terça-feira, novembro 06, 2018

A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier ****


Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump, Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.

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