quinta-feira, abril 20, 2017

Martírio, de Vincent Carelli ****

Se em “Corumbiara” (2009), obra anterior do diretor Vincent Carelli, a narrativa convencional e apenas correta não acompanhava a contundência de sua temática, em “Martírio” (2016) esse descompasso desaparece, tendo por resultado uma obra inquietante e muito bem resolvida em termos estéticos e existenciais. E isso fica evidente logo nas primeiras sequências do filme, em que o brilhante jogo de edição contrapõe o discurso preconceituoso de políticos e da mídia oficial em relação à questão indígena com a realidade desoladora dos nativos. Tal engenhoso recurso narrativo também serve para estabelecer como o trabalho de Carelli transcende a simples reportagem informativa, deixando claro que o gênero do documentário cinematográfico tem como uma de suas funções principais oferecer uma perspectiva humanista e artística que vai além da abordagem jornalística “imparcial” da grande imprensa. Para o diretor, não basta que a sua obra se limite a uma descrição cronológica e minuciosa de fatos – na verdade, o que ele se propõe é jogar o espectador dentro de uma perturbadora jornada histórica e sensorial sobre a trajetória de sistemática dizimação física e cultural de povos indígenas no Brasil a partir do relato das experiências traumáticas sofridas pelo grupo Guarani Kaiowá. Para isso, Carelli constrói uma narrativa que se vale de recursos variados (relato histórico, registro etnográfico, depoimentos, filmagens amadoras, farto material de arquivo audiovisual, perspectiva emocional e intimista) e lhes dá uma unidade artística admirável e também desconcertante, pois se há momentos de intensa melancolia, principalmente nas entrevistas com os indígenas a descreverem seus calvários, e até mesmo assustadores (com destaque para as falas hipócritas de latifundiários e políticos), há também sequências em “Martírio” que trazem um comovente encanto pelo dimensão cultural de rezas e danças nos rituais indígenas.

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