quinta-feira, maio 10, 2018

Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans ****


Se em “A vizinhança do tigre” (2014) o diretor Affonso Uchoa criava uma fascinante síntese entre o documental e a encenação, em “Arábia” (2017), codirigido com João Dumans, ele parte para uma concepção narrativa aparentemente mais tradicional, que se formata como drama ficcional. Ainda assim, é uma obra que ainda se vincula a um conceito de “cinema verdade”, afinal boa parte do roteiro é diretamente inspirada nas memórias do ator Aristides de Souza, ator que dá vida a Cristiano, protagonista da obra em questão. Esse filme mais recente parece continuar de onde o anterior parou – se “A vizinhança do tigre” era um flagrante do cotidiano de brincadeiras e contravenções de um bando de garotos da cidade mineira de Contagem, em “Arábia”, um jovem delinquente desiste da vida de pequenos crimes na mesma cidadezinha e resolve percorrer o interior de Minas Gerais em busca de trabalho e de alguma estabilidade social e emocional em sua vida. Os caminhos estéticos e textuais de Uchoa e Dumans para narrar esse pequeno conto existencial até obedecem a critérios de linearidade e atmosfera realista, mas apresentam alguns desvios marcados pelo insólito, pela sutileza e pelo mistério. O verdadeiro começo da trama vem na exposição de uma rotina de privações econômicas e emocionais de um garoto (Murilo Caliari) que por acaso descobre o diário de Cristiano, falecido recentemente. A partir desse momento, a narrativa é conduzida pela voz do protagonista a ler o seu diário a expor diversos percalços e poucas alegrias e paz de espírito. O ritmo da narrativa é sóbrio, sem sobressaltos, dando a impressão da marcha inexorável rumo a um fim melancólico. Na jornada de Cristiano, está presente tudo aquilo que é comum na biografia de milhões de semelhantes ao personagem principal – exploração sócio-econômica, invisibilidade perante a uma sociedade alienada, o progressivo embrutecimento e desesperança. “Arábia” não cai no discurso e nas armadilhas do sentimentalismo fácil. Subtexto e recursos narrativos realçam mais o lado de surda revolta e desilusão perante um sistema que vende a ilusão de uma sociedade que permite a ascensão de todos pelos próprios méritos, quando na verdade massacra impiedosamente os despossuídos e qualquer um que ouse se rebelar contra a perversidade e hipocrisia de tal status quo. A dureza nas constatações do filme, entretanto, não impede que se evidencie uma pungência comovente na sua abordagem artística.

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