sexta-feira, novembro 27, 2015

As mil e uma noites: Volume 1 - O inquieto, de Miguel Gomes ****

Tempos conturbados como o que vivemos na atualidade podem nos angustiar, perturbar, deprimir ou provocar algumas outras reações negativas. Por outro lado, um cenário de crise econômica, social e cultural também é capaz de despertar algo de muito positivo – a criatividade artística necessária para contestar, criticar e ironizar um status quo opressor e hipócrita. E esse é justamente o caso do extraordinário “As mil e uma noites: Volume 1 – O inquieto” (2015), produção cinematográfica portuguesa em que o diretor Miguel Gomes destila de forma contundente o seu descontentamento com o governo e a sociedade de seu país. Desde o início, de forma mesma expressa, o cineasta deixa clara a sua motivação na realização da obra em questão, colocando que a conjuntura econômica de austeridade fiscal e cortes de benefícios sociais torna para ele impossível fazer um filme sem que tal assunto entre dentro de sua temática. O trabalho de Gomes, entretanto, não reduz a estética a mero veículo para um discurso panfletário. O próprio formalismo do filme tem um viés político ao se recusar a fazer concessões de fácil digestão para o público. Gomes combina com notável fluidez documentário, ficção e metalinguagem, fazendo com que a encenação naturalista se entrelace de forma estranhamente harmônica com elementos de cinema fantástico e mesmo aspectos de desconstrução narrativa. Dessa maneira, o Portugal atual de políticas econômicas ditadas por tecnocratas e de desemprego estrutural convive com um país de cotidiano arcadista repleto de realismo mágico. A inventiva concepção artística de Gomes remete a outra antológica versão desse mesmo clássico literário, aquela perpetrada por Pasolini em 1974, filme que adaptava o clássico texto oriental para uma linguagem de herança neorrealista. Ainda que de estilos diversos, as obras de Gomes e Pasolini se irmanam na capacidade de refletir seus respectivos tempos históricos em narrativas repletas de imaginação e ironia.

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