terça-feira, abril 23, 2019

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora ***1/2


Faz algumas semanas que ouvi um depoimento extraordinário de uma deputada indígena se contrapondo contra um pronunciamento preconceituoso e reacionário da ministra da agricultura que ofendia a cultura do silvícola brasileiro. No referido pronunciamento da deputada, ela colocava como era reducionista tentar enquadrar o índio dentro de uma ótica capitalista-cristã, quando na verdade a concepção existencial do indígena se baseia em uma visão completamente diversa do ambiente e do trabalho. Essa lógica particular de vida é algo que extravasa com um misto de sensibilidade e contundência na produção brasileira “Chuva é cantoria na aldeia do morto” (2018), e que faz com que a própria narrativa do filme dos diretores João Salaviza e Renée Nader Messora tenha de se adaptar a uma linguagem estética bastante na contramão do que se faz no cinema ocidental contemporâneo. No terço inicial da obra, o espectador entra de cabeça em um universo paralelo de sensações audiovisuais – a encenação respeita o ritmo de vida sereno e rústico de uma comunidade indígena Khahô, em que os sons da natureza e uma imensidão de verde e terra absorvem os nossos sentidos e fazem com que a união entre o realismo e o metafísico pareça natural e coerente. Quando a narrativa se volta para um centro urbano, o contraste é chocante, com uma poluição sonora e visual irrompendo com violência e que se mostra em desolada sintonia com uma sociedade embrutecida típica das cidades brasileiras contemporâneas. No terço final, com a trama sendo retomada para o cotidiano da tribo, a narrativa se torna mais etérea, com danças, cantos e sutis trucagens visuais constituindo um delicado e envolvente vórtice sensorial, impressão essa que se reforça na misteriosa conclusão do filme, uma primorosa cena em que natureza e misticismo se fundem de maneira antológica.

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