sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Depois de horas, de Martin Scorsese ****

Recentemente li o livro de memórias do músico Moby, “Porcelain”, na qual ele conta os primeiros passos de sua carreira como DJ em Nova Iorque. A obra também faz um retrato cultural muito rico da célebre cidade norte-americana, principalmente mostrando que nos anos 80 e primeira metade dos 90 a metrópole em questão era marcada por uma contradição fascinante – ao mesmo tempo que no referido período apresentou altos índices de criminalidade e desajustes sociais também foi um grande foco de expressões artísticas relevantes, havendo uma ligação perversa e intrínseca entre esses dois polos. Dessa forma, não é gratuito que a trama de “Depois de horas” (1985) se concentra basicamente no barra pesada bairro nova-iorquino Soho. A saga do protagonista Paul Hackett (Griffin Dunne) para voltar para casa durante uma conturbada noite no bairro em questão guarda paralelos tanto com a “Odisseia” de Homero quanto com “O coração das trevas” de Joseph Conrad, além da paranoia opressiva tipicamente kafkaniana. O personagem principal dessa obra-prima de Martin Scorsese parece sintetizar o típico indivíduo adepto do american way of life que é jogado em um universo que lhe foge totalmente da compreensão, habitado por junkies, loucos, marginais e artistas, ou seja, os outsiders da sociedade ocidental. As progressivas confusões em que Paul vai se metendo ao longo de uma noite infernal não ocorrem como eventos isolados que lhe fogem ao controle, mas sim por uma sutil lógica em que o medo do desconhecido e a incapacidade de lidar com o diferente por parte do personagem o jogam involuntariamente em enrascadas cada vez mais perigosas. Assim, o inferno pessoal do protagonista não se origina daquela velha premissa católica da punição por ter se aproximado do “pecado”, mas sim da covardia e mesquinhez típica do americano médio frente àquilo que desafia a moral pequeno-burguesa vigente. A narrativa concebida por Scorsese abarca tais dilemas temáticos com precisão e sensibilidade notáveis. A atmosfera varia de maneira fluida entre o realismo e o delirante, impressão essa acentuada pela fotografia que também mistura naturalismo e estilização e pelo ritmo frenético da montagem, num conjunto imagético repleto de detalhes cênicos desconcertantes (a nota de vinte dólares que aparece em diversos contextos diferentes, a queimadura que se converte em tatuagem), gerando assim a constante impressão de um sonho ruim que nunca termina. Nesse sentido, a caracterização de situações e personagens evidenciam uma encenação repleta de estranhas e por vezes encantadoras nuances em que a combinação de uma certa crueza na abordagem emocional e o tom histriônico de algumas figuras da trama sugerem uma cruza da virulência da escola setentista do cinema norte-americano com a ambientação siderada típica de Fellini.

Nenhum comentário: