sexta-feira, setembro 18, 2015

Love, de Gaspar Noé ****

Pretensão, narcisismo, mau gosto, polemismo marqueteiro – tais palavras e expressões costumam ser associadas à Gaspar Noé e à sua filmografia. E tais acusações não são sem fundamento. Seus filmes são bastante vinculados à sua personalidade e sempre, de maneira proposital, trazem algo que induz discussões estéticas e comportamentais. Por outro lado, tais aspectos que seriam deméritos fazem parte da própria natureza artística controversa da sua obra. Seu conjunto de trabalhos pode ser relativamente escasso na quantidade (quatro longas-metragens), mas carregam uma carga tão grande de referências e elementos temáticos e formais que acabam formando um universo amplo a ponto de tais produções se comunicarem entre si de forma bastante particular. Pode até existir (e existe aos montes) quem deteste seus filmes, mas também é inegável que não se consiga ficar impassível diante da exibição de algum deles.

“Love” (2015) sintetiza de forma contundente tanto o estilo característico de Noé quanto os dilemas e contradições que o cercam. A relação que se estabelece entre essa produção mais recente e o extraordinário penúltimo filme dirigido por ele, “Enter The Void” (2009), é profunda. Além de evocar truques narrativos e efeitos visuais marcantes do referido trabalho anterior, “Love” oferece um contraponto existencial. Enquanto “Enter The Void” tinha por premissa principal uma espécie de viagem sensorial de uma alma recém desencarnada, “Love” é uma verdadeira jornada em relação à carnalidade. Mas não se trata de uma mera celebração do hedonismo. Noé coloca o sexo no mesmo patamar de importância (por vezes, até mais) que a espiritualidade em relação ao amor romântico. Nesse sentido, o fato de Noé de usar fartamente o sexo explícito como recurso cênico foge do gratuito e do óbvio – a visceralidade dos sentimentos e sensações dos personagens se manifestam com toda a sua intensidade diante desse grafismo erótico despudorado. Essas sequencias de sexo são perturbadoras no sentido em que a sua coreografia tanto transborda excitação quanto um pungente humanismo. A sensualidade de extremos também é a extensão das personalidades explosivas do casal protagonista, em que os atraques do corpos são irmanados a líricas cenas de declarações românticas e a momentos de fúria verbal derivada de ciúmes e rejeição.


Assim como em “Enter the Void”, a narrativa em “Love” se estrutura como se fosse um fluxo de consciência desordenado e aleatório. Os fatos se sucedem na trama de acordo com o encadeamento emocional de lembranças de Murphy (Karl Glusman) quando ele descobre que a ex-namorada (e eterna paixão) Electra (Aomi Muyock) se encontra desaparecida e provavelmente tenha cometido suicídio. O rigor artístico de Noé e tamanho dentro dessa concepção que boa parte dos cortes da montagem simula uma espécie de entrelaçamento abrupto de memórias e pensamentos, enquanto a narração de Murphy é um monólogo interno, perturbado e repleto de indagações e angústia. O registro formal tem um viés realista, mas que traz um grau de variação sensorial impressionante, indo de uma limpidez celestial até uma atmosfera de sordidez infernal, sempre passando pelo filtro de uma fotografia cujos enquadramentos e iluminação trazem uma riqueza pictórica repleta de nuances imagéticas brilhantes, tendo ainda por complementação um uso fortemente criativo e de sensibilidade à flor-da-pele de temas musicais na trilha sonora. Essa colisão entre barroquismo audiovisual e conteúdo misto de melodrama e choque é a marca registrada autoral indelével de Noé, fazendo de “Love” a mais improvável (e das mais fascinantes) obra romântica dos últimos anos.

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