quinta-feira, fevereiro 21, 2008

No Direction Home, de Martin Scorsese ****


Tentar explicar o fenômeno Bob Dylan através de um documentário é uma tarefa impossível. Ainda mais se o filme em questão retrata apenas a primeira fase da carreira do bardo americano (1961-1966). Martin Scorsese, entretanto, não se intimidou com a dificuldade da empreitada. "No Direction Home", produção televisiva de 2005, é uma bela tentativa de decifrar o significado daquele que é uma das figuras mais fascinantes da história da música.

Scorsese teve em mãos farto material para realizar "No Direction Home", indo de uma quantidade admirável de registros raros de arquivo (fotos, gravações e filmes, incluindo até trechos de "Don't Look Back", clássico documentário dirigido por D.A. Pennebaker) até depoimentos reveladores tanto de Dylan quanto de pessoas próximas a ele. O cineasta combina tudo isso com maestria notável, utilizando-se de um trabalho de edição que dá uma fluidez e coerência impressionantes para a verdadeira overdose de imagens e informações que nos são mostradas. É fascinante também que a forma com que todo esse material é exibido revela a visão particular de Scorsese sobre a trajetória artística e pessoal do seu biografado, sem que seja necessário apelar para uma constante narração em off. Nesse sentido, a linguagem utilizada é tão bem elaborada em termos cinematográficos que chega a ser um crime que "No Direction Home" não tenha sido exibido na tela grande.

A vida de Bob Dylan não representa apenas uma sucessão de acontecimentos pessoais. A biografia do músico é recheada de fatos e significados que se confundem com várias questões pertinentes à história mundial contemporânea. Scorsese teve a sensibilidade para compreender isso, fazendo com que "No Direction Home" não mostre apenas a história de parte da vida de Dylan, mas também que contextualize com brilhantismo o mundo que o cerca. Nesse sentido, é sensacional a forma com que o cineasta aborda as influências musicais que levaram Dylan a forjar seu estilo único, pois é realizado um extensivo e apaixonado inventário do que de melhor a música norte-americana produziu no século passado. Indo do folk mais tradicional, passando por country e blues e chegando até ao rock, temos um panorama amplo desse aspecto tão rico da cultura dos EUA, sendo que Scorsese tem a sacada de mestre de recuperar e valorizar tremendamente a figura de Woody Guthrie, mestre da música folk e ícone da música protesto e que foi a influência decisiva para a primeira fase da carreira de Dylan, quando o mesmo se consagrou como uma espécie de menestrel moderno.

"No Direction Home" revela também como a trajetória de Dylan confunde-se com um dos períodos mais conturbados do século passado que foram os anos 60. A relação dele com essa época é fortemente paradoxal. Nos primeiros anos da sua carreira nos "sixties", Dylan era visto como um herói para o seu público. Músicos, universitários, intelectuais e a juventude em geral o viam como um resgatador da pureza musical dos EUA e porta voz dos grandes ideais sociais e políticos da época. Praticamente todas as causas civis importantes queriam a participação do músico. Essa lua de mel é interrompida quando Dylan, influenciado pelos Beatles, resolve trocar o violão acústico por uma banda de rock para acompanhá-lo. Isso causa um choque considerável para os seus fãs, o que fica evidenciado na seqüência de "No Direction Home" em que aparece o nosso herói tocando "eletrificado" pela primeira vez no tradicionalíssimo festival folk de Newport em 1965, provocando uma verdadeira trovoada de protestos e vaias por parte da platéia. Outro momento ilustrativo do documentário em relação a esse conflito é logo na abertura, em que Dylan, acompanhado pelos magníficos The Hawks (futura The Band), em show em Manchester na Inglaterra é xingado por parte do público com ofensas como "Judas" ou "traidor". Através de fatos como esses, Scorsese nos dá uma visão bem menos mitificada dos anos 60, mostrando que mesmo na ala dita "libertária" da sociedade havia altas doses de conservadorismo e intolerância. Na verdade, era como se o mundo não estivesse preparado para digerir alguém como Bob Dylan. Exemplo disso são as seqüências que mostram o mesmo sendo entrevistado por repórteres. É engraçadíssimo ver a cara de perplexo de Dylan perante a obtusidade de seus entrevistadores ou as suas respostas irônicas para algumas perguntas incrivelmente cretinas.

A maneira como essa relação conflituosa entre o biografado e o universo de fãs e imprensa que gira em torno dele também faz com que "No Direction Home" seja uma reflexão do papel do artista perante o seu público. Dylan é um músico cheio de inquietações em relação a sua arte. A imprevisibilidade e inconstância são inerentes à sua própria criatividade. Na sua lógica, sua obrigação não está em agradar o público, mas sim em expressar a sua visão artística da forma que ele desejar, por mais absurda ou ilógica que ela possa parecer. Se ele estivesse apenas disposto a fazer o que esperam dele, é provável que não teríamos alguns dos seus mais brilhantes discos e que sua carreira não fosse tão fantasticamente perene como é. E se hoje, em tempos de louvação do arrivismo e mediocridade de "Os Dois Filhos de Francisco", tal posicionamento pode ser profundamente transgressivo, imagina nos anos 60...

Como se pode observar, a gama de questões levantadas por "No Direction Home" é considerável e complexa, sendo que Scorsese consegue colocar tudo isso na tela com uma clareza extrema. Isso ocorre porque o cineasta, apesar de admirador confesso de Dylan, não perde a perspectiva humana de seu biografado. Houve um cuidado para não transformar o documentário apenas numa peça de promoção das qualidades de Dylan. Muito pelo contrário. Scorsese expõe o músico como uma pessoa marcada por fortes contradições e capaz de atitudes não muito louváveis. Isso fica evidente principalmente em alguns depoimentos com uma certa dose de amargura de artistas que foram muito próximos a ele como Peter Seeger, Joan Baez e Liam Clancy, em que Dylan é descrito como uma pessoa capaz de atos não muito éticos para promover a sua carreira. O documentário também mostra as dificuldades dele em lidar com as amenidades de uma rotina caseira normal, o que faz com que o mesmo só sinta-se realmente à vontade quando está na estrada (aliás, o próprio título do filme é uma referência a esse fato). Essa visão franca e sem maniqueísmos simplistas torna ainda mais intrigante a figura de Bob Dylan.

Tudo o que descrevi nesse texto é apenas um brevíssimo resumo. As três horas e meia de "No Direction Home" contém ainda mais informações e imagens preciosas, além de vários momentos com ótima música, e que nos fazem aguardar ansiosamente uma continuação desse projeto tão bem sucedido de Martin Scorsese. Afinal, o filme vai somente até 1966, mais precisamente no dia em que Dylan sofreu um acidente de moto que o deixou "de molho" por alguns anos, sendo que posteriormente ele produziu outros discos antológicos, além de uma série de acontecimentos relevantes que ocorreram na sua vida (para aqueles que querem saber mais, recomendo a excelente biografia "Dylan - A Biografia", escrita por Howard Sounes, e lançada no Brasil pela Editora Conrad). Enfim, "No Direction Home" não é só indicado para fãs de Bob Dylan, mas também para aqueles interessados por grandes filmes ou em conhecer um dos músicos mais geniais de todos os tempos.

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