quarta-feira, outubro 17, 2018

Nasce uma estrela, de Bradley Cooper ***1/2


Megaconcertos de rock, daqueles realizados em imensas arenas e afins, guardam uma espécie de parentesco com o fascismo. O artista diz um “yeah” qualquer e uma imensa massa responde urrando de aprovação e os sistemas de som propagam um volume sonoro ensurdecedor estimulando uma resposta sensorial do público ainda mais tonitruante. Em eventos como esse, a contemplação e reflexão não encontram muito espaço – grande parte das pessoas está lá para urrar e pular em troca do caro ingresso que elas pagaram. Diante de um quadro como esse, é mais que compreensível a considerável quantidade de vaias que Roger Waters angariou em terras brasileiras ao mostrar uma postura crítica em relação à ascensão do fascismo bolsonarista no país. Por mais que essa postura de desafio seja coerente com a própria trajetória artística de Waters, a verdade é que essa situação é sintomática da própria condição contraditória e anacrônica do rock and roll em pleno século XXI. Aquilo que começou como uma revolução musical e comportamental em meados da década de 1950 como reação à postura moralista, hipócrita e racista da sociedade ocidental da época se transformou na trilha sonora de pessoas que hoje em dia adotam essa mesma postura.
A nova versão de “Nasce uma estrela” (2018) é mais uma prova enfática dessa melancólica decadência existencial do rock and roll. Logo no início do filme, há uma memorável sequência em que o rock star Jackson Maine (Bradley Cooper) toma uns aditivos nos bastidores de um show e quando entra em cena logo dispara riffs e solos faiscantes de guitarra diante de uma imensa e barulhenta plateia. A música é um intenso southern rock, pleno de rusticidade e melodia, mas também com um certo ar datado. De maneira simbólica, essa cena sintetiza com sutileza o subtexto da obra – por maior que seja a beleza e a espontaneidade da arte de Maine, a realidade é que ele é um dinossauro à beira da extinção. Mais do que seu comportamento autodestrutivo e a inconstância do seu temperamento, seu definitivo algoz, ainda que de maneira involuntária, é a cantora pop Ally (Lady Gaga) – Maine a descobre acidentalmente, acolhe-a e a transforma em esposa e parceira e por fim é suplantado por ela de forma avassaladora. O genuíno talento de Ally, bruto e cortante quando descoberto por Maine, aos poucos é lapidado e estilizado de acordo com os preceitos comerciais da indústria da música atual. O paralelo que se estabelece entre os dois personagens é direto e algo exagerado, mas altamente eficaz e perturbador – a ascensão como diva pop de Ally corresponde à amarga e fulminante derrocada de Maine.
Basicamente, a trama dessa revisão de “Nasce uma estrela” é a mesma das três versões cinematográficas anteriores. O grande mérito de Bradley Cooper na direção é repetir a história e a enquadrá-la sob um contexto histórico-existencial diferente e também em um formato narrativo e cênico de forte frescor criativo. Em termos de estilo, Cooper faz lembrar muito alguns trabalhos marcantes de Clint Eastwood na direção – narrativa e encenação seguem um classicismo muito bem delineado, a atmosfera dramática é marcada pela sobriedade, o elenco apresenta seguras e convincentes atuações. Além disso, é de se destacar o vigor cênico dos números musicais da produção e que valoriza com sensibilidade a beleza das canções originais da trilha sonora. Nessa afiada concepção formal e temática, o filme apresenta algumas antológicas sequências: Ally no centro do palco na premiação do Grammy enquanto Maine está atirado bêbado na escada de acesso ao palco, o doloroso rito de morte do artista que remete ao suicídio de Kurt Cobain e a sensacional sequência final em que uma versão grandiosa e plastificada de uma canção de Maine interpretada por Ally se contrapõe a um cortante flashback dele mesmo interpretando cruamente a música ao piano. E a conexão com Eastwood é tão forte que por vezes o filme faz lembrar uma das mais estimadas obras do veterano cineasta, a cinebiografia musical “Bird” (1988), que marcava justamente a conturbada substituição do jazz clássico pelo rock and roll no imaginário cultural norte-americano.

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