Essa coisa de dizer que um filme é revolucionário, renovador ou coisa que o valha é algo meio temerário de se fazer. Afinal, este blog tem um caráter opinativo, e opinião sempre é marcada por algum traço de subjetivismo. Dessa forma, não vou colocar aqui de forma taxativa que “Enter The Void” (2009) vai mudar de maneira definitiva a história do cinema. O que dá para dizer com certeza é que a obra do diretor Gaspar Noé vai causar alguma espécie de ruptura para uma boa parte de sua audiência.
O diretor italiano Federico Fellini disse uma vez que a grande diferença entre assistir um filme no cinema ou na televisão é que na primeira situação o espectador não tem controle sobre a obra audiovisual – não há como pará-la ou fazê-la retroceder ou avançar. Essa constatação ganha uma conotação ainda mais definitiva com “Enter The Void”. O que Gaspar Noé faz com o espectador é jogá-lo dentro literalmente da mente de seu protagonista Oscar (Nathaniel Brown), um traficante norte-americano que vive em Tóquio. Para o diretor, não basta “contar a história” – é necessário também senti-la. Isso não implica apenas que se verá tudo o que acontecerá pelos olhos do personagem – ouve-se os pensamentos de Oscar, seus delírios com drogas se materializam aos nossos olhos, até suas tentativas com projeção astral, inspiradas no Livro Tibetano dos Mortos, ganham uma estranha materialidade. Quando ele morre baleado dentro de um banheiro sujo, Noé emula de forma perturbadora seus suspiros finais. A experiência estética do cineasta radicaliza de vez no momento em que Oscar se converte em espírito ou energia. O personagem visita lugares conhecidos em Tóquio (sua casa, as ruas, a boate onde trabalha a irmã) ao mesmo tempo que suas lembranças pessoais invadem a sua percepção. Essa alternância entre passado e presente se estabelece de forma vertiginosa, quase caótica, mas aos poucos vai adquirindo uma estranha coerência.
Apesar da sua temática envolvendo morte e o que veria depois dela, não daria para dizer que “Enter The Void” se trata de uma produção de caráter espírita. Afinal, não há lições edificantes e nem maiores explicações sobre o que está acontecendo. Quando parte para essa jornada extracorpórea, Oscar não tem um controle racional sobre a sua trajetória – ele se desloca por Tóquio e rememora sua vida de forma instintiva. Sua própria percepção de realidade se distorce – uma maquete da capital japonesa pode se fundir com a própria cidade, objetos como lâmpadas e canos de esgotos se convertem em portais para o fluxo contínuo de movimentação do protagonista. Como estamos dentro de sua mente, somos praticamente conduzidos abruptamente por paisagens estranhas e forçados a catar pequenos elementos de situações e reminiscências até chegarmos a uma tentativa de formar um todo que explique a morte de Oscar e que dê uma pista para o seu destino.
A genialidade de Noé dentro desse caos audiovisual é saber traduzir esse conjunto de elementos caóticos e delirantes em imagens magníficas e numa condução narrativa que nunca cai na dispersão. O diretor impõe uma concepção visual que se desenvolve entre o realismo, cenários artificiais de estúdio (lembrando algo do realismo de néon de “O Fundo do Coração”) e efeitos digitais. Além disso, soluções formais brilhantes e insólitas irrompem de forma constante – nesse sentido, o auge se encontra na brilhante seqüência final: Oscar circula em meio a uma grande orgia, em que pênis e vaginas brilham, e literalmente entra dentro de um corpo feminino durante o ato da penetração, misturando-se à fecundação e, por fim, renascendo novamente.
Quando aparecem os créditos finais, é como se fossemos expelidos de um pesadelo. Gostando ou não de tal sensação, é inegável que esse não é o tipo de experiência que se tem normalmente com um filme.
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