terça-feira, abril 02, 2019

Ornette: Made in America, de Shirley Clarke ****


A conexão literatura-música-cinema que se estabelece no encontro entre o músico Ornette Coleman e o escritor Burroughs é mais lembrada pelo público em geral pelo filme “Mistérios e paixões” (1991), obra-prima dirigida por David Cronenberg que adaptava o clássico livro de Burroughs, “O almoço nu”, e que também contava em sua trilha sonora com alguns temas compostos e tocados por Coleman. A ligação entre os dois artistas é mais do que natural – os escritos derivados da escola beat concebidos por Burroughs são praticamente um equivalente existencial-literário para o free jazz alucinado de Coleman. Em “Ornette: Made in America” (1985) esse encontro entre esses dois titãs culturais dos Estados Unidos já havia sido registrado, filme esse de impacto artístico equiparável àquele de Cronenberg. O longa dirigido por Shirley Clarke é um misto de documentário biográfico e ensaio poético-visual a retratar a vida e arte de Coleman. A fórmula narrativa de contar a história de uma vida de maneira linear seria insuficiente para dar uma efetiva ideia do significado dessa figura singular da música contemporânea. Assim, Clarke opta por um fluxo sensorial desconcertante, que varia entre o encanto e a perturbação. A narrativa tem como eixo principal uma apresentação de seu protagonista com sua banda junto a uma orquestra sinfônica da sua cidade natal no Texas. O que parece inicialmente uma rendição de Coleman a um formato tradicional e “respeitável” de execução e composição musicais aos poucos se revela como uma sofisticada desconstrução de parâmetros rítmicos, harmônicos e melódicos. E esse é justamente o procedimento formal adotado por Clarke na condução de seu filme – ao invés de se limitar a um formato convencional de junção de entrevistas e cenas de arquivos, a diretora mistura tais recursos com encenação estilizada, trucagens/colagens bem-humoradas e digressões existenciais/artísticas de Coleman tentando explicar a sua música, sempre tendo por base uma edição que transforma tudo isso em um vórtice audiovisual de sensações e ideias que aproximam o espectador da musicalidade à flor-da-pele do artista, mas sempre preservando a aura de mistério e estranheza dessa particular forma de arte. Poucas vezes na história do cinema um documentário sobre um artista se mostrou em tamanha sintonia com seu personagem principal quanto “Ornette: Made in America”.

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