o meu transporte
de volta à Porto Alegre antes do evento de encerramento.
Bem, como esse é um blog dedicado a filmes, acho oportuno
fazer algumas considerações sobre o Festival de Gramado e a edição da qual
participei. Devo confessar que antes dessa minha participação no evento em
questão, eu nunca tinha ido acompanhar alguma edição do festival. Tinha uma
certa preguiça em relação a como as coisas pareciam que funcionavam: a mostra
não exibia tantos filmes, mais se falavam das celebridades globais que
apareciam por lá do que propriamente das obras cinematográficas que eram
exibidas, mais parecia um evento de turismo do que propriamente um festival de
cinema. E acho Gramado uma cidade careira, elitista e jeca. O engraçado é que
sempre que alguém me perguntava se eu não tinha vontade em ir ao festival, eu
dizia que só iria se me convidassem para trabalhar em um júri e pagassem
condução, hospedagem e transporte. Falava isso meio brincando, até. E não é que
veio o convite dentro de tais condições? Fiquei muito honrado com o convite
feito pelo ACCIRS, principalmente como reconhecimento por atividades que exerci
ao longo dos anos como programador do Clube de Cinema de Porto Alegre, curador
e jurado do FANTASPOA e, principalmente, por todo esse tempo em que escrevi
nesse blog, além dos textos que produzi para outros veículos (com destaque para
o Zinematógrafo, publicação do qual muito me orgulho de participar). Em tais
circunstâncias, fiquei animado em participar do festival.
Houve alguns momentos efetivamente antológicos na edição de
2019 de Gramado, principalmente a noite de abertura com a exibição hors
concours de “Bacurau” – foi arrepiante presenciar a recepção sanguínea que o
filme teve do público e a ovação final ao seu encerramento. Outro ponto
positivo foi o convívio com os meus colegas de júri da crítica, todas pessoas
muito gentis, inteligentes, agradáveis. Todo o processo de conversas sobre as
obras das mostras para chegar ao resultado final dos melhores foi deveras
estimulante pela troca de ideias e experiências. Ah, várias das sessões de
debates dos filmes foram realmente memoráveis (com destaque óbvio para
entrevista catártica com a equipe de “Bacurau”). Achei o quarto de hotel que me
foi oferecido bem confortável, os restaurantes nos quais eu podia utilizar os vouchers
que me foram dados eram de qualidade e o deslocamento na cidade estava
facilitado. Com tudo isso, quer dizer que dobrei minha língua em relação ao
festival? Infelizmente, não. O gosto que me sobrou na conclusão do evento foi
amargo. O grande aspecto negativo que me levou a tal percepção é a forma com
que fui tratado como jurado durante as sessões dos filmes. Apesar de estar
sempre com a credencial de jurado em meu pescoço na maioria das oportunidades
as pessoas que trabalhavam na entrada da sala de exibição criavam algum entrave
estressante: perguntavam quem eu era (apesar de eu ter uma credencial bem
grande no pescoço), diziam que a sala estava lotada (quando na realidade tinham
pouquíssimas pessoas ainda lá dentro), simplesmente diziam que eu não podia
entrar. E mesmo quando eu já estava acomodado na poltrona que me era reservada
como jurado não foram poucas as vezes que esse pessoal chegava e me passavam
mais para trás porque eles tinham que colocar no meu acento alguma
subcelebridade, algum capitalista patrocinador ou alguma “autoridade” local
(que quase sempre ia embora assim que o filme começava). Teve um episódio que
me causou especial irritação, na sessão do filme “Hebe”, em que colocaram bem
ao meu lado uma youtubber de quem eu nunca tinha ouvido falar (e espero nunca
mais ver) e toda a sua equipe de produção e esse pessoal simplesmente não calou
a boca durante todo o filme. Depois em conversas com jornalistas, críticos e
outros membros de júris me disseram que isso não era um tratamento exclusivo
para a minha pessoa – o pessoal que cuida da entrada no cinema trata mal mesmo
todo membro de júri que não seja uma celebridade. Dizem que isso é uma tradição
do Festival de Gramado, que todo o país tem essa referência não muito lisonjeira
do evento. A organização do festival nunca percebeu isso? Como é a orientação
que dão para essas pessoas que ficam na porta de entrada da sala? Num contexto
geral, diante de tal tratamento, é como se a atividade intelectual e cultural
de um crítico, de um jurado, fosse subestimada e desprezada como dispensável e
irrelevante, importando reservar o tratamento devidamente respeitoso para aqueles
que pudessem gerar dinheiro e publicidade para o festival. Se essa é a
finalidade do Festival de Cinema de Gramado, então sugiro que mudem a sua natureza
cultural, que ao invés de ser um festival de cinema seja, por exemplo, um
festival que premie os melhores programas e artistas do ano da Globo! O Pedro
Bial já não atua como curador do festival? Já não é meio caminho andado? Assim
as celebridades que são tão apreciadas pela organização e pelo público
comparecerão em maior número à Serra e todos ganharão mais dinheiro. Não é o
que importa?
Aliás, devo acrescentar que o desrespeito não era apenas com
o júri. Também era com o público. Todas as sessões atrasavam porque eles tinham
de aguardar famosos e famosas chegarem e se acomodarem. Na sessão do belo filme
gaúcho “Os pássaros de Massachusetts”, quando faltava uns quinze minutos para o
fim, a organização simplesmente permitiu a entrada de uma multidão que
assistiria à próxima sessão na sala, gerando uma barulheira e confusão que atrapalhou
muito a apreciação do filme. Sinal claro de desconsideração não só com os
espectadores que ali estavam, mas também com os profissionais que trabalharam
na realização da obra em questão.
Olha, já fui a muitos festivais de cinema e música, até
participei da organização de alguns. Nunca vi algo tão desorganizado e pouco
respeitoso com o público quanto o Festival de Gramado. O episódio do apedrejamento
no tapete vermelho na noite de encerramento acabou não me parecendo tão
surpreendente, mas um desdobramento natural. Francamente, não pretendo voltar
tão cedo ao Festival de Cinema de Gramado. Alguns dirão que o evento desse ano
não teve problemas como esse. Acredito realmente, afinal ele foi virtual... Mas
o que esperar de uma cidade em que Bolsonaro teve uma votação de mais de oitenta
por cento? Não à toa, Gramado é um dos grandes focos de Covid no Rio Grande do
Sul e mesmo assim seus comerciantes imploram por flexibilizações. Afinal, o que
interessa é ganhar dinheiro.
Faz alguns meses que eu vinha pensando em escrever este
texto, tanto para tentar marcar uma volta a escrever com mais regularidade para
o blog quanto para botar para fora as frustrações, as revoltas e as alegrias
que tive de agosto do ano passado para cá. Sentia uma grande necessidade de
expressar toda essa gama de sentimentos, emoções, diatribes. A rotina de pai de
uma prematura extrema, entretanto, falava mais alto. Minha filha vem
apresentando uma excelente recuperação, mas ainda exige bastante cuidados. Além
de pai, dá para dizer que sou uma espécie de enfermeiro para ela (assim como a
Mariana também faz tais funções, mais do que eu até). A Lola ainda usa em parte
do dia um cateter de oxigênio para auxiliar em sua respiração. Em função da
gastro, a maior parte de sua alimentação se dá por uma sonda em sua
barriguinha. Além de tudo, há uma série de medicações a serem dadas, alguns
procedimentos especiais a serem diariamente executados. Em função disso tudo,
não conseguimos simplesmente confiar em uma babá eletrônica. Eu e a Mariana nos
revezamos nas madrugadas para termos certeza que está tudo bem com ela. Nesse
contexto todo, sobra pouco tempo para outras atividades, isso sem falar do
tremendo cansaço ao final do dia (ou da noite – na verdade, em uma situação
como essa, dias, semanas, meses, horas, tudo parece meio igual, impressão mais
acentuada ainda pela quarentena e isolamento). Assim, acabava adiando a
elaboração desse texto de forma recorrente. Os resultados das eleições nesse
último domingo (15/11), entretanto, acabou me dando a motivação final para
finalmente botar na tela do computador as palavras que rondavam (ou
assombravam) a minha mente.
Por mais que tenha ocorrido uma evolução em termos de
representatividade na assembleia de vereadores, algo realmente animador, o
resultado de primeiro turno para prefeitura aqui em Porto Alegre e em várias
capitais e cidades pelo país me deixou algo perplexo. Quer dizer que depois das
assustadoras queimadas no Amazonas e no Pantanal, da mortandade sem precedentes
causadas pela Covid no Brasil, do apagão no Amapá, tudo fruto de ações
deletérias e omissões criminosas oriundas de uma desumana política
sócio-econômica de Estado mínimo produzidas por essa direita escrota que tomou praticamente
todas as esferas de poder no Brasil, ainda assim a maior parte do povo
brasileiro resolve dar mais um crédito para essa gente? Quer dizer que abrir todo
o comércio imediatamente é solução para resolver a crise econômica derivada do
Covid? Que negar a doença é a melhor forma de seguir em frente? Que sucatear o
serviço público até a sua extinção vai suprir as carências de toda a população?
Que tocar fogo e devastar nossas florestas, matas e afins é um dos únicos
caminhos econômicos viáveis? Desculpem, mas já não considero isso mais
ignorância ou alienação, mas sim irresponsabilidade, leviandade, desfaçatez,
mesquinharia, obscurantismo safado.
Sei que muita gente vai considerar tudo isso que escrevi um
poço de amargura ideológica, talvez seja mesmo. Mas se antes fatos negativos
como os que apontei nesse texto eu já considerava revoltante, mais me parecem intoleráveis
agora que tenho uma filha. No final das contas, acredito que tudo escrevi aqui
seja um busca de esperança no sentido que a Lola possa herdar um mundo melhor,
que as pessoas se deem conta que nossos filhos, netos e demais descendentes
talvez tenham direito a um mundo mais humano, iluminista, justo e igualitário,
e que fora disso só nos resta uma barbárie deprimente e injustificada.
Espero que depois dessa profusão de palavras eu consiga
estabelecer de novo alguma rotina de ver filmes e escrever minhas opiniões,
sinto realmente falta disso. Claro que não vai ser como antes, mas também
acredito que poderá ser melhor diante de todas os sentimentos pungentes que
minha filha vem me proporcionando e que vai continuar me oferecendo.
Dedico esse texto às minhas musas Mariana e Lola e também a
todos aqueles profissionais que salvaram a vida de minha filha – os pediatras
Alexandre e Humberto Fiore, Jorge, Manoel, Anna Carolina, Andrezza, Maria
Letícia, Yohana e Gabriela; os cirurgiões pediátricos Cyrus, Fernanda Caráver,
Fernanda e Mariana, os obstetras Charles, Edinho, Breno e Gabriela, as enfermeiras
Ane, Mariana, Marina, Daniela, Morgana, Denise e Jaqueline, as técnicas Luce, Daniele
(a da manhã e a da noite), Andressa, Selminha, Fernanda (a da tarde e a da
noite), Simone, Lily, Carol, Neide, Tamara, Joice, Aline, Jose, Adriana, Tia
Gê, Rosy e Ariane, aos técnicos Adriano e Gilson, à psicóloga Ieda, e se eu
esqueci o nome de alguém, me perdoe, você não é menos importante por isso.
Para encerrar, queria citar uma passagem da bela e
contundente canção de Paulo César Pinheiro, “Pesadelo”, que resume boa parte
dos sentimentos que esse texto carrega:
O cineasta Neville D’Almeida fez
uma das melhores adaptações para o cinema de uma peça do dramaturgo Nelson
Rodrigues em “Os sete gatinhos” (1980), preservando a força cômica-dramática do
original e também dando uma dinâmica cênica que fugia totalmente do mero teatro
filmado. Em “A frente fria que a chuva traz” (2015), o diretor volta ao
universo do teatro só que com o trabalho de um autor mais contemporâneo, Mário
Bortolotto. Nessa obra mais recente, D’Almeida atinge resultados artístico
menos satisfatórios, tanto por uma encenação que por vezes não se decide entre
o teatral e o cinematográfico quanto por um texto de momentos entre o ingênuo e
o apelativo. Ainda assim, é um trabalho acima da média que se valoriza por algumas
nuances formais e existenciais interessantes. As interpretações do elenco são
bastante intensas, ainda que beirando o excessivo em algumas passagens, e ganham
uma forte dimensão dramática ao se associarem a ambientação sórdida e sardônica
concebida por D’Almeida. E por mais que a escrita de Bortolotto derrape, há
trechos que se mostram contundentes e até perturbadores na ácida e irônica
maneira que retratam a sociedade de classes no Brasil, mostrando bastante
sintonia, inclusive, com o tenebroso momento histórico que vivemos no país.
É estranho dizer que um filme é ótimo e também ao mesmo
tempo é decepcionante. Mas esse é justamente o caso de “O irlandês” (2019). Contribui
para essa percepção todo o contexto em que o filme foi lançado. O diretor
Martin Scorsese vinha de uma sensacional trinca consecutiva de obras-primas: “O
lobo de Wall Street” (2013), “Silêncio” (2016) e “Rolling Thunder Revue”
(2019). A produção em questão ainda marca a volta do cineasta a um gênero, os
filmes de gangsteres, no qual lançou algumas das suas obras mais memoráveis.
Ocorre que nesse trabalho mais recente não há a tensão nervosa a flor-da-pele de
“Caminhos perigosos” (1973), o misto de ironia e paranoia de “Os bons
companheiros” (1990), o barroquismo gráfico grandioso e violento de “Cassino”
(1995) e nem a ação eletrizante de “Os infiltrados” (2006). O que predomina em “O
irlandês” é uma narrativa clássica e serena, quase solene, sem grandes arroubos
estéticos. A ambição de Scorsese é grande: ao mostrar a história real do
assassino da Máfia Frank Sheeran (Robert De Niro), procura fazer uma síntese
entre um amplo painel sócio-político da história dos Estados Unidos do século
XX e a trajetória pessoal de seu protagonista. Apesar da longa duração do
filme, incomoda que determinadas passagens do roteiro se mostram um tanto
superficiais e mal desenvolvidas, principalmente no que se refere à personagem
Peggy (Anna Paquin), filha de Frank. Nesses momentos, há a sensação incômoda do
filme cair num tom de melodrama moralista, como se em tais sequências Scorsese
tivesse perdido a mão na condução rigorosa de direção, coisa praticamente
inexistente no melhor de sua filmografia. Ainda que isso possa frustrar aqueles
que tivessem altas expectativas para a obra, há qualidades notáveis que que colocam
“O irlandês” em um nível muito acima da média. O extraordinário trabalho de
montagem faz com que o espectador nem sinta as três horas e meia de duração
passarem, a parte histórica do roteiro tem uma visão existencial bastante
lúcida e sofisticada sobre a sua temática e há algumas interpretações
magníficas no elenco, com destaque absoluto para Joe Pesci. De repente pode ser
pouco em se tratando de Scorsese, mas tais qualidades artísticas tornam “O
irlandês” um acontecimento cinematográfico bastante relevante no atual panorama
do cinema mundial.